Ministério Público da União
Ministério Público do Distrito Federal e Territórios

13ª e 14ª Promotorias de Justiça Criminal de Brasília

 

 

O USO ABUSIVO DE ARMAS PELA POLÍCIA

Rogério Schietti Machado Cruz
Promotor de Justiça do MPDFT

Dias atrás, o Brasil se chocou com mais um lamentável acontecimento na cidade do Rio de Janeiro, onde uma criança de 7 anos, Mariana, foi estupidamente morta em decorrência de um disparo de arma de fogo por um sargento da Polícia Militar.

O que parecia mais um caso de bala perdida - algo já comum na cidade ex-maravilhosa - em verdade se constituiu em um outro registro de abuso da força pública do Estado.

Lemos estarrecidos a notícia de que o sargento da PM teria avistado alguém empunhando uma metralhadora dentro do automóvel em que a pequena Mariana se encontrava junto com seu irmão de 5 anos e sua mãe e, por este simples motivo, atirou na direção do veículo, ceifando a vida da infante. Detalhe: a metralhadora era de brinquedo!

O triste episódio serve apenas para levar a sociedade a refletir sobre a forma irresponsável e despreparada com que alguns agentes do Estado que cuidam da segurança pública usam as armas que lhe são postas à disposição.

Segundo dados fornecidos pelo jornalista Caco Barcellos, a Polícia Militar de São Paulo tem matado uma média de duas pessoas por dia. Foi estimado um saldo de 7.500 vítimas (de 1970 a 1992, data em que foi publicado o livro ROTA 66), número impressionante que supera o total de soldados brasileiros mortos na Segunda Guerra Mundial (454), as vítimas da Guerra dos Farrapos (1.000) e das batalhas de Guararapes (900) etc.

Estes dados, ainda que passíveis de questionamento, revelam, induvidosamente, que a Polícia Militar de algumas unidades da Federação tem demonstrado total despreparo, insensibilidade e irresponsabilidade no manuseio de armas de fogo, gerando a insegurança dos cidadãos, mesmo os de bem, que não estão imunes a tais abusos.

A respeito do uso de armas pela polícia, talvez muitos não saibam que no VIII Congresso das Nações Unidas sobre Prevenção do Delito e Tratamento dos Delinqüentes, realizado em agosto e setembro de 1990, em Havana, elaborou-se um documento intitulado Princípios Básicos sobre o emprego da força e de armas de fogo pelos funcionários encarregados de fazer cumprir a lei, no qual se inseriram várias recomendações, tais como as duas seguintes:
    "4. Os funcionários encarregados de fazer cumprir a lei, no desempenho de suas funções, utilizarão, na medida do possível, meios não violentos antes de recorrer ao emprego da força e de armas de fogo. Poderão utilizar a força e armas de fogo somente quando outros meios resultem ineficazes ou não garantam de nenhum modo a obtenção do resultado previsto".
    "9. Os funcionários encarregados de fazer cumprir a lei não empregarão armas de fogo contra as pessoas salvo em defesa própria ou de outras pessoas, em caso de perigo iminente de morte ou de lesões graves, ou com o propósito de evitar o cometimento de um delito particularmente grave que represente uma séria ameaça para a vida e segurança pública, ou com o objetivo de deter uma pessoa que represente esse perigo e oponha resistência ou enfrente a autoridade ou para impedir sua fuga, e somente na hipótese de resultarem insuficientes medidas menos extremas para lograr tais objetivos. Em qualquer caso, somente se poderá fazer uso intencional de armas letais quando seja estritamente inevitável para proteger uma vida".

Estas recomendações parecem ser desconhecidas da maioria de nossas corporações militares - senão de todas - pois amiúde nos deparemos com notícias de disparos desnecessários e irresponsáveis de projéteis de armas de fogo, ou simplesmente com notícias de que determinado policial feriu ou matou alguém porque este não atendeu, por exemplo, a uma ordem para estacionar o veículo em uma blitz, ou porque se tratava de um suspeito de furto que, desarmado, "correu da polícia".

Analisemos as duas últimas situações mencionadas, tão freqüentes nos nossos dias.

Um policial, não vendo atendida sua ordem para que o condutor de um automóvel estacione-o em uma blitz, dispara em direção ao veículo, quer imediatamente, quer durante uma perseguição.

Várias razões podem determinar a desobediência do motorista em parar o automóvel: ser foragido da polícia, ter acabado de furtar ou roubar o automóvel, não possuir habilitação ou os documentos do veículo, estar embriagado, drogado, assustado, ou simplesmente sem vontade de cumprir a determinação policial.

Em nenhuma destas situações seria legítimo ao policial efetuar disparos em direção ao veículo para induzir o seu motorista a pará-lo. Mesmo na situação mais grave, em que o motorista seja supostamente autor de um roubo - já comunicado via rádio ao policial - ser-lhe-ia lícito disparar arma de fogo para conter o criminoso.

O conjecturado roubo já se consumou, não se tratando, pois, de legítima defesa de uma injusta agressão ao patrimônio alheio já passada. Igualmente não se poderia sustentar a hipótese de estrito cumprimento de dever legal, pois não se situa no limite do razoável valer-se o Estado do recurso extremo para prender criminosos somente porque estes não "colaboraram" para a sua própria prisão. No caso em testilha, poderia o policial empreender perseguição ao delinqüente, bem como acionar outras viaturas para auxiliá-lo na captura do fugitivo. Não é demais salientar a possibilidade de ter havido um engano na identificação do suposto autor do noticiado r oubo, ou mesmo a possibilidade de estar, dentro do veículo, pessoa inocente ou mesmo um refém do criminoso, hipóteses que, por si só, desautorizam qualquer atitude mais violenta e perigosa por parte da polícia.

Ainda sob a ótica da razoabilidade da atuação estatal, e com mais forte razão, seria extremamente abusivo o uso de arma de fogo para conter alguém que não parou na blitz porque está inabilitado a dirigir veículo, ou porque não está de posse dos seus documentos, ou, ainda, em virtude de influência etílica ou estupefaciente. Onde está a proporcionalidade entre a possível contravenção de dirigir automóvel nestas condições e a ofensa à integridade física do contraventor, cuja vida é colocada em risco pela ação do policial?

Será que o infrator da lei - seja de que grau for a violação - deve merecer do Estado um tratamento que lhe coloque o seu maior bem em irreparável ameaça?

Outro exemplo infelizmente não tão raro é o que se verifica quando a polícia, em perseguição a alguém suspeito de ter sido autor de um crime (geralmente contra o patrimônio), dispara em sua direção projéteis de arma de fogo. Será razoável admitir que, v.g., um sujeito que tenha furtado uma roupa em uma loja, ou mesmo um toca-fitas de um automóvel, seja morto ou ferido pelo simples fato de não quedar-se imóvel ante a perseguição policial? O que vale mais, o patrimônio ou a vida?

Sabemos que muitas pessoas responderão que o patrimônio de um homem de bem vale mais do que a vida de um infrator da lei. Quão inconseqüente e perigoso é semelhante raciocínio, porquanto, a ser universalmente aceito, não poderemos nos rebelar se nossos filhos forem mortos porque subtraíram, por um arroubo juvenil, um brinquedo de uma loja ou doces de um pequeno comércio.

Voltando ao triste episódio da pequena Mariana, não somos todos responsáveis pela conduta do nocivo sargento da PM? Certamente não foi esta a primeira vez que tal indivíduo disparou desnecessariamente contra outra pessoa. A diferença é que, porque desta vez não foi atingido um marginal, e sim uma criança, todos nos indignamos.

Isso nos faz lembrar da poesia de Maiakowsk:
    "Na primeira noite,
    eles se aproximam
    e colhem uma flor de nosso jardim
    e não dizemos nada.
    Na segunda noite,
    já não se escondem:
    pisam as flores matam nosso cão,
    e não dizemos nada.
    Até que um dia,
    o mais frágil deles,
    entra sozinho em nossa casa,
    rouba-nos a lua e
    conhecendo o nosso medo,
    arranca-nos a voz da garganta.
    E porque não dissemos nada,
    já não podemos dizer nada"

     

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