Ministério Público da União
Ministério Público do Distrito Federal e Territórios

13ª e 14ª Promotorias de Justiça Criminal de Brasília

 

 

ANOTAÇÕES SOBRE O CRIME DE FRAUDE NO PAGAMENTO POR MEIO DE CHEQUE *

Rogério Schietti Machado Cruz
Promotor de Justiça do MPDFT

I. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES


As observações extraídas do quotidiano forense e a solução que tem sido apresentada pelo Judiciário a respeito do crime de fraude no pagamento por meio de cheque levaram-me a encetar uma análise acerca dos problemas que gravitam em torno da figura penal positivada no art. 171, § 2º, inc. VI do Código Penal Brasileiro.

Pude, assim, colher, em minha pequena experiência profissional, as seguintes observações:
Dentre as observações retro-indicadas, destaco as duas últimas, uma das quais traduz a impunidade de muitas condutas que, em face da opção legislativa pátria, não podem ensejar um decreto condenatório, a despeito da lesividade social do comportamento (observação 3ª), denotando a outra observação (4ª) a fragilidade e a ilegalidade das decisões judiciais que presumem a fraude pela simples emissão de um cheque que vem a ter o seu pagamento recusado pelo banco sacado por falta ou insuficiência de fundos.


II. O ELEMENTO SUBJETIVO

Parece inegável que, pela posição topográfica que ocupa no texto legal, a primeira conclusão a que se chega é a de que a "fraude no pagamento por meio de cheque"é um subtipo do crime de estelionato (caput do art. 171 do Código Penal) e, como tal, deste extrai seus princípios básicos, quais sejam, a fraude (consistente em induzir a erro a vítima, fazendo-a supor que o cheque possui fundos disponíveis no banco sacado), e o resultado dúplice, caracterizado pelo proveito ilícito do agente e pelo prejuízo patrimonial da vítima.

Destarte, não basta a emissão (ato de colocar a cártula em circulação) de um cheque (conceituado como ordem de pagamento à vista, com as características que lhe dá o art. 1º da Lei 7.357/85) que, ao ser apresentado ao sacado, tem o seu pagamento recusado por este em virtude da não provisão de fundos. Impõe-se, além destes dados de natureza objetiva, perquirir e comprovar se, ao emitir a cártula, sabia o emitente que ela não possuía o necessário lastro financeiro no banco sacado e que, com tal agir, estava auferindo vantagem ilícita em prejuízo do beneficiário daquela ordem de pagamento.

Vale transcrever, aqui, o lecionamento do mestre italiano F. ANTOLISEI, em seu consagrado Manuale di Diritto Penal, p. 303, onde anota, verbis:
    "Sempre in applicazione dei principi generali, il dolo deve essere precedente o concomitante all'azione criminosa. Un dolo sucessivo, in conseguenza, non può dar luogo a responsabilità per truffa" (grifo nosso).

Sensível a este posicionamento, derivado da análise deste subtipo de estelionato, editou o Supremo Tribunal Federal a Súmula 246, segundo a qual "Comprovado não ter havido fraude, não se configura o crime de emissão de cheque sem fundos".

Todavia, a imperfeita redação do citado preceito sumular, e também do tipo legal, tem dado azo a uma prática judiciária em que a presunção de culpabilidade (lato sensu) do acusado prevalece sobre a sua presunção de inocência, exigindo-se daquele a prova de que não agiu fraudulentamente, e, por conseguinte, isentando a acusação de provar elemento constitutivo do tipo penal em apreço, vale dizer, o seu elemento subjetivo característico, o animus lucri faciendi.

A propósito, como bem coloca o inigualável e saudoso Ministro NELSON HUNGRIA, in COMENTÁRIOS AO CÓDIGO PENAL, vol. VII, p. 246, "Por mais culposo que seja o erro do agente, ao supor que dispunha de provisão bastante em poder do sacado, inexistirá o elemento subjetivo do crime".

Não se há de aceitar, portanto, o uso de um instituto já superado pelas modernas conquistas da ciência penal - o dolus in re ipsa - ao argumento de que em determinados ilícitos o dolo está ínsito na própria materialidade da conduta, ou de que exigir-se a comprovação daquele elemento subjetivo seria enfraquecer sobremodo a acusação pública e cooperar com a impunidade dos infratores. Em arremate, "o dolo deve ser sempre diretamente verificado" (G. BETTIOL, in Direito Penal, vol. II, p. 105).

Dando prosseguimento a esta breve incursão sobre a infração penal sub examen, é de concluir-se que, ao menos dentro de nossa dogmática penal, amparada por maciço entendimento doutrinário-jurisprudencial, trata-se de um crime material, de dano, cujo bem jurídico imediatamente atingido é o patrimônio de alguém.

Dessume-se, pois, desta classificação que o crime se consuma no momento e local em que o agente obtém vantagem ilícita em prejuízo alheio, o que ocorre quando o sacado recusa o pagamento do cheque por insuficiência de fundos (Súmula 521 do STF), lesando o patrimônio do beneficiário do cheque, que se vê desfalcado em decorrência da fraude engendrada pelo emitente da cártula.

Daí ser possível falar-se em crime tentado se, por circunstâncias alheias à vontade do agente, o cheque vem a ser pago, ou porque o sacado decidiu honrar o cheque, ou porque alguém efetuou depósito na conta do emitente de modo a suprir a inicial ausência de fundos, como também se afigura possível uma situação de arrependimento eficaz se o próprio agente, após emitir fraudulentamente o cheque, provê de fundos a sua conta junto ao banco sacado antes que este recuse o pagamento da cártula. Não me iludo, todavia, em acreditar que situações como as descritas dêem ensejo a uma ação penal, eis que o crime em tela é daqueles que somente são noticiados às autoridades policiais quando consumados e quando o beneficiário do cheque não obtém a imediata reparação do prejuízo sofrido.


III. BEM JURÍDICO OFENDIDO

A este ponto, a discussão se encontra amadurecida para a abordagem e a reflexão daquilo a que me proponho trazer à consideração do leitor. É necessário promover mudanças no tratamento que a lei penal confere à figura criminosa em estudo? A concretização do direito objetivo tem sido suficiente para a repressão do crime de emissão fraudulenta de cheque sem fundos? Deve o patrimônio ser o único bem jurídico a ser tutelado pela norma penal no que diz respeito à prática ilícita ora analisada?

Tomo a última indagação como alicerce sobre o qual se desenvolverá o raciocício doravante.

A inserção do ilícito descrito no art. 171, § 2º, inciso VI do Código Penal dentro do Capítulo VI do Título II de sua parte especial, revela duas nítidas intenções do legislador penal de 1940, a saber, tratar a emissão de cheques sem fundos como uma modalidade do crime de estelionato, e deixar claro que o bem jurídico tutelado pelo tipo em apreço é o patrimônio, in casu, o patrimônio de quem recebe um cheque a descoberto.

Por via de dedução, deixa de existir crime quando o ato de emitir cheque sem fundos não vier acompanhado da vontade do emitente dirigida a, com semelhante agir, perceber vantagem ilícita em prejuízo alheio.

Portanto, se a emissão se dá para pagar dívida já existente; se visa apenas a garantir uma dívida; se o cheque é dado para pagamento em data diferida, enfim, em todas estas e em muitas outras situações possíveis, ou o cheque não foi dado como uma ordem de pagamento à vista - e neste caso não se poderia supor e exigir que no momento da emissão do cheque houvesse lastro financeiro junto ao banco sacado (hipóteses do cheque dado como garantia de dívida ou pós-datado) - ou a cártula não foi a causa do prejuízo da vítima (cheque dado em substituição de outro título de crédito, ou em pagamento de dívida anteriormente existente, documentada ou não).


IV. A TUTELA METAPATRIMONIAL

Não há como negar que a simples colocação em giro de um cheque que não poderá ser pago por não dispor de lastro financeiro junto ao banco sacado, antes de afetar o patrimônio do beneficiário, afeta, abstratamente, a segurança das relações do comércio e a confiança que o público deve depositar neste título de crédito, concebido como instrumento de pagamento com valor assemelhado à moeda corrente.

Irrefutável, outrossim, que o dano patrimonial é fato contingente e remediável. Basta pensar na possibilidade - quase sempre verificada em concreto - do ressarcimento, por parte do emitente, do prejuízo sofrido pelo tomador do cheque com a sua devolução pelo banco sacado.

Por sua vez, o dano à fé pública e à segurança que as relações do comércio devem merecer é mais prolongado, senão irreversível. Se, em determinada localidade, há o hábito de se emitirem cheques a descoberto, ainda que todos os emitentes reparem o dano causado pela recusa do pagamento por insuficiência de fundos, não se poderá negar que a fé e a confiança que o público local depositavam neste instrumento de pagamento serão duradouramente afetadas. A propósito, caracterizam tal assertiva a famigerada sinalização que alguns comerciantes colocam à vista do público : "NÃO ACEITAMOS CHEQUES", OU "ACEITAMOS SOMENTE CHEQUES ESPECIAIS".

Outra não foi a razão - necessidade de proteção não somente ao patrimônio do particular, mas também da credibilidade do cheque - que levou alguns países a considerarem crime a simples conduta de emitir um cheque que não possa ter a sua ordem de pagamento cumprida por falta de fundos disponíveis em poder do sacado (neste sentido, as legislações alienígenas: Áustria, Lei de Cheques, art. 67; Colômbia, Lei 8ª, art. 3º; extinta Iugoslávia (art. 232-a do Código Penal de 1959; Itália, Lei 386/90, artigos 1º e seguintes; Espanha, Código Penal, art. 563, bis; Portugal, Decreto 13.003/27, art. 23; Argentina, Código Penal, art. 302).

Ilustrando a matéria, CUELLO CALON, jurista mexicano citado por seu compatriota A. DOMINGOS DEL RIO, in "La tutela Penal del Cheque", p. 23, aduz que
    El cheque, instrumento de pago, que hoy casi llega a asumir il rango de verdadera moneda, ha alcanzado en nuestra epoca como es bien sabido una considerable difusión. Mas para que llene satisfactoriamente su función es menester que infunda confianza, que su tomador tenga seguridad completa de que será pagado, a su presentación, que tenga casi la misma seguridade que la moneda".

Em sentido semelhante se posiciona o consagrado penalista argentino, SEBASTIÁN SOLER, in "Derecho Penal Argentino", vol. 5, p. 494, cujas palavras merecem transcrição:
    "El bien juridico tutelado por esta infracción es el de la confianza en instrumentos de valor pecuniario a los cuales debe ir unida la más estrecha garantia de immediata realización. Pero un protectión generica del valor de esos papeles solamente es alcanzada cuando ese valor es defendido en si mismo, con independencia de los daños concretamente causados em un caso determinado"

Um pouco mais adiante, arremata o preclaro autor:
    "La protección legal se tiende aquí sobre la confianza publica, y está mas inspirada por el fin de evitar, más que directos perjuicios patrimoniales, los transtornos que puede causar la entrada en circulación de um documento espurio".

Entre nós, cabe destacar o doutrinamento de HELENO CLÁUDIO FRAGOSO, em suas celebérrimas "Lições de Direito Penal", parte especial, p. 93, onde ressalta que, embora perante a lei penal pátria o interesse imediatamente protegido seja o patrimônio do tomador do cheque,
    "Em geral, as leis que especificamente regulam a emissão e o pagamento por meio de cheque procuram penalmente tutelá-lo como interesse em si mesmo e sem consideração aos danos que possam advir de seu emprego fraudulento. Protegem, assim, a confiança no cheque como instrumento de valor e meio de pagamento, considerando o interesse público na circulação fiduciária do mesmo. Essa orientação explica que o crime se situe entre as infrações penais à fé pública".

Observa, porém, o mestre brasileiro que, a exemplo do que ocorreu na França em 1975 (Decr. 75.903/75, que modificou artigos do Decreto-lei de 30/10/35), a tendência atual - contestada por autores de idêntico quilate, como S. Soler e J. de Asúa - é a de descriminalizar a emissão fraudulenta de cheques sem fundos, com a substituição das penas criminais por sanções civis e administrativas (imposição de multas e interdição ao direito de usar cheques).

Seja qual for a solução adotada, creio não se poder aceitar como acertada a forma pela qual uma questão de tamanha relevância social vem sendo tratada pelo nosso ordenamento positivo.

Apenas para enriquecer este escrito, cabe informar que, segundo dados do Banco Central, durante o mês de janeiro do ano de 1992 (época em que foi feita a consulta, mas certamente ainda refletindo a situação atual), foram compensados pouco mais de duzentos e setenta e seis milhões de cheques em todo o país, sendo que três milhões e seiscentos mil foram devolvidos pela rede bancária por insuficiência de fundos. Somente na cidade de São Paulo, naquele mês, novecentos e oitenta e quatro mil cheques tiveram o pagamento recusado pelos bancos por insuficiência de fundos.

Felizmente - para a Justiça - a grande maioria destes cheques não geram processos criminais, eis que os emitentes das cártulas efetuam o resgate do valor, eliminando o prejuízo do beneficiário da cártula, que se dá por satisfeito.

Aliás, cumpre abrir-se aqui um parêntesis para salientar que a maioria das emissões de cheques a descoberto se deve à negligência do correntista em sua contabilidade bancária. De fato, assim como a condução de um automóvel exige atenção e certos conhecimentos técnicos do motorista, o uso de um talonário de cheques requer uma constante vigilância do saldo bancário e um sedimentado conhecimento de matemática por parte do usuário, o que nem sempre ocorre. Não é raro, diga-se de passagem, encontrarem-se exemplos de pessoas que "puxam" o saldo do canhoto do talonário de cheques mentalmente, ou que se orientam somente pelo extrato bancário, hábitos que podem ensejar a emissão culposa de um cheque sem fundos, o que, conquanto indesejável, não é passível de punição penal ante o nosso ordenamento positivo.


V. POSSIBILIDADES DE REFORMAS

Impõe-se, dessarte, que se reformule a legislação - após a necessária reflexão doutrinária - a fim de não se deixar desprotegido este instrumento tão importante para a circulação de riquezas e para o desenvolvimento da economia nacional, e também ao escopo de se minimizarem as conseqüências processuais que derivam do tratamento penal atualmente dado ao problema em comento.

Algumas idéias poderiam ser pensadas e discutidas.

 

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