Ministério Público da União
Ministério Público do Distrito Federal e Territórios

13ª e 14ª Promotorias de Justiça Criminal de Brasília

 

 

POR QUE ODIAR?

Rogério Schietti Machado Cruz
Promotor de Justiça - MPDFT

Quem quer vingar suas ofensas com um ódio recíproco, vive seguramente miserável. Quem, ao contrário, procura combater vitoriosamente o ódio com o amor, combate decerto na alegria e na segurança..." (Spinoza, Ética)

Dentre as inúmeras imagens de fatos ocorridos no rico cenário brasileiro, chamou-me à atenção a reação de alguns populares, à porta do Tribunal do Júri em que Paula Thomaz foi julgada pelo homicídio da atriz Daniela Peres.

Enquanto Paula Thomaz saía do Tribunal, protegida por policiais e cabisbaixa, pois acabara de ser condenada à pena de dezoito anos e seis meses de reclusão, pelo crime cometido há quatro anos, várias pessoas, talvez incorporando o sentimento de milhares de outras, gritavam, ensandecidas: "assassina, assassina!".

A reação dessas pessoas evidencia o predomínio do emocionalismo, na raça humana atual, que leva as massas a assumirem posturas irracionais, muitas vezes iludidas pelo sensacionalismo de alguns setores da mídia e por lideranças negativas, que fomentam, no espírito dos insensatos, uma histeria punitiva, desencadeando sentimentos de vingança, ódio, medo e insegurança, para dizer o mínimo.

Exemplos como o que ora comentamos nos remetem à lembrança de épocas já passadas, em que criminosos eram torturados e sacrificados em praça pública, sob a aprovação feroz da sádica população, que via naquele ato o expurgo de um marginal pecador, ao qual não bastava o suplício da morte dolorosa, mas se lhe acrescentava o vilipêndio de seu cadáver, o confisco de seus bens, e o banimento civil de sua descendência.

Por obra de humanistas, avançamos, e o progresso moral do reino humano é um fato. Repugna-nos, hoje, a prática de atos daquela estirpe, mas não podemos negar que nos resta ainda um longo caminho a trilhar, na busca da convivência pacífica e do estabelecimento das corretas relações humanas, desejo de todos.

A responsabilidade maior, contudo, não é dos governos, mas sim dos homens. Cada um de nós tem o seu "plano de vôo" na Terra e devemos procurar segui-lo, tentando, nesse percurso, dele não nos desviarmos nos momentos de tempestades.

A nós, homens e mulheres privilegiados, que receberam uma educação superior, que fomos criados em uma família fundada em sentimentos cristãos, que tivemos acesso aos bens de consumo e a oportunidades negadas a grande parte da população, cabe-nos uma responsabilidade maior nesse trajeto de nossa existência.

Particularizando o tema, qual o papel que nós, sujeitos da Justiça Criminal, temos a cumprir?

Diante do fenômeno mais grave da convivência humana, agimos tal qual atores de uma peça de teatro: juízes, promotores de justiça e advogados têm a missão de protagonizar esse dramático script que se escreve com a ocorrência de um crime.

O Juiz e o Promotor, comprometidos que estão com a realização da Justiça e com o encontro da verdade, maiores facilidades teriam para exercer a missão de eliminar, mitigar, ou, pelo menos, não propagar os sentimentos que derivam do crime. Mas também ao Advogado, ainda que premido pela necessidade de cumprir, com a máxima eficiência, o mandato que lhe foi outorgado, não escapa o dever de procurar pacificar, e não apenas solucionar juridicamente, o conflito de que participa.

Há profissões que somente trazem alegrias aos outros: arquitetura, engenharia e medicina, por exemplo, realizam sonhos ou curam enfermidades de pessoas, e não precisam causar a dor a outrem.

Porém, os atores da Justiça Criminal são porta-vozes da infelicidade alheia, pois se eventualmente confortam o titular de um direito violado, ou a dor de quem foi vítima de um crime, trazem, por outro lado, ao autor da conduta e aos seus familiares, um sofrimento que, muitas vezes, ao menos estes últimos não mereceriam padecer.

Uma vez que devemos exercer, por opção profissional, esse doloroso mister, de que modo fazê-lo? Se nos foi reservada tão relevante tarefa em nosso grupo social, devemos nos conscientizar, como simbolicamente retrata Richard Bach, na figura de Fernão Capelo Gaivota, de que "... há na vida algo mais do que comer, lutar ou ter uma posição importante dentro do bando".

Nós, personagens desse trágico roteiro, combatemos o crime, mas corremos o risco de alimentá-lo se nossos pensamentos - que geram energia - em relação ao seu autor são impregnados de ódio ou de espírito de vingança.

Será que precisamos combater o crime, acusar, ou julgar o criminoso com ódio? Na sabedoria de André Comte-Sponville (Pequeno Tratado das Grandes Virtudes, Ed. Martins Fontes, p.142), "...não se trata de remitir os pecados, o que não podemos fazer ... Trata-se de suprimir o ódio, na medida do possível, e de combater, portanto, com a alegria no coração, quando ela for possível, ou com a misericórdia na alma, quando a alegria for impossível ou despropositada. Trata-se de amar nossos inimigos, se pudermos, ou de perdoá-los, se não pudermos".

Se não realizamos sonhos, como os arquitetos e engenheiros, por que não podemos tentar, como médicos, curar ou diminuir a dor das vítimas do crime (entendidas como as vítimas propriamente ditas e seus familiares, bem como o autor de crime e seus parentes e amigos)? As chagas físicas de um crime talvez não mais possam ser curadas, mas as marcas causadas nas almas das suas vítimas devem ser tratadas com compaixão, e não tenho dúvida de que somos de algum modo incumbidos desta elevada tarefa.

 

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