Ministério Público da União
Ministério Público do Distrito Federal e Territórios

13ª e 14ª Promotorias de Justiça Criminal de Brasília

 

 

Notas sobre a Suspensão do Processo e do Curso da Prescrição Penal na Lei nº 9.271/96

André Vinícius de Almeida
Promotor de Justiça do MPDFT


A segurança das relações jurídicas impôs o estabelecimento de lapso temporal hábil a pôr fim às querelas face à ausência de iniciativa por parte do titular do direito.

A prescrição, como restou nominado aquele prazo, fez-se historicamente instituto que, dando por perdida a ação atribuída a um direito, objetiva a consolidação das relações jurídicas.

É este inicial argumento, de cunho eminentemente civilista, o principal fundamento da prescrição penal, pois, como sustenta Von Listz, "os efeitos da pena, quando a execução é distanciada da prática do ato punível, estariam, por certo, malogrados, pela completa desproporção com as dificuldades e incertezas que ofereceria a verificação do fato, e com a perturbadora intromissão nas novas relações originadas, e já consolidadas"(1) .

No âmbito do direito punitivo, razões outras há, porém, de maior monta, a fundamentar e individualizar o instituto. Assim, pois, ensina Antolisei que "el trascurso del tiempo atenúa normalmente el interés del Estado en comprobar el delito y también en ejecutar la pena que se haya infligido, interés que desaparece al perderse el recuerdo del hecho y de las consecuencias sociales de él. Por otra parte, cuando la investigación no se há concluido o no se há llegado a una sentencia irrevocable de condena, surgen, con el trascurso del tiempo, graves dificultades para recoger el material probatorio a causa de la desaparición de los testigos, de las huellas del delito, etc"(2) .

Imune a críticas, todavia, não está o instituto. Já Beccaria, no profundo "Dos delitos e das penas", secundado, dentre outros, por Garofalo e Saldanã, alertava que "os crimes cruéis que permanecem longo tempo na lembrança dos homens, assim que provados, não merecem prescrição alguma em favor do réu, que se livra pela fuga"(3).

Também Henckel e Bentham (4), condenavam o regime, ao argumento de que deixar de aplicar a pena, tão somente face ao transcurso do tempo, implicaria na consagração da impunidade, resultando no encorajamento da prática criminosa (5).

Susceptível às referidas críticas, vem o legislador pátrio editar a Lei nº 9.271, de 17 de abril de 1996, publicada no órgão oficial um dia após, e que terá por termo inicial de vigência a data de 17 de junho próximo.

Alheio às doutrinárias discussões sobre a natureza jurídica do instituto, e afastando-se da questão da exposição do tema em tal ou qual código de normas, seguro é que a novatio legis revolucionou o regime ao alterar a redação, dentre outros, do artigo 366 do Código de Processo Penal:
    "Art. 366. Se o acusado, citado por edital, não comparecer, nem constituir advogado, ficarão suspensos o processo e o curso do prazo prescricional, podendo o juiz determinar a produção antecipada das provas consideradas urgentes e, se for o caso, decretar prisão preventiva, nos termos do disposto no art. 312.
    § 1º. As provas antecipadas serão produzidas na presença do Ministério Público e do defensor dativo.
    §2º. Comparecendo o acusado, ter-se-á por citado pessoalmente, prosseguindo o processo em seus ulteriores atos".

Nos moldes da lei penal codificada, têm os prazos prescricionais por termo inicial a data da consumação do crime, a da cessação da atividade criminosa (na tentativa) ou da permanência (nos crimes permanentes), ou a data do conhecimento do fato(delitos de bigamia e falsificação e alteração de registro civil).

A imprescritibilidade faz-se presente de modo excepcional quando por objeto os crimes decorrentes da pratica do racismo (Constituição Federal, artigo 5º, inciso XLII, e Lei nº 7.716/89) e as ações de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático (Constituição Federal, artigo 5º, inciso XLIV, e Lei nº 7.170/83).

O curso prescricional, de regra, não deve suportar maiores alterações. Com efeito, diminuto é o rol de causas interruptivas (artigo 117 do Código Penal) e menor ainda aquele que consigna causas suspensivas, denominadas de impeditivas (Constituição Federal, artigo 53, § 2º, artigo 116 do Código Penal, artigo 89, § 6º, da Lei nº 9.099/95 e artigo 368 do Código de Processo Penal, com a redação desta comentada Lei nº 9.271/96).

Declaradamente procurou o legislador, em atenção aos constitucionais princípios da ampla defesa e do contraditório, dar proteção jurídica àqueles acusados que não têm ciência das imputações que contra si pesam (Exposição de Motivos GM/MJ/nº 607, de 27 de dezembro de 1994).

Todavia, com a introdução de nova causa impeditiva, busca-se também, de forma inequívoca, impedir que a fuga e o descaso do delinqüente resultem em prejuízo para a sociedade, frustrada em seu dever/direito de obter a resposta que é a sanção penal.

Ao determinar a suspensão do processo e do curso do lapso temporal extintivo da punibilidade, impede que se alcance uma condenação transitada em julgado, após moroso e dispendioso trâmite processual, e que venha a se constituir um nada face à impossibilidade fática de se executá-la por desconhecido o paradeiro do punido.

Como finalidade última, o novel diploma constitui parcela da nova postura legislativa tendente a resgatar a imagem da Justiça e, com isso, do próprio Estado, propiciando não só a desejada justiça rápida, mas também uma que seja efetivamente eficaz, melhor utilizando, deste modo, os parcos recursos existentes.

Do texto legal recém-editado, porém, exsurgem algumas questões de ordem prática que estão a exigir a apurada reflexão por parte dos operadores jurídicos.

A primeira delas tem relação com a colheita probatória que, se diferida ou postergada no aguardo da localização do acusado, poderia se imprestabilizar para a sustentação de um édito condenatório.

Não se olvide que se, sob determinada ótica, almeja a lei nova dar proteção ao que desconhece a acusação, remata por ensejar a fuga daquele que se sabe processado, ou em vias de o ser, confiante em assim escapar ao castigo penal.

Urge, pois, nestes casos, a adoção de posição no sentido de não permitir que a impunidade que pretende o legislador ver finda seja atingida por via oblíqua, qual seja, a total impossibilidade de colheita probatória.

Ocorre ser justamente um dos argumentos favoráveis à prescrição este de que, findo considerável lapso de tempo, não se possa reproduzir de forma a fundamentar a condenação a prova dos fatos. Nos entendimentos de Manzini (6) e Carrara (7), outro não é o principal fundamento do instituto.

Neste aspecto, valiosa é a observação de Eugenio Calón, no sentido de que "a la buena administración de justicia interesa que las pruebas en los juicios criminales sean frescas y fehacientes pues las que, por haber transcurrido mucho tiempo desde la comisión del hecho perdido su vigor probatorio, pueden originar sensibles errores judiciales" (8).

Certo é que o novo tratamento admite a produção de prova antecipada, considerada urgente.

O entendimento até então aceito era de que a medida preventiva, geralmente de cunho cautelar e preparatório, fazia-se factível tão somente diante do fundado receio de não poder ser a prova reproduzida no momento a ela reservado na instrução criminal.

Assim o teor do artigo 225 do Código de Processo Penal, autorizador da tomada antecipada do depoimento de testemunhas, e, ainda, aqueles atinentes às denominadas medidas assecuratórias.

É de se convir, porém, que mesmo a mais tênue demora na apreciação da prova pode vir a resultar em seu enfraquecimento e levar, em última análise, à incabível absolvição, donde se conclui que a suspensão do processo em uma fase incipiente, para posterior reabertura, dois, cinco ou dez anos após, com a localização do acusado, pode desembocar na mesma impunidade que procura afastar o novel diploma.

A praxe forense demonstra que, com raras exceções e geralmente atinentes elas a fraudes que deixam vestígios documentais, uma condenação penal lastreia-se em depoimentos de testemunhas que presenciaram os fatos e visualizaram o autor do ato criminoso.

Mesmo em relação a estas excepcionais causas, têm as cortes por costume entender imprescindíveis os informes orais, ratificadores daquela prova documental.

Ora, as pessoas que tiveram contato com os fatos estão sujeitas, naturalmente, às intempéries da vida moderna. Poderão vir a alterar os seus endereços (e a vivência nas cortes nos mostra que geralmente o fazem sem comunicar ao juízo, ao Ministério Público ou à autoridade policial); poderão falecer, mesmo que de imediato não se apresentem enfermas; poderão, simplesmente, esquecer-se dos fatos e das feições dos criminosos.

Outra não é a razão para que, já em 1828, Lanzilli (Prospetto filosofico della instruzione della prove nei giudizi penali, volume 2º, 1828, página 265-308), citado por Espínola Filho (9), relacionasse como requisito para avaliação das testemunhas o pertinente à "reminiscência" quanto à ciência do fato.

Aníbal Bruno, ao seu turno, assevera ser seguro que, passado algum tempo da data do fato, apagam-se "os seus sinais físicos e as suas circunstâncias na memória dos homens, escasseiam e se tornam incertas as provas materiais e os testemunhos, e assim crescem os riscos de que o juízo que se venha a emitir sobre ele se extravie, com grave perigo para a segurança do Direito" (10).

Face ao novo tratamento dado à matéria pelo legislador, deve se ter por urgente toda e qualquer prova que possa vir a se enfraquecer ou simplesmente desaparecer com o passar dos anos, admitindo-se como cautelar a oitiva das testemunhas arroladas por ambas as partes, sem prejuízo de que venha o réu, a posteriori, promover a demonstração de sua inocência (11).

Deste modo - e assim somente, quando e se identificado o paradeiro do acusado, poderá vir ele a ser julgado com amparo em conjunto probatório forte, produzido, à evidência, sob o pálio do contraditório, e obter, deste modo, condenação ou absolvição fulcrada na verdade real.

Convém, pois, relembrar Beccaria, acima transcrito, para quem somente após provado o delito cabia falar-se na imprescritibilidade.

Dúvida outra que pode vir a aflorar na aplicação do dispositivo processual alterado é a que atine com a prescrição dita retroativa, e que vem disciplinada pelo artigo 110, §2º, do Código Penal.

O que se questiona é se, retomado o curso da instrução criminal face ao comparecimento do acusado, e advindo condenação, o lapso prescricional, concreto e retroativo, há de contar o tempo em que restou suspenso o processo.

O intérprete mais desavisado poderia assim crer, ao exame literal dos dispositivos legais aplicáveis.

As legislações penal e processual penal não cuidam expressamente da matéria, que, de resto, também não recebeu tratamento doutrinário e jurisprudencial.

Todavia, é de se crer que esta hipótese afronta os mais comezinhos princípios de hermenêutica jurídica, eis que não está o intérprete autorizado a retirar da lei e do ordenamento jurídico uma conclusão absurda.

Preciosa máxima aduzida por Juliano (12), commodissimum est, id accipi, quo res de qua agitur, magis valeat quam pereat ("prefira-se a inteligência dos textos que torne viável o seu objetivo, ao invés da que os reduza à inutilidade").

Ora, não se propôs o legislador a prestigiar o contraditório e a ampla defesa em detrimento da aplicação da lei penal, tanto que decretou a suspensão obrigatória do curso da prescrição. Deste premissa decorre, pois, como corolário lógico, que frustrada restaria a mens legis se a extinção da punibilidade resultasse inexorável da sua aplicação.

Por fim, cumpre determinar se a nova orientação legal terá o condão de alterar o curso dos feitos já instaurados ou se, ao contrário, aplicar-se-á tão somente aos fatos ocorridos após o início de sua vigência.

O exame inicial pode demonstrar ser correta a primeira das opções, ao argumento de que, em se tratando de norma processual - vale dizer, posta no Código de Processo Penal - tem ela aplicação imediata (artigo 2º do estatuto processual pátrio).

Não obstante, e aqui sim cumpre discutir a natureza jurídica da prescrição penal, não parece ser esta a melhor orientação.

Tem o instituto da prescrição irretorquíveis efeitos no âmbito do direito material por extinguir não apenas a via judicial, mas o próprio direito de punir de que é titular o Estado.

Assim sustenta Damásio E. de Jesus, para quem a prescrição constitui matéria de direito penal, não de direito processual penal (13). Transcrevendo Oscar Vera Barros, assevera que os efeitos processuais ocasionados "não são mais que uma conseqüência da extinção do poder punitivo do Estado no caso concreto" (14).

Deste modo, posto que seja tratado em nosso ordenamento jurídico tanto pelas leis substantiva e adjetiva, o instituto tem caráter eminentemente material.

Impende, igualmente, salientar que, ao tratar de causa extintiva de punibilidade, a nova norma traz tratamento mais rigoroso, pois que determina a suspensão do prazo prescricional e, ipso facto, dificulta que se ponha fim ao jus puniendi do Estado.

Qualquer alteração legislativa neste sentido há de obedecer, outrossim, ao princípio tempus regit actum, adotado pelo artigo 5º, inciso XL, da Lex legum.

Poderíamos, ad argumentandum, admitir a aplicação do dispositivo em seus aspectos processuais, autorizando-se a mera suspensão do feito sem repercussão no âmbito prescricional. Todavia, e aqui vale o argumento já expendido, tal entendimento feriria a intenção da norma, que em hipótese alguma valida o abandono do esforço estatal de responder, mediante a aplicação de sanção de natureza penal, ao ato criminoso perpetrado pelo réu.

De valia, neste sentido, a consulta ao texto encaminhado ao Poder Legislativo, por ressaltar expressamente que "a proposta integra um elenco de medidas destinadas ao aperfeiçoamento da prestação jurisdicional penal, proporcionando-lhe maior celeridade, racionalidade e eficácia, o que também trará reflexos na redução da impunidade" (Mensagem nº1.629, de 29 de dezembro de 1994).

Vê-se, pois, que a lei nº 9.271/96, na porção que altera os artigos 366 e 368 do Código de Processo Penal, há de ter sua vigência limitada aos delitos encetados após o início de sua vigência.


  1. Von Listz, Franz - "Tratado de Derecho Penal", tradução de Jiménez de Asúa, da 20ª edição alemã, 2ª edição, Madri, 1929, volume 3º, pág. 403, in Carvalho Filho, Aloysio, "Comentários ao Código Penal", 2ª edição, Rio de Janeiro, 1953, volume IV, comentários ao artigo 108, nº IV, pág. 201.
  2. Antolisei, Francesco - "Manual de Derecho Penal", 8ª edição, Bogotá, Colômbia, 1988, volume I, pág. 535.
  3. Beccaria, Cesare - "Dos Delitos e das Penas", Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 1996, página 101.
  4. Apud Porto, Antônio Rodrigues - "Da Prescrição Penal", José Bushatsky Editor, 2ª edição, São Paulo, 1977, página 17.
  5. Posição análoga foi adotada por Ferri, "Sociologia Criminale", Zerboglio, "Della Prescrizione Penale" e Prins, "Science Pénale et Droit Positif", como bem pontua Calón, Eugenio Cuello - "Derecho Penal", 17ª edição, Barcelona, 1975, Tomo I, página 759, note 3.
  6. "Trattato de Diritto Penale".
  7. "Programa del Corso di Diritto Criminale".
  8. Op. Cit., página 758.
  9. Espínola Filho, Eduardo - "Código de Processo Penal Brasileiro", Livraria Editora Freitas Bastos, São Paulo, 1942, volume III, página 32.
  10. Bruno, Aníbal - "Direito Penal", Editora Forense, 3ª edição, Rio de Janeiro, 1967, Tomo III, página 211.
  11. É importante anotar a existência, mesmo hoje, de considerável parcela de julgadores que, sem oposição ministerial, admitem a oitiva de testemunhas de defesa mesmo que arroladas a destempo, desde que sem o intuito meramente procrastinatório.
  12. Digesto, livro 34, título 5, fragmento 12, apud Maximiliano, Carlos - "Hermenêutica e Aplicação do Direito", Editora Forense, 9ª edição, Rio de Janeiro, 1981, página 249.
  13. Jesus, Damásio Evangelista de - "Prescrição Penal", Editora Saraiva, 7ª edição, São Paulo, 1992, página 21. Veja, ainda, Costa Jr., Paulo José da - "Comentários ao Código Penal", Editora Saraiva, 3ª edição, São Paulo, 1989, página 488. A doutrina pátria ecoa as lições alienígenas, entra as quais as sustentadas por Max Lorenz, "Die Verjährung im Strafrecht" (Praga, 1934, página 53), Von Liszt-Schmidt, "Lehrbuch" (25ª edição, página 437) e Beling, "Grundzüge des Strafrechts" (Tübingen, 1930, página 61).
  14. Barros, Oscar Veras - "La prescripción en el Código Penal", EBA, Buenos Aires, 1960, página 44.

 

Página Inicial | E-mail


1