Ministério Público da União
Ministério Público do Distrito Federal e Territórios

13ª e 14ª Promotorias de Justiça Criminal de Brasília

 

O DESCUMPRIMENTO DA TRANSAÇÃO PENAL

Rogério Schietti Machado Cruz
Promotor de Justiça do MPDFT

I. INTRODUÇÃO.

Inúmeros têm sido os questionamentos levantados por doutrinadores e operadores do Direito acerca da novel Lei 9.099/95, que introduziu, no ordenamento jurídico pátrio, os Juizados Especiais Cíveis e Criminais.

No âmbito dos Juizados Especiais Cíveis pode-se afirmar que a sua introdução no sistema não gerou, a rigor, significativa alteração dogmática, já que a idéia da composição consensual dos litígios de natureza civil, bem assim a possibilidade de adoção de mecanismos alternativos ao processo civil , já encontravam guarida legal, ainda que de forma mais tímida .

À sua vez, fala-se em verdadeira "revolução copérnica" na estrutura e no sistema da nossa Justiça Criminal, tão arraigada a dogmas que prevaleceram durante longo período de nossa história jurídica.

Entre os dogmas rompidos pela instituição dos Juizados Especiais Criminais destaca-se o inerente à obrigatoriedade da ação penal pública, a qual, doravante, passa a reger-se também pelo princípio da oportunidade regrada, ou discricionariedade regulada , embora nos pareça mais acertada a idéia de que se trata, agora, tão somente de ver o mesmo princípio da obrigatoriedade da ação penal pública sob uma ótica menos fatalista, sendo preferível, assim, denominá-lo de princípio da "obrigatoriedade mitigada".

Esta ruptura dogmática revela-se, predominantemente, no instituto da transação penal, previsto no art. 76 da Lei 9.099/95, que consiste na permissão a que Ministério Público e o autor do fato celebrem acordo pelo qual este último aceita submeter-se a uma pena alternativa (de multa ou restritiva de direito), como forma de evitar-se o processo e seus efeitos deletérios.

Em torno deste instituto - que é a mais evidente expressão legal da nova justiça criminal baseada no "espaço de consenso" - têm-se concentrado as mais interessantes discussões encetadas na ainda escassa literatura já publicada e nas palestras já proferidas pelos autores que se ocuparam do tema.

No rol desses questionamentos, poderíamos enumerar os seguintes:

    1. A proposta de transação penal é de iniciativa exclusiva do Ministério Público?
    2. Pode o juiz, ex officio, "celebrar" transação penal ?
    3. Pode o juiz estabelecer pena diversa da acordada pelas partes?
    4. É possível transação penal em relação a crime de ação penal privada?
    5. Trata-se a proposta de transação penal de uma faculdade do Ministério Público ou de um direito subjetivo do autor do fato que preenche os requisitos legais para o benefício?
    6. Não cumprida a pena aceita pelo autor do fato, que conseqüência resultará do inadimplemento?

Vê-se, claramente, que cada uma destas questões exigiria ou comportaria uma ampla e aprofundada abordagem, o que nos leva, então, a escolher apenas a última como objeto desta nossa despretensiosa exposição.

Haveremos, pois, de procurar estabelecer, ante a constatação de que a Lei 9.099/95 não nos fornece, claramente, uma adequada resposta ao problema, que conseqüência decorrerá da inexecução, pelo autor do fato, do acordo celebrado em audiência preliminar, pelo qual aceitou submeter-se a uma pena diversa da privativa de liberdade.

A maioria dos autores que já se pronunciaram acerca do tema sustentam que, não cumprida, pelo autor do fato, a pena de multa ou a pena restritiva de direito proposta pelo Ministério Público, e homologada, após concordância daquele, pela autoridade judiciária, a solução seria proceder-se à conversão, quer da reprimenda pecuniária, quer da sanção restritiva de direito, em pena privativa de liberdade .

No tocante à conversão da pena de multa em pena privativa de liberdade, ou mesmo em pena restritiva de direito, a fundamentação legal estaria no art. 85 da própria lei dos Juizados, e também no art. 51 do Código Penal e no art. 181, § 1º da Lei de Execução Penal.

Já no que concerne à pena restritiva de direito, ante o silêncio da Lei 9.099/95, aplicar-se-iam os preceitos inscritos nos artigos 45 do Código Penal e 181 da Lei de Execução Penal, que permitem a conversão daquela reprimenda em sanção privativa de liberdade.

Não divisamos, todavia, acerto nesse entendimento, concessa venia de seus adeptos.

Os argumentos contrários a tal posicionamento dizem respeito ao princípio da nulla poena sine lege, à proibição de analogia in malan parte no Direito Penal e, como complemento deste segundo argumento, a falta de similitude entre as situações reguladas no Código Penal e na Lei de Execução Penal com a situação específica e peculiar tratada no art. 76 da Lei dos Juizados.


II. DA FALTA DE PREVISÃO LEGAL

O sistema dos Juizados Especiais Criminais é explícito na embasamento sobre dois objetivos a orientarem o respectivo processo: reparação dos danos sofridos pela vítima e a aplicação de pena não privativa de liberdade (art. 62 da Lei 9.099/95).

No que pertine ao segundo daqueles objetivos que norteiam a atividade processual nos Juizados Especiais Criminais , convém assentar que, inobstante se trate de uma meta a ser procurada, não se pode eliminar a possibilidade de que se imponha ao réu processado por crime de pequeno potencial ofensivo uma pena privativa de liberdade, a qual, todavia, somente poderá ser infligida em razão de sentença penal condenatória, prolatada ao cabo do procedimento sumariíssimo previsto nos artigos 77 e seguintes da Lei 9.099/95.

Parece-nos inquestionável, todavia, que os efeitos penais decorrentes de uma sentença condenatória são bem diferentes dos efeitos advenientes de um acordo celebrado pelo Ministério Público e pelo autor do fato, em momento ainda anterior à formação da relação jurídica processual, o que pressupõe, por conseguinte, a impossibilidade lógica e jurídica de uma sentença com caráter condenatório, prolatada após a instrução processual, em que se discute, efetivamente, o mérito da pretensão punitiva, em que se esgotam meios de defesa com os recursos a ela inerentes, onde se busca o atingimento da verdade material, para, alfim, viabilizar a formação de um juízo positivo ou negativo de culpabilidade (lato sensu) do réu.
Em verdade, a sentença que aplica, na forma do art. 76 da Lei 9.099/95, pena não privativa de liberdade não é nem condenatória, nem absolutória, mas apenas sentença homologatória da transação penal .

Ao aceitar a proposta do Ministério Público, não está o conjecturado autor do fato reconhecendo, necessariamente, a sua responsabilidade penal pelo ilícito que lhe está sendo creditado. Também não lhe acarretará a transação penal, conforme letra expressa nos parágrafos 4º e 6º do art. 76 da Lei 9.099/95, qualquer efeito de natureza civil ou penal, servindo tão somente como circunstância impeditiva a um novo acordo no prazo de 5 anos.

Afigura-se, ademais, cristalino que o móvel que conduz o suposto autor do fato a celebrar a transação penal e a submeter-se, voluntariamente, a uma pena alternativa, é a perspectiva de que, em se negando a aceitar a proposta do Ministério Público, venha a ser criminalmente processado, com todas as "cerimônias degradantes" que um processo produz, recebendo, eventualmente, sanção penal que, além de possivelmente mais grave do que a proposta na fase preliminar, ensejará todos aqueles efeitos normais de uma sentença penal condenatória (reincidência, execução no cível etc).

Intui-se, portanto, que ambos os protagonistas dessa transação penal buscam, com o acerto de suas vontades, evitar o processo. O Ministério Público, abdica da persecução penal, obviando a formulação de denúncia e toda a atividade processual que decorreria do exercício do ius accusationis; o autor do fato também evita o processo por ter consciência daqueles mencionados efeitos que dele poderiam decorrer, preferindo sujeitar-se a uma pena que, em sendo cumprida, permitirá a extinção da punibilidade.

Em suma, na transação penal, o autor do fato aceita submeter-se a uma pena proposta pelo Ministério Público e homologada pelo Juiz; na condenação, o autor do fato sujeita-se à execução de uma pena que lhe foi impingida, após toda uma atividade de resistência à pretensão punitiva exercitada pelo órgão acusador.

Como identificar, então, as conseqüências do descumprimento da pena?

O princípio da legalidade, positivado no art. 5., inciso XXXIX, da Carta Régia de 1988 e no art. 1. do Código Penal Brasileiro, é claro em estabelecer que "não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal" (nullun crimen nulla poena sine lege), indicando-nos, naquilo que pertine à presente discussão, não ser possível a inflição de qualquer reprimenda de caráter penal ao infrator que não esteja previamente prevista no ordenamento jurídico. Em verdade, como leciona JIMENEZ DE ASÚA, citado por Damásio de Jesus, " ... o Estado não pode castigar um comportamento que não esteja descrito em suas leis, nem punir o cidadão quando inexistente a sanctio juris cominada ao delito. Ao mesmo tempo, da lei surge uma pretensão subjetiva em favor do delinqüente, no sentido de não ser punido senão em decorrência da prática de ações e comissões por ela determinadas" .

Em relação à pena de multa aplicada em virtude de acordo, poder-se-ia sustentar que o art.85 da Lei 9.099/95 previu, expressamente, a sanção pelo seu inadimplemento, ao dizer que "não efetuado o pagamento de multa, será feita a conversão em pena privativa de liberdade, ou restritiva de direitos, nos termos previstos em lei".

No entanto, a posição topográfica do referido preceito legal - logo em seguida aos dispositivos inerentes ao procedimento sumariíssimo - bem assim, e principalmente, a nítida diferença ontológica entre a pena decorrente de transação penal e a decorrente de condenação, como já ressaltado, levam-nos à convicção de que a aludida conversão da pena de multa em pena restritiva de direito ou em pena privativa de liberdade somente será possível na hipótese de ter sido o réu condenado em processo judicial do qual resultou o acolhimento da pretensão punitiva.

No tocante ao descumprimento da pena restritiva de direito aplicada por força de acordo celebrado pelas partes, a lei é omissa, dizendo apenas que "a execução das penas privativas de liberdade e restritiva de direitos, ou de multa cumulada com estas, será processada perante o órgão competente, nos termos da lei" (art. 86 da Lei 9.099/95). Logo, nem mesmo aquele raciocínio forçado que poderia, dentro de uma interpretação mais rigorosa, entender como passível de conversão a pena de multa inadimplida, seria utilizável nesta segunda hipótese, em que a pena acordada e descumprida limitou-se à restrição de um direito (lato sensu).


III. DA IMPOSSIBILIDADE DO RECURSO À ANALOGIA

Sendo assim, considerando que a Lei 9.099/95 não previu expressamente a sanção processual ou material decorrente do não cumprimento da pena aceita pelo autor do fato no acordo a que alude o art. 76 - ao menos no que respeita à pena restritiva de direito - seria cabível colmatar a lacuna legal com o uso da analogia?

A resposta, à evidência, é negativa.

Como corolário do princípio da legalidade, não se admite a aplicação analógica em situações referentes a normas penais que prevêem o delito e suas respectivas penas, como também em relação às normas que integram a atividade punitiva do Estado, limitando os direitos do indivíduo. É a proibição do uso da analogia in malam partem.

Como explica a autoridade de F. ANTOLISEI, "L'estensione analogica di una norma che ridondi a danno dell'imputato, sia che porti a punirlo per un fatto che non sia espressamente previsto dalla legge, sia che porti ad applicargli una pena che non sia stabilita dalla legge, sia, infine, che abbia comunque per effetto l'aggravamento dela posizione del reo - e cioé la così detta analogia in malam partem - non é consentita nel nostro diritto "

Nas hipóteses que ora estamos a enfrentar há, pelos autores que invocam preceitos do Código Penal e da Lei de Execução Penal, emprego de dispositivos que acarretam dano ao autor do fato, agravando, induvidosamente, sua posição jurídica.


IV. DA FALTA DE SIMILITUDE DAS SITUAÇÕES

É este mais um aspecto a impedir o uso analógico na situação específica que estamos analisando.

Convém, neste ponto, trazer o precioso lecionamento de CARLOS MAXIMILIANO, que, em sua mais consagrada obra, delimita o alcance e o significado da analogia, aduzindo que:
    " Os fatos de igual natureza devem ser regulados de modo idêntico. Ubi eadem legis ratio, ibi eadem legis dispositio:" onde se depare razão igual à da lei, ali prevalece a disposição correspondente, da norma referida."..."O manejo acertado da analogia exige, da parte de quem a emprega, inteligência, discernimento, rigor de lógica; não comporta uma ação passiva, mecânica. ..."Pressupõe: 1º uma hipótese não prevista, senão se trataria apenas de interpretação extensiva; 2º a relação contemplada no texto, embora diversa da que se examina, deve ser semelhante, ter com ela um elemento de identidade; 3º este elemento não pode ser qualquer, e, sim, essencial, fundamental, isto é, o fato jurídico que deu origem ao dispositivo. Não bastam afinidades aparentes, semelhança formal; exige-se a real, verdadeira igualdade sob um ou mais aspectos, consistente no fato de se encontrar, num e noutro caso, o mesmo princípio básico e de ser uma só a idéia geradora tanto da regra existente como da que se busca. A hipótese nova e a que se compara com ela, precisam assemelhar-se na essência e nos efeitos; é mister existir em ambas a mesma razão de decidir. Evitem-se as semelhanças aparentes, sobre pontos secundários. O processo é perfeito, em sua relatividade, quando a frase jurídica existente e a que da mesma se infere, deparam como entrosadas as mesmas idéias fundamentais"

Quanto à possibilidade da conversão da pena de multa em pena privativa de liberdade, já vimos que não seria um verdadeiro absurdo jurídico sustentar a aplicabilidade do art. 85 da Lei 9.099/95, muito embora a interpretação mais lógica e razoável não socorra tal solução.

Contudo, na hipótese do descumprimento de uma pena restritiva de direito, a proibição da aplicação analógica in malam partem se aliaria a outro fator para inviabilizar o uso do art. 45 do Código Penal e do art. 181 da Lei de Execução Penal: a falta de semelhança, de verdadeira relação de identidade, entre a aplicação de pena restritiva de direito como decorrência de transação penal e a aplicação de pena restritiva de direito como decorrência de uma condenação a pena privativa de liberdade.

Deveras, as penas restritivas de direitos "são aplicáveis, independentemente de cominação na parte especial, em substituição à pena privativa de liberdade, fixada em quantidade inferior a 1 (um) ano, ou nos crimes culposos" (art. 54 do CP), significando que, ao sentenciar, deve o juiz, primeiramente, fixar a pena privativa de liberdade concretizada no decreto condenatório, para, somente então, proceder à conversão legal.

Em outras palavras, na situação regulada pelo Código Penal, primeiro se condena à pena privativa de liberdade, substituindo-a, em seguida, nos casos permitidos; há, efetivamente, um juízo positivo de procedência da pretensão punitiva, exercitada através de um regular processo, no qual se exercitou a ampla defesa e se produziram provas tendentes à averiguação do fato imputado ao réu.

Bem diversa é a hipótese regulada no art. 76 da Lei 9.099/95. Com efeito, aqui não se converte pena privativa de liberdade em restritiva de direito, mas se aplica esta diretamente; aqui não se condena, apenas se homologa um acordo; aqui, enfim, não há exercício de pretensão punitiva, mas, ao contrário, a renúncia, pelo Ministério Público, de exercer o ius accusationis, face à concordância do réu a, sem discutir culpa, cumprir uma determinada pena.

Portanto, na situação regulada pelo Código Penal, a conversão (rectius: reversão) prevista no art. 45 somente é possível porque anteriormente o réu fora condenado à pena privativa de liberdade, o que, à toda evidência, não ocorre na hipótese de transação penal, por expressa vedação legal.

Como, então, dar o mesmo tratamento jurídico a duas situações tão distintas?

O caminho a buscar-se deverá ser outro.


V. POSSÍVEL ALTERNATIVA

Pode parecer, ao paciente leitor deste ensaio, que nenhuma conseqüência, então, advirá do descumprimento do acordo celebrado pelo Ministério Público e pelo autor do fato, já que não se lhe pode impor a conversão da pena de multa ou restritiva de direito em pena privativa de liberdade. Existe, porém, uma alternativa possível, que deve ser buscada para não se gerar a impunidade do autor do fato ilícito, frustrando a eficiência do sistema implantado pelos Juizados Especiais Criminais.

Conforme já dito linhas atrás, o que Ministério Público e autor do fato objetivam, ao celebrar o acordo penal, é precisamente evitar a instauração da relação processual.

Logo, não cumprido o acordo, a única conseqüência possível do inadimplemento quer da pena de multa, quer da pena restritiva de direito, será a insubsistência daquele ato, ensejando ao Ministério Público adotar a providência que buscou evitar ao oferecer proposta alternativa de pena ao autor do fato: o oferecimento de denúncia e o efetivo exercício do ius accusationis.

Esta, aliás, é a posição de Pedro Henrique Demercian e Jorge Assaf Maluly, que, acerca do tema, anotam que ... "a transação não tem por objeto imediato deixar de punir o suposto autor de uma infração penal, mas sim a não propositura da ação penal, evitando-se, de maneira secundária, os efeitos deletérios daí resultantes. Nesses termos, a rescisão do acordo não pode redundar na imediata aplicação de penal, mas sim naquilo que foi objeto da transação, ou seja, o processo penal" .

Dessarte, descumprido, pelo autor do fato a sua prestação, desfaz-se o acordo, com a conseqüente possibilidade do Ministério Público oferecer denúncia, ou mesmo adotar outra providência de natureza persecutória, como requisitar diligências investigatórias ou, dada a eventual complexidade do caso, a instauração de inquérito policial. Vislumbra-se, na hipótese, uma sanção de natureza processual, que não importa, em si mesma, qualquer agravamento ou prejuízo ao autor do fato, que tão somente retorna à situação jurídica anterior à celebração do acordo.

Entendemos, todavia, que qualquer uma dessas providências deverá ser precedida de decisão judicial que, após oportunizar o contraditório à defesa, declare insubsistente a transação penal.

Esta alternativa afigura-se-nos a única possível de lege lata. Nada impede, porém, e até seria recomendável, que o legislador suprisse a deficiência da Lei 9.099/95, prevendo, expressamente, a conseqüência jurídica do inadimplemento da transação penal pelo autor do fato.

 

Página Inicial | E-mail

1