Ministério Público da União
Ministério Público do Distrito Federal e Territórios

13ª e 14ª Promotorias de Justiça Criminal de Brasília

 

A EFICÁCIA DO PROCESSO FACE À CITAÇÃO EDITALÍCIA

Rogério Schietti Machado Cruz
Promotor de Justiça do MPDFT


I. AS ALTERAÇÕES LEGISLATIVAS

Publicada, no DOU de 18/4/96, a Lei 9.271, de 17/4/96, que altera os artigos 366, 367, 368, 369 e 370 do CPP, passamos a ter um novo tratamento jurídico às comunicações dos atos processuais, com a introdução das seguintes inovações:
    1a. suspensão do processo e do prazo prescricional na hipótese de o réu, citado por edital, não comparecer ou não constituir advogado, possibilitando-se, todavia, a produção de provas urgentes e decretação de prisão preventiva do acusado (art. 366);
    2a. nova definição das hipóteses de revelia, não havendo mais impedimento a que o réu se ausente, temporariamente, da comarca onde está sendo processado, independentemente de comunicação à autoridade processante (art. 367);
    3a. eliminação da distinção, para fins de citação do réu residente no estrangeiro, da inafiançabilidade ou afiançabilidade da infração a ele imputada, estabelecendo-se que, conhecido o endereço do acusado, sua citação se dará por carta rogatória, suspendendo-se o curso do prazo de prescrição até o seu cumprimento (art. 368);
    4a. eliminação da intermediação do Ministro da Justiça na citação que houver de ser feita em legação estrangeira, que passa a ser efetuada por carta rogatória (art. 369);
    5a. melhor disciplinamento das intimações através de publicação, permitindo-se, subsidiariamente, formas alternativas de comunicação dos atos processuais (art. 370, §§ 1º e 2º).

De todas essas alterações no trato jurídico das formas de comunicação dos atos processuais, a primeira delas é, induvidosamente, a que maior impacto produzirá na práxis forense, com inevitáveis reações e polêmicas em torno da opção do legislador.

Tal inovação legislativa, de profunda coragem e com salutar caráter garantista, foi justificada pelo diagnóstico de que a hipótese de citação por edital "... leva à incerteza quanto ao conhecimento, pelo acusado, da acusação a ele imputada, o que pode motivar a alegação posterior, de cerceamento de defesa. Com efeito, os princípios da ampla defesa e do contraditório, adotados no ordenamento jurídico brasileiro, e a previsão da Constituição Federal de que ninguém será privado de liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal (art. 5 º, LVI) conferem o respaldo legal à nova pretensão do art. 366, ainda mais quando a ela se acrescenta (§ 1 º) a autorização para que se produzam, antecipadamente, as provas consideradas de maior urgência" (Justificação à Mensagem n º 1.269, de 1994, do Poder Executivo).


II. SITUAÇÕES DE REVELIA NO PROCESSO PENAL PÁTRIO

No quotidiano, são frequentes as ações penais que chegam ao seu termo final sem que tenha o acusado efetivamente participado da relação jurídica, confiada, em tais casos, a defensores públicos e advogados dativos, que amiúde exercitam mera defesa formal, por carência justamente de informações que somente poderiam ser obtidas através de um contato pessoal com o réu. Impende, não obstante, diferenciar as situações que subjazem ao redor desta questão, e que, portanto, deveriam engendrar distinto tratamento legal.

A primeira delas, talvez a mais frequente, verifica-se quando o réu, conquanto interrogado durante as investigações preliminares à ação penal, não é localizado, por motivo de mudança, no endereço fornecido por ocasião de seu interrogatório policial.

Outra hipótese, também muito encontradiça no dia-a-dia do fórum, refere-se à situação em que, desde o início das investigações policiais, não se logrou descobrir o endereço ou o paradeiro do investigado.

Não raras vezes, outrossim, o réu, sabendo que contra ele instaurou-se um processo criminal, deliberadamente foge para não ser alcançado pela Justiça, ou, então, evita, com uso de subterfúgios e com muita astúcia, ser pessoalmente citado, aguardando eventual condenação para, ante a prova de que jamais deixou de residir no endereço onde fora inicialmente procurado, obter, em grau de recurso, revisão criminal, ou mesmo através de habeas corpus, e com muito provável sucesso, a anulação do processo por vício da citação promovida por edital.

Por último, há a situação menos ocorrente em que o réu, após ser regularmente citado, foge para evitar os efeitos decorrentes da ação penal, ou simplesmente muda de endereço sem informar o fato ao juízo processante.

Mostra-se evidente que, nesta derradeira hipótese, nada mudará com a novel lei, porquanto a citação do réu operou-se por mandado e não por edital, devendo o processo, conseguintemente, seguir à sua revelia.

Afigura-se, por sua vez, elogiável a opção legislativa de suspender o curso do processo quando ocorre alguma das duas primeiras situações, nas quais a revelia do réu derivou quer de um mero comportamento desidioso ou comodista - quando muda de endereço e não faz a devida comunicação ao juízo processante - quer de um total desconhecimento de que o Estado o processa criminalmente.

Com efeito, aliando-se aos países de legislação processual moderna e de inspiração democrática, corrige-se uma situação que, a par de resvalar em garantias constitucionais do réu no processo criminal, gerava toda uma atividade processual inútil, porquanto de nada adiantava processar e condenar alguém que não tinha conhecimento da acusação, se, ao cabo de toda a atividade persecutória, a eficácia da prestação jurisdicional dependia de ser o condenado preso por força de mandado judicial.

Parece-nos, entretanto, que não se pode dar o mesmo tratamento àquelas situações em que o réu foge ou evita a sua citação pessoal, pois a suspensão do processo até que seja o réu pessoamente citado premiará a sua astúcia, em prejuízo do interesse estatal e societário em que a conduta ilícita seja devidamente apurada. Em outras palavras, o Estado terá o exercício de sua jurisdição penal sobrestada simplesmente porque o réu, deliberadamente, "driblou" a lei penal, valendo-se de uma alternativa criada pela lei instrumental.

Desafortunadamente, o novo diploma legal não percebeu esta realidade, involuntariamente estimulando, por consequência, a fuga e a chicana processual, e gerando, ipso facto, a impunidade daqueles a quem a lei não procurou defender (lembremo-nos da justificativa ao projeto de lei, em que se evidencia a intenção de proteger os acusados que não têm conhecimento de que estão sendo processados).


III. CITAÇÃO POR HORA CERTA ?

De iure condendo, por que não se permitir algo semelhante à citação por hora certa, usada no processo civil?

Para coadunar o direito do réu em ter conhecimento da acusação contra si formulada, com o dever do Estado de exercitar a jurisdição penal ante a prática de um crime ou contravenção, parece-nos ser razoável a possibilidade de efetivar-se a citação do réu que se oculta para não ser citado, ou do que foge antes da sua chamada ao processo, através de mecanismo semelhante ao adotado na jurisdição civil.

Deveras, observa-se que o anacronismo do processo penal brasileiro engendra algumas perplexidades. Pelo sistema não mais vigente, o réu que se ocultava para não ser citado, ou que fogia, era "punido" com uma citação ficta e uma condenação à sua revelia. Com o advento da Lei 9.271/96, embora ainda citado por edital, passa a ser "premiado" com a suspensão do processo. Será que a citação com hora certa - forma de citação que, se não atende plenamente à certeza do chamamento, confere uma dose razoável de probabilidade do atingimento do fim daquele ato, infinitamente maior da que decorre de um edital publicado, em pequenas letras, na imprensa escrita - não constituiria um caminho alternativo para compatibilizar os interesses do réu com os da sociedade, naquelas específicas situações em que aquele se oculta para não ser citado, ou que foge para não ser alcançado pela Justiça?

O fato é que, na sistemática ora adotada pela recente lei, será muito mais vantajoso àquele que não confia na sua própria inocência furtar-se à lei, a exemplo do que já ocorre há com os réus pronunciados por crimes dolosos contra a vida inafiançáveis, cujo julgamento se condiciona à colaboração do pronunciado em apresentar-se ao juízo da causa, ou à eficiência da Polícia em capturar o foragido.


IV. INSTRUMENTOS ÚTEIS PARA A EFICÁCIA DO SISTEMA

Vimos que, pela nova lei, o processo de réu citado por edital, que não comparecer ou não constituir advogado, permanecerá suspenso até que venha ele a ser localizado.

Para evitar-se que a nova sistemática engendrasse a total ineficácia do futuro provimento jurisdicional, previram-se três alternativas, uma cogente e duas facultativas, a acompanhar a norma principal, a saber: a) a suspensão do prazo prescricional; b) a produção de provas urgentes; c) a decretação da prisão preventiva do réu.

Aparenta, contudo, óbvio que a suspensão do prazo prescricional relativo ao ilícito imputado ao réu não evitará que, dependendo da duração da suspensão do processo, reste prejudicado o encontro da verdade material, face à dificuldade de se reunirem provas idôneas a lastrear a narrativa constante da peça acusatória, ou mesmo a versão apresentada pelo réu. É evidente que, após alguns anos, será muito pouco provável que as eventuais testemunhas do delito, ou mesmo a vítima, consigam, se ainda estiverem vivas ou se localizadas, recordar-se de um fato tão longínquo no tempo. Logo, estará preservada, apenas, a prova pericial ou documental eventualmente já colhida antes da suspensão do processo, insuficientes, muitas das vezes, para firmar a convicção judicial acerca do fato objeto da ação penal.

A sua vez, também não será difícil imaginar o nonsense jurídico de uma sentença condenatória prolatada após longos anos de suspensão do processo, quando, então, já terá a reprimenda penal se despido de todo o seu sentido pedagógico, máxime naqueles casos em que o réu demonstrou comportamento social adequado, sem qualquer outro registro criminógeno a caracterizá-lo como merecedor de uma pena "perdida" no tempo.

Certamente será muito mais fácil, doravante, postular e obter o encarceramento cautelar do réu "para assegurar a aplicação da lei penal" (dada a sua possível ineficácia e inutilidade se aplicada muito tempo depois dos fatos) ou mesmo "por conveniência da instrução criminal" (prejudicada enquanto durar a suspensão do processo). No entanto, não se poderá esquecer que a restrição da liberdade do cidadão é medida excepcional, adotada apenas como ultima ratio, quando presente a necessidade imperiosa da medida (periculum libertatis).

Minimizando os efeitos deletérios dessa suspensão do processo, quer-nos parecer, portanto, conveniente adotar-se uma interpretação flexível da expressão "provas urgentes", de tal sorte a que não apenas enquadremos nesse conceito aquelas provas ditas irrepetíveis, mas também todas as provas que se revelarem passíveis de um enfraquecimento pela ação do tempo, justificando, dessarte, a sua produção ad perpetuam rei memoriam.

Nessa linha de raciocínio, deve qualificar-se como prova urgente também a testemunhal, já que, como ressaltado, o depoimento de uma testemunha ocular, pela sua relevância e pelo risco de que venha a faltar ou fragilizar-se com o tempo, não pode ser transferido para uma data futura e incerta.

O fundamento legal dessa produção antecipada da prova testemunhal seria encontrada no artigo 225 do Código de Processo Penal ( ... receio de que ao tempo da instrução criminal já não exista ... - a testemunha), com apoio subsidiário no art. 92 do mesmo Código, onde, acerca de questões prejudiciais, o legislador qualificou a prova testemunhal também como urgente.

São essas algumas das preocupações que nos ocorreu externar acerca de uma das modificações introduzidas pela Lei no sistema processual penal pátrio, e que hão de merecer acréscimos ou críticas dos aplicadores do direito, em prol da otimização e credibilidade da Justiça.

 

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