Ministério Público da União
Ministério Público do Distrito Federal e Territórios

13ª e 14ª Promotorias de Justiça Criminal de Brasília

 

JUSTIÇA MILITAR: UMA OUTRA VISÃO

Nísio E. Tostes Ribeiro Fº.
Promotor de Justiça do MPDFT

Após os episódios de Diadema e Cidade de Deus, reacendeu-se a discussão sobre o julgamento de militares pela Justiça Militar, bem como sobre a própria existência da Polícia Militar, culminando na aprovação pela Câmara dos Deputados de Projeto de Lei de autoria do Deputado Federal Hélio Bicudo e no encaminhamento de Proposta de Emenda Constitucional por parte do Governador de São Paulo, Dr. Mário Covas. Tais questões foram recentemente levadas ao conhecimento da Classe pelo colega Dr. Anderson Pereira de Andrade na edição de maio de 1997 do Jornal da Associação .

Ocorre que na divulgação e análise de tais fatos, diversos aspectos foram deturpados pela imprensa, seja por desconhecimento sobre o tema, seja por ingenuidade.

Inicialmente, deve ser esclarecido que a atribuição da atividade de policiamento ostensivo a corporações com investidura militar não foi uma criação brasileira e, muito menos, constitui resquício da ditadura militar instaurada com o golpe de 1964. Ao contrário, tem-se notícia que no principado de Augusto, na antiga Roma, as atividades de policiamento preventivo e ostensivo eram exercidas pela guarda pretoriana e por três coortes (as urbanae cohortes), ambas unidades militares.

Como observa Paulo Marino Lopes , durante o regime feudal as corporações militares de modelo romano foram completamente desorganizadas, face ao desaparecimento da noção de pátria, sendo substituídas por tropas formadas em grande parte por mercenários.

No século XIII, deu-se na França a reorganização do modelo de polícia ostensiva militar, funcionando próximo ao exército e vinculada a um marechal. Durante as campanhas de Napoleão Bonaparte, este modelo francês de polícia militar (gendarmerie) foi levado para os países conquistados, e daí espalharam-se ao redor do mundo. No Brasil, o modelo francês foi introduzido por D. João VI, em 13 de maio de 1809, na forma de uma Divisão da Guarda Real de Polícia, que atualmente é a Polícia Militar do Distrito Federal.

O modelo da gendarmerie francesa repercutiu mesmo na Inglaterra, notadamente quando Sir Robert Peel estruturou a Metropolitan Police em 1829, criando um modelo policial paramilitar, com organização militar mas status civil , que influenciou os países anglo-saxões.

Assim, além do Brasil, o policiamento preventivo e ostensivo incumbe a corporações militares na França (Gendarmerie), Itália (Carabineri), Espanha (Guarda Civil, a despeito do nome), Portugal (Guarda Nacional Republicana), Suíça (Gendarmerie Genevoise), Bélgica (Gendarmerie Belga), Luxemburgo (Gendarmerie Luxemburguese), Holanda (Konin Klijk Marechausée), Argélia (Gendarmerie Algerienne), Marrocos (Gendarmerie Marocaine), Tunísia (Guarda Nacional Tunisina), Argentina (Gendarmeria Nacional), Canadá (Police Montée Canadienne), Chile (Carabineiros), Venezuela (Força Armada de Cooperação), Peru (Força Policial), Colômbia (Polícia Nacional), Áustria, Turquia, Síria, Irã, Vietnã, Camboja, Laos e Camarões, entre outros países.

Um caso híbrido ocorre nos Estados Unidos, em que a função de polícia preventiva é exercida primeiramente por uma polícia com status civil, mas com estrutura militar, hierarquizada, com sargentos, tenentes, capitães, etc., a cargo dos Condados (New York Police Departament, Los Angeles Police Departament, o que seria o correspondente às guardas municipais), tendo como reserva uma corporação militar (Army National Guard). Observe-se que existe nos Estados Unidos uma forte tendência de militarizar ainda mais as polícias, havendo uma iniciativa de recrutamento dos seus quadros entre os militares das forças armadas. Na Inglaterra, por outro lado, existe cogitação de militarizar a guarda metropolitana.

Um segundo aspecto se relaciona à proposta de emenda constitucional apresentada pelo Governador de São Paulo, cópia mal feita do modelo americano de polícia. Por esta proposta as atividades de polícia ostensiva e judiciária seriam exercidas pela Polícia Civil, cabendo à Polícia Militar as funções de manutenção da ordem social e segurança interna do Estado e policiamento de trânsito.

Ocorre que a própria Ouvidoria da Polícia de São Paulo constatou, no ano de 1996, mais ocorrências envolvendo a polícia civil (1.692) do que a polícia militar (956). Isto apesar do fato de a Polícia Militar de São Paulo ter mais do que o dobro do efetivo da Polícia Civil (são 77.374 policiais militares e 33.748 policiais civis) . A própria imprensa já noticiou que a Polícia Civil de São Paulo está envolvida em mais crimes que a Polícia Militar . Ora, a proposta do Governador de São Paulo vai fundir uma estrutura imperfeita a outra mais imperfeita ainda. Qual será o resultado disso?

Outrossim, a nossa experiência demonstra que a Polícia Militar é muito melhor organizada do que a Polícia Civil, graças à obediência aos princípios da hierarquia e disciplina, sendo que as atividades de controle externo por parte do Ministério Público se desenvolvem melhor junto à Polícia Militar.

Por fim, não podemos deixar de nos manifestar sobre as inúmeras críticas que a Justiça Militar vem recebendo por parte dos meios de comunicação e de alguns profissionais do direito (juízes, promotores e advogados), os quais, em sua imensa maioria, nunca atuaram na Justiça Militar.

Ao contrário do que tanto se assevera, a Justiça Militar não é um órgão da Polícia Militar, mas sim um ramo do Poder Judiciário. Nela atua um Magistrado, um Promotor de Justiça e um advogado, todos civis. Dizer que um policial militar comete um crime certo da condescendência dos que apuram os fatos, juízes dos próprios colegas, equivale a dizer que o Promotor de Justiça, o advogado e, especialmente, o Juiz são membros de uma mafiosa e maquiavélica "quadrilha" formada em todo o Brasil para apaniguar bandidos fardados.

A tão falada "impunidade" também não é verdadeira. Veja-se que, em Brasília, de 291 sentenças proferidas pela Auditoria Militar, 101 foram absolutórias e 190 foram condenatórias, algumas com penas superiores a 30 anos. No Rio Grande do Sul os índices de condenação e absolvição das Auditorias Militares encontram-se em torno de 50%, percentual freqüentemente superior ao das Varas Criminais Comuns daquele Estado. Na Justiça Militar do Maranhão, no outro extremo do Brasil, no ano de 96, foram julgados 104 processos, dos quais 102 resultaram em condenação.

Por uma ironia do destino, no primeiro processo julgado pela Justiça Comum oriundo da Justiça Militar após a vigência da Lei nº 9.299/96, o Tribunal de Justiça de São Paulo reduziu uma pena de 22 anos, 6 meses e 27 dias, imposta pela 1ª Auditoria Militar de São Paulo, para 9 anos (Apelação Criminal nº 219.371-3/5, julgado em 08 de abril de 1997).

A grande verdade é que apenas por ingenuidade alguém pode acreditar que no Brasil uma pessoa vai deixar de cometer um crime por que será julgado pelo Juiz A, B ou C. Ou talvez a ingenuidade seja deste subscritor e realmente a Justiça Militar mereça ser extinta, face à alegada "impunidade". Mas se assim pensarmos, teremos que igualmente admitir o fim da Justiça Criminal comum dos Estados e do Distrito Federal, apontadas pelo Plano Nacional de Direitos Humanos como foco de impunidade, assim como da Justiça Federal, que não condena os criminosos do colarinho branco, ou do próprio Supremo Tribunal Federal, que também não condena os deputados e senadores envolvidos nos vários escândalos de corrupção noticiados com freqüência pela mídia. Mas isto é mera ingenuidade.
 

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