A reconhecida grandeza do Ministério
Público e a sua importância no cenário de
uma sociedade que se consolida na democracia são frutos
de um paulatino processo de conquistas institucionais, apoiadas
na qualidade dos serviços que temos prestado à nação
brasileira.
É certo que erramos, eventualmente,
no cumprimento de nossos misteres. Excesso de trabalho, escassez
de tempo para atualização doutrinária, falta
de percepção de qual a melhor solução
a adotar no caso concreto são tipos de erros perfeitamente
justificáveis. Todavia, alguns comportamentos funcionais
são intoleráveis para quem exerce uma parcela da
soberania estatal.
Nenhum problema há com um escritor
indolente, e nada de estranho com um ator pedante; perfeitamente
aceitável um profissional liberal mal educado, ou um comerciante
prepotente. Essas, porém, são algumas características
incompatíveis com quem exerce qualquer função
pública, notadamente quando revestida do poder de influir
no destino das pessoas.
Ah, o poder! "Não há poder
que não induza ao abuso, à extralimitação",
bem o disse Montesquieu. Como é difícil lidar com
ele, pois a todo instante somos envolvidos por sua mais pungente
aliada: a vaidade (1).
Os elogios, ou, o que é pior, as costumeiras
bajulações do meio forense nos massageiam o ego,
transformam-nos em ávidos de provar nossa capacidade e
nossas qualidades, e, por mais bem intencionados que possamos
ser, acabamos por penetrar no mundo das ilusões, no qual
não discernimos entre o irreal e o real, entre o transitório
e o permanente. Se descuidamos, surpreendemo-nos a competir com
colegas, juízes, advogados, como se todos não estivéssemos
remando na mesma direção, ainda que, eventualmente,
em embarcações distintas.
A nossa profissão é das mais
belas e, ao mesmo tempo, das mais angustiantes. Já tivemos
a oportunidade de observar (2) que os atores da Justiça Criminal
somos, em inúmeras ocasiões, porta-vozes da infelicidade
alheia, pois se eventualmente confortamos o titular de um direito
violado, ou a dor de quem foi vítima de um crime, trazemos,
por outro lado, ao autor da conduta e aos seus familiares, um
sofrimento que, muitas vezes, ao menos estes últimos não
mereceriam padecer. De fato, nossas manifestações
não se esgotam em uma folha de papel ou em uma audiência;
vez por outra, cortam a carne viva dos seus destinatários.
De lembrar, ademais, que um tribunal não
é propriamente um lugar ao qual as pessoas comparecem satisfeitas.
O autor de uma ação, o réu, a testemunha,
o perito, ou quem quer que venha a participar de uma lide, cruza
os dedos ou roga aos Céus para que tudo se resolva da melhor
maneira possível, e sem atraso.
Boa parte desse temor e dessa angústia
são causadas por nós, promotores, juízes
e advogados, que muitas vezes nos apresentamos para os consumidores
da justiça como personagens assustadores e enigmáticos,
para dizer o mínimo.
Sobre o tema, inteligente ensaio de José
Paulo Paes (3) comenta episódio em que uma senhora sentiu-se
aterrorizada com o conteúdo de um mandado de intimação
que recebera do Judiciário. Disposta a testemunhar fato
que presenciara, assustou-se aquela senhora com a forma pouco
cortês e ameaçadora com que a autoridade judiciária
a tratava naquele pedaço de papel, dizendo-lhe, em letras
garrafais, que estava intimada a comparecer à audiência,
ficando cientificada de que poderia vir a ser processada por desobediência
se deixasse de comparecer sem motivo justificado, implicando ainda
em ser conduzida coercitivamente por oficial de justiça
ou pela polícia. Conclui o articulista que essa advertência,
em letras maiúsculas, soam como um berro de "mãos
ao alto", parecendo pressupor, na testemunha intimada, a
prévia intenção de desobedecer ao primeiro
comando judicial.
Outra reflexão que devemos fomentar
diz respeito ao uso de nossa inteligência. É afirmado
que constituímos uma elite intelectual, supostamente habilitada
a encontrar ou apontar a solução justa para todo
conflito que nos é confiado. O que vemos, porém,
não raras vezes, é tal inteligência servindo
como um mero produto de raciocínios lógicos e matemáticos,
despidos de qualquer avaliação crítica e
valorativa do caso concreto. Alguns se valem da lei como um álibi,
culpando o legislador pelas suas falhas e omissões, dizendo:
"é a lei que diz assim", como se a norma legal
não permitisse múltiplas interpretações.
Certa feita, em reunião com colegas
de Parquet, manifestei a opinião de que, embora
conceituados, tecnicamente, como agentes políticos, somos,
em última análise, servidores públicos, no
sentido positivo da expressão, e que prestamos contas de
nossa atuação à sociedade,. Um dos colegas
- que hoje não mais integra a carreira do Ministério
Público - insurgiu-se contra nossa classificação,
talvez por acreditá-la uma "capitis diminutio"
às relevantes funções que exercemos...
Em verdade, o nosso trabalho consiste, essencialmente,
em servir à sociedade que nos legitimou a trabalhar em
seu benefício. Mais do que à sociedade, servimos
à humanidade, pois não fomos dotados de espírito
e matéria apenas para ocupar um espaço físico
no globo terrestre. Há um Propósito Maior. Nosso
grande desafio no campo profissional, acredito, é desempenhar
nossas funções de maneira inteligente, e, quando
refiro-me à inteligência, não faço
alusão a uma cultura jurídica livresca - algo que
qualquer pessoa com tempo e disposição à
leitura pode adquirir - mas sim ao permanente esforço mental
dirigido ao emprego do Direito como valiosa ferramenta para a
realização dos valores e das virtudes superiores
da humanidade.
Vejamos o exemplo de um juiz que se poderia
rotular como "escravo da lei", por aplicá-la
sem qualquer tipo de interpretação além da
meramente literal, despreocupado com os efeitos de sua decisão
e totalmente imune à realidade social: referimo-nos, como
um paradigma desse tipo de servidor, àquele juiz de Itaberaí
(GO), que, perguntado se lhe preocupava a possível morte
de pessoas, no cumprimento da ordem de remoção de
trabalhadores sem terra alojados em uma fazenda da região,
respondeu, comodamente: "Não. O que me preocupa é
aplicar a lei".
Esse e muitos outros exemplos se reproduzem
no dia-a-dia do fórum. Pessoas extremamente capacitadas
do ponto-de-vista intelectual não dimensionam o significado
de suas funções. Exercem o poder algumas vezes
de modo autoritário (o que é trágico), outras,
timidamente sem perceber o que podem fazer com ele, e a quem
devem emprestar seu talento.
Em direção oposta, expressando
virtudes de um verdadeiro aplicador da lei, temos exemplos bem
mais alentadores, como o seguinte, do Ministro L.V. Cernicchiaro,
ao ensinar:
- " A lei precisa ajustar-se ao princípio.
Em havendo divergência, urge prevalecer a orientação
axiológica. O direito volta-se para realizar valores. O
Direito é o trânsito para concretizar o justo. (...)
O juiz é o grande crítico da lei: seu compromisso
é com o Direito! Não pode ater-se ao positivismo
ortodoxo. O Direito não é simples forma.(...) Insista-se:
o juiz tem dever de ofício de recusar a aplicação
de lei injusta. O juiz precisa tomar consciência de seu
papel político: integrante de Poder. Impõe-se-lhe
visão crítica. A lei é meio. O fim é
o Direito" (4)
Não esqueçamos que todas essas
observações tanto valem para juízes quanto
para nós, membros do Ministério Público,
pois, "el Ministero Publico es un juez que se hace parte". (5),
tendo como meta, no processo penal, "... la realización
de derecho material y por norte inmediato la averiguación
de la verdad como única manera de cumplir eficazmente la
tarea que le es impuesta, labor que sustancialmente coincide con
la función jurisdiccional aunque, por respeto al proceso
de tipo acusatorio y al régimen moderno de la acción
pública, ambas funciones deban tener sólo formalmente
distinto significado, la una requirente, la otra decisoria". (6)
A que devemos, pois, servir nossa mente?
À forma pura, à literalidade fria de um conjunto
de palavras? Ou nos cabe, de modo equilibrado, buscar o sentido
de toda norma, sopesando os efeitos de suas possíveis interpretações,
escolhendo, dentre elas, a que produza resultados mais justos,
razoáveis e racionais? Afinal, na lição de
José Renato Nalini, "a técnica auxilia, sim,
o bom desempenho judicial. Mas a técnica desacompanhada
de ética de nada vale. Preferível a um decifrador
de códigos, o ser humano sensível e crítico,
vocacionado a transformar o universo de sua atuação
e a fazer valer os valores consagrados nos direitos dos povos".
Notas:
- Quem assistiu "O Advogado do Diabo" deve recordar-se das palavras finais do "diabo", ao dizer: "A vaidade é o meu pecado favorito".
- POR QUE ODIAR? (in Direito e Justiça, Correio Braziliense, edição de 2/6/97)
- FOLHA DE SÃO PAULO, edição de 18/9/94.
- in Revista Consulex, nº 7, jul/97
- FRANCESCO CARNELUTTI in CUESTIONES SOBRE EL PROCESO PENAL, apud ROGERIO LAURIA TUCCI e JOSÉ ROGERIO CRUZ E TUCCI, DEVIDO PROCESSO LEGAL E TUTELA JURISDICIONAL, RT, p. 48.
- JULIO MAYER, LA INVESTIGACION PENAL PREPARATORIA DEL MINISTERIO PUBLICO, Lerner, Buenos Aires, p. 99.