Ministério Público da União
Ministério Público do Distrito Federal e Territórios

13ª e 14ª Promotorias de Justiça Criminal de Brasília

 

A QUEM SERVIMOS?

Rogério Schietti Machado Cruz
Promotor de Justiça do MPDFT

A reconhecida grandeza do Ministério Público e a sua importância no cenário de uma sociedade que se consolida na democracia são frutos de um paulatino processo de conquistas institucionais, apoiadas na qualidade dos serviços que temos prestado à nação brasileira.

É certo que erramos, eventualmente, no cumprimento de nossos misteres. Excesso de trabalho, escassez de tempo para atualização doutrinária, falta de percepção de qual a melhor solução a adotar no caso concreto são tipos de erros perfeitamente justificáveis. Todavia, alguns comportamentos funcionais são intoleráveis para quem exerce uma parcela da soberania estatal.

Nenhum problema há com um escritor indolente, e nada de estranho com um ator pedante; perfeitamente aceitável um profissional liberal mal educado, ou um comerciante prepotente. Essas, porém, são algumas características incompatíveis com quem exerce qualquer função pública, notadamente quando revestida do poder de influir no destino das pessoas.

Ah, o poder! "Não há poder que não induza ao abuso, à extralimitação", bem o disse Montesquieu. Como é difícil lidar com ele, pois a todo instante somos envolvidos por sua mais pungente aliada: a vaidade (1).

Os elogios, ou, o que é pior, as costumeiras bajulações do meio forense nos massageiam o ego, transformam-nos em ávidos de provar nossa capacidade e nossas qualidades, e, por mais bem intencionados que possamos ser, acabamos por penetrar no mundo das ilusões, no qual não discernimos entre o irreal e o real, entre o transitório e o permanente. Se descuidamos, surpreendemo-nos a competir com colegas, juízes, advogados, como se todos não estivéssemos remando na mesma direção, ainda que, eventualmente, em embarcações distintas.

A nossa profissão é das mais belas e, ao mesmo tempo, das mais angustiantes. Já tivemos a oportunidade de observar (2) que os atores da Justiça Criminal somos, em inúmeras ocasiões, porta-vozes da infelicidade alheia, pois se eventualmente confortamos o titular de um direito violado, ou a dor de quem foi vítima de um crime, trazemos, por outro lado, ao autor da conduta e aos seus familiares, um sofrimento que, muitas vezes, ao menos estes últimos não mereceriam padecer. De fato, nossas manifestações não se esgotam em uma folha de papel ou em uma audiência; vez por outra, cortam a carne viva dos seus destinatários.

De lembrar, ademais, que um tribunal não é propriamente um lugar ao qual as pessoas comparecem satisfeitas. O autor de uma ação, o réu, a testemunha, o perito, ou quem quer que venha a participar de uma lide, cruza os dedos ou roga aos Céus para que tudo se resolva da melhor maneira possível, e sem atraso.

Boa parte desse temor e dessa angústia são causadas por nós, promotores, juízes e advogados, que muitas vezes nos apresentamos para os consumidores da justiça como personagens assustadores e enigmáticos, para dizer o mínimo.

Sobre o tema, inteligente ensaio de José Paulo Paes (3) comenta episódio em que uma senhora sentiu-se aterrorizada com o conteúdo de um mandado de intimação que recebera do Judiciário. Disposta a testemunhar fato que presenciara, assustou-se aquela senhora com a forma pouco cortês e ameaçadora com que a autoridade judiciária a tratava naquele pedaço de papel, dizendo-lhe, em letras garrafais, que estava intimada a comparecer à audiência, ficando cientificada de que poderia vir a ser processada por desobediência se deixasse de comparecer sem motivo justificado, implicando ainda em ser conduzida coercitivamente por oficial de justiça ou pela polícia. Conclui o articulista que essa advertência, em letras maiúsculas, soam como um berro de "mãos ao alto", parecendo pressupor, na testemunha intimada, a prévia intenção de desobedecer ao primeiro comando judicial.

Outra reflexão que devemos fomentar diz respeito ao uso de nossa inteligência. É afirmado que constituímos uma elite intelectual, supostamente habilitada a encontrar ou apontar a solução justa para todo conflito que nos é confiado. O que vemos, porém, não raras vezes, é tal inteligência servindo como um mero produto de raciocínios lógicos e matemáticos, despidos de qualquer avaliação crítica e valorativa do caso concreto. Alguns se valem da lei como um álibi, culpando o legislador pelas suas falhas e omissões, dizendo: "é a lei que diz assim", como se a norma legal não permitisse múltiplas interpretações.

Certa feita, em reunião com colegas de Parquet, manifestei a opinião de que, embora conceituados, tecnicamente, como agentes políticos, somos, em última análise, servidores públicos, no sentido positivo da expressão, e que prestamos contas de nossa atuação à sociedade,. Um dos colegas - que hoje não mais integra a carreira do Ministério Público - insurgiu-se contra nossa classificação, talvez por acreditá-la uma "capitis diminutio" às relevantes funções que exercemos...

Em verdade, o nosso trabalho consiste, essencialmente, em servir à sociedade que nos legitimou a trabalhar em seu benefício. Mais do que à sociedade, servimos à humanidade, pois não fomos dotados de espírito e matéria apenas para ocupar um espaço físico no globo terrestre. Há um Propósito Maior. Nosso grande desafio no campo profissional, acredito, é desempenhar nossas funções de maneira inteligente, e, quando refiro-me à inteligência, não faço alusão a uma cultura jurídica livresca - algo que qualquer pessoa com tempo e disposição à leitura pode adquirir - mas sim ao permanente esforço mental dirigido ao emprego do Direito como valiosa ferramenta para a realização dos valores e das virtudes superiores da humanidade.

Vejamos o exemplo de um juiz que se poderia rotular como "escravo da lei", por aplicá-la sem qualquer tipo de interpretação além da meramente literal, despreocupado com os efeitos de sua decisão e totalmente imune à realidade social: referimo-nos, como um paradigma desse tipo de servidor, àquele juiz de Itaberaí (GO), que, perguntado se lhe preocupava a possível morte de pessoas, no cumprimento da ordem de remoção de trabalhadores sem terra alojados em uma fazenda da região, respondeu, comodamente: "Não. O que me preocupa é aplicar a lei".

Esse e muitos outros exemplos se reproduzem no dia-a-dia do fórum. Pessoas extremamente capacitadas do ponto-de-vista intelectual não dimensionam o significado de suas funções. Exercem o poder algumas vezes de modo autoritário (o que é trágico), outras, timidamente sem perceber o que podem fazer com ele, e a quem devem emprestar seu talento.

Em direção oposta, expressando virtudes de um verdadeiro aplicador da lei, temos exemplos bem mais alentadores, como o seguinte, do Ministro L.V. Cernicchiaro, ao ensinar:

    " A lei precisa ajustar-se ao princípio. Em havendo divergência, urge prevalecer a orientação axiológica. O direito volta-se para realizar valores. O Direito é o trânsito para concretizar o justo. (...) O juiz é o grande crítico da lei: seu compromisso é com o Direito! Não pode ater-se ao positivismo ortodoxo. O Direito não é simples forma.(...) Insista-se: o juiz tem dever de ofício de recusar a aplicação de lei injusta. O juiz precisa tomar consciência de seu papel político: integrante de Poder. Impõe-se-lhe visão crítica. A lei é meio. O fim é o Direito" (4)

Não esqueçamos que todas essas observações tanto valem para juízes quanto para nós, membros do Ministério Público, pois, "el Ministero Publico es un juez que se hace parte". (5), tendo como meta, no processo penal, "... la realización de derecho material y por norte inmediato la averiguación de la verdad como única manera de cumplir eficazmente la tarea que le es impuesta, labor que sustancialmente coincide con la función jurisdiccional aunque, por respeto al proceso de tipo acusatorio y al régimen moderno de la acción pública, ambas funciones deban tener sólo formalmente distinto significado, la una requirente, la otra decisoria". (6)

A que devemos, pois, servir nossa mente? À forma pura, à literalidade fria de um conjunto de palavras? Ou nos cabe, de modo equilibrado, buscar o sentido de toda norma, sopesando os efeitos de suas possíveis interpretações, escolhendo, dentre elas, a que produza resultados mais justos, razoáveis e racionais? Afinal, na lição de José Renato Nalini, "a técnica auxilia, sim, o bom desempenho judicial. Mas a técnica desacompanhada de ética de nada vale. Preferível a um decifrador de códigos, o ser humano sensível e crítico, vocacionado a transformar o universo de sua atuação e a fazer valer os valores consagrados nos direitos dos povos".


Notas:

  1. Quem assistiu "O Advogado do Diabo" deve recordar-se das palavras finais do "diabo", ao dizer: "A vaidade é o meu pecado favorito".
  2. POR QUE ODIAR? (in Direito e Justiça, Correio Braziliense, edição de 2/6/97)
  3. FOLHA DE SÃO PAULO, edição de 18/9/94.
  4. in Revista Consulex, nº 7, jul/97
  5. FRANCESCO CARNELUTTI in CUESTIONES SOBRE EL PROCESO PENAL, apud ROGERIO LAURIA TUCCI e JOSÉ ROGERIO CRUZ E TUCCI, DEVIDO PROCESSO LEGAL E TUTELA JURISDICIONAL, RT, p. 48.
  6. JULIO MAYER, LA INVESTIGACION PENAL PREPARATORIA DEL MINISTERIO PUBLICO, Lerner, Buenos Aires, p. 99.
 

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