Ministério Público da União
Ministério Público do Distrito Federal e Territórios
13ª e 14ª Promotorias de Justiça Criminal de Brasília
A INUTILIDADE ATUAL DA FIANÇA
Rogério Schietti Machado Cruz
"Ages de tal maneira que uses a humanidade,
tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e
simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio"
(Kant) I. Em dois crimes ocorridos recentemente, que nos servem de
exemplo para desenvolver as linhas seguintes, os autores das respectivas
condutas, presos em flagrante, foram beneficiados com liberdade provisória,
mediante fiança arbitrada pela autoridade policial. No primeiro caso, o cidadão
fora preso por estar conduzindo o seu automóvel sob a influência de álcool;
no segundo exemplo, conquanto sóbrio, causou, por imprudência, a morte de um
pedestre. Inobstante a evidente maior gravidade do segundo
comportamento, a fiança arbitrada ao motorista homicida, que possuía similares
condições econômicas em relação ao motorista embriagado, foi de apenas
R$250,00 ao passo que este último foi posto em liberdade pagando mais, i.e.,
R$300,00. II. Por que se decidiu por tais valores? Quais critérios
devem ser usados para se fixar uma fiança? É justo "comprar" a
liberdade? Estas são algumas das perguntas que o estudo da fiança
suscita ao atento observador. E levam-no à convicção de que muito precisa ser
feito para revitalizar esse instituto, se é que deve ele ser preservado. III. O modelo processual penal brasileiro consagra a fiança
como uma medida de contracautela à prisão em flagrante, permitindo ao
indigitado autor da conduta criminosa responder ao inquérito policial e ao
processo em liberdade, mediante o pagamento de determinada importância e sob
obrigações impostas pela lei. A conjugação dos inúmeros artigos do Código de Processo
Penal inseridos no seu Título IX - Prisão e Liberdade Provisória - permite
extrair, inter alia, as seguintes regras: 1º Quem pratica infração penal punida com pena privativa
de liberdade não superior a 3 (três) meses, deve ser imediatamente solto, sem
qualquer obrigação processual. Ressalve-se a competência do Juizado Especial
Criminal, onde, mesmo em penas superiores àquele limite (desde que não
excedente a um ano de privação de liberdade), a única obrigação a que se
sujeitará o "autor do fato" será a de comparecer à futura audiência
preliminar em juízo. Note-se, porém, que para o descumprimento dessa obrigação
a lei (nº 9.099/95) não previu qualquer conseqüência; 2º Quem pratica infração penal punida com pena mínima
privativa de liberdade inferior ou igual a 2 (dois) anos poderá ser posto em
liberdade provisória mediante o pagamento de fiança, arbitrada quer pela própria
autoridade policial (somente em relação a crimes punidos com pena de detenção),
quer pela autoridade judiciária; 3º nos demais casos, i.e., crimes com pena mínima superior
a 2 (dois) anos, não será cabível a fiança, o que, todavia, não evitará a
colocação do infrator em liberdade provisória pelo juiz, mediante o simples
compromisso de comparecer aos futuros atos processuais, desde que ausente motivo
para a prisão preventiva ou presente causa excludente de criminalidade. IV. Deixando de lado os questionamentos sobre as hipóteses
de inafiançabilidade decorrente de previsão constitucional, podemos facilmente
apontar algumas graves incoerências e falhas do nosso sistema de liberdade
provisória, tais como: a) Quem pratica infração penal punida severamente, como,
v.g., um roubo qualificado pelo emprego de arma de fogo, pode, in thesis,
receber liberdade provisória sem necessitar pagar fiança, obrigando-se apenas
a comparecer aos atos processuais; já o autor de um pequeno furto poderá ter a
sua liberdade provisória condicionada a não apenas comparecer aos futuros atos
processuais, mas, também, ao pagamento de uma quantia a título de fiança, além
de outras obrigações elencadas na lei processual penal (não mudar de endereço
sem prévia autorização judicial, não ausentar-se de sua residência por mais
de oito dias sem comunicação ao juízo e não praticar outra infração penal
no curso do benefício). Em suma, inobstante haver praticado crime menos grave,
arcará com ônus mais pesados. b) Sendo pobre o infrator, e mesmo havendo praticado crime
punido com pena mínima de detenção não superior a dois anos - hipótese em
que a própria autoridade policial poderia arbitrar fiança - a lei impõe que
somente o juiz de direito poderá conceder-lhe a liberdade, o que implica a
necessidade de permanecer o infrator recolhido na prisão por vários dias. Em
outras palavras, permanece preso simplesmente porque é pobre e não tem alguém
para socorrê-lo com a mesma presteza e eficiência comuns quando se cuida de
infratores bem assistidos. V. Não são essas, contudo, as questões centrais que
pretendemos suscitar, mas sim a que diz respeito à própria validade e
utilidade do instituto e a que pertine aos critérios para o arbitramento do
valor da fiança. VI. No tocante a este último questionamento, releva destacar
a total ausência de controle sobre os parâmetros legais concretos para fixação
do valor da fiança. Deveras, embora diga o art. 326 do CPP que, para essa
tarefa, "a autoridade terá em consideração a natureza da infração,
as condições pessoais de fortuna e vida pregressa do acusado, as circunstâncias
indicativas de sua periculosidade, bem como a importância provável das custas
do processo, até final julgamento", somos levados, com o devido
respeito, a afirmar que, em boa parte dos casos, não se seguem tais parâmetros,
como o demonstram os exemplos citados no início da exposição. Decerto que muitos Delegados de Polícia e Juízes de Direito
buscam no art. 326 do CPP inspiração para determinarem o valor da fiança,
mas, no momento seguinte, vêem-se diante de um vazio legal, criado pela
sucessiva e instável política monetária do Brasil, que, no espaço de 15
anos, conviveu com várias moedas e índices de correção e atualização monetárias.
O fato é que o art. 325 do CPP, indicando o quantum da fiança, de
acordo com a gravidade da infração e a situação econômica do infrator,
tornou-se letra morta, porquanto assenta-se em índices monetários inexistentes
(salário mínimo de referência e Bônus do Tesouro Nacional). O que se vê, então, é um "arbitrário
arbitramento" (o pleonasmo é proposital) do valor da fiança, sem qualquer
motivação ou fundamentação, impedindo às partes (Ministério Público e
acusado) de exercerem um controle sobre o ato, seja ele administrativo ou
judicial. É bem verdade que a lei prevê recurso para tal decisão
(art. 581, inc. V, do CPP), além de mecanismos para a revisão do valor
arbitrado (art. 340 do CPP), mas os interessados não os usamos, talvez por não
confiarmos na sua eficácia, quiçá por mero comodismo. VII. Chega-se, então, à principal reflexão a ser feita: a
liberdade pode ser comprada? Essa indagação não se tem colocado tanto na doutrina
brasileira quanto, por exemplo, na doutrina dos EUA, onde o assunto já vem
merecendo alguma atenção, mercê de um sistema que, na prática, parece não
respeitar o princípio da presunção de inocência. Deveras, uma vez formada
uma prova mínima de autoria de crime contra alguém, a sua liberdade estará
condicionada ao pagamento de uma fiança, tornando a prisão processual a regra,
e a liberdade provisória a exceção. Nos EUA, o cidadão, logo após ser preso, deve ser levado à
presença do juiz, para uma audiência em que se discutirá o valor da fiança (bail
hearing), a qual, uma vez paga, será restituída ao acusado após seu
julgamento, desde que, evidentemente, tenha comparecido aos atos processuais. O
grave problema do sistema criminal norte-americano, nesse particular, é que os
juízes, muito embora tenham, via de regra, critérios objetivos para a fixação
do quantum da fiança, arbitram valores exorbitantes quando não desejam
colocar em liberdade o acusado , sendo raras, a propósito, as hipóteses em que
se permite a liberdade provisória sem o pagamento de fiança (release on own
recognizance). O resultado é, além de injusto em sua essência,
discriminatório em relação aos acusados mais pobres, que, por não disporem
da importância fixada, e por não estarem aptos a se socorrerem dos bail
bondsmen - uma nefasta espécie de "agiotas legalizados" que são
autorizados a cobrarem taxas do preso para honrar o valor da fiança diretamente
ao tribunal, na hipótese do desaparecimento do afiançado - permanecem presos,
mesmo quando se mostre desnecessária ou abusiva a prisão provisória. O mais inusitado, porém, é que, dentro desse sistema monetário
de administrar a justiça criminal, o dinheiro, e não a racional avaliação da
necessidade da custódia, acaba por determinar a soltura ou a manutenção do
acusado no cárcere. Deste modo, assim como se mostra extremamente injusto
manter preso até seu julgamento, v.g., um motorista não habilitado, porque não
teve condições para pagar a fiança, é ainda mais preocupante a soltura de
perigosos violadores da lei que, por disporem de lastro financeiro, compram sua
liberdade, colocando em sérios riscos a sociedade. Nesse sentido, observa DAVID NEUBAUER que "America’s
system of monetary bail has been the subject of extensive debate for decades.
The fairness and effectiveness of pretrial release and detention have been
questioned from two conflicting perspectives. The bail reform movement of the
1960s and 1970s was largely concerned with correcting inequities. Requiring
suspects to buy their freedom was viewed as unfairly discriminatory against the
poor. To make bail fairer, reformers advocated adopting a 10 percent bail
deposit and institutionalizing pretrial service programs. These programs offered
new ways to accomplish the purpose of bail: to guarantee appearance for trial.
During the 1980s, concern shifted to the linkage between bail and crime.
Allowing dangerous defendants to post bail was viewed as unnecessarily
jeopardizing the public. Critics urged the adoption of preventive detention. VIII. Fácil constatar, portanto, que temos, sob certa ótica,
um sistema menos injusto, à medida em que, entre nós, a liberdade provisória
de alguém que foi preso em flagrante define-se, em última análise, não pela
fiança, mas sim pela verificação da desnecessidade da prisão, único meio de
compatibilizar a prisão cautelar com o princípio da presunção de não
culpabilidade. Por outro lado, como o valor da fiança pode ser elevado a
patamares realmente expressivos, o sistema criminal americano tem como manter
presos, também, os delinqüentes do colarinho branco , ao contrário do que
ocorre em nosso país, onde esse tipo de infrator, nas raras vezes em que não
consegue a liberdade provisória, costuma ser agraciado com uma "prisão
especial", com direito a inúmeros bens e serviços não oferecidos aos de
colarinho marrom. IX. Talvez fosse o caso de pensar-se na extinção da fiança,
já que não se mostra sensato negociar a liberdade individual, bem de inestimável
valor ao ser humano. Há estatísticas nos EUA indicando que uma pessoa
permanece presa, em média, três dias antes de obter o dinheiro para pagar a
fiança arbitrada . No Brasil, a situação pode ser até pior . Ora, que
sistema é esse que permite a uma pessoa, porque é pobre, permanecer no mórbido
e estigmatizante ambiente carcerário, simplesmente porque não dispõe de
dinheiro para comprar sua liberdade? Há humanidade nesse sistema? Será que o
processo penal do próximo século abrigará essas normas que imprimem ao
sistema da liberdade provisória um cariz tão mercantil? X. Até que saibamos responder a essas perguntas e encontrar
soluções mais racionais e menos dolorosas para o trato da liberdade humana, há
que se trabalhar para um uso mais lógico e equânime da fiança, que deve ser
aplicada com critérios bem definidos, orientados pelo princípio da
proporcionalidade , e sem jamais perder de vista o categórico de Kant referido
no início. Parece-nos, portanto, que, por ora, algumas medidas poderiam
ser estudadas, ao propósito de otimizar o uso desse instituto. No âmbito do Poder Legislativo, certas sugestões mereceriam
reflexão, tais como: 1º A eliminação de limites mínimo e máximo para a fiança,
deixando à autoridade judiciária, de acordo com a motivada análise do caso
concreto e com critérios claros e objetivos previstos em lei, a fixação do quantum
da fiança. 2º A possibilidade de conceder-se fiança para toda e
qualquer infração, acima de um patamar mínimo de gravidade (as mais leves
continuariam a permitir ao réu "livrar-se solto"), de tal sorte a
poder o juiz, mediante decisão motivada, sujeita ao controle das partes, e
ponderando as circunstâncias do caso concreto (situação econômica do réu,
gravidade do fato etc), arbitrar fiança, que se juntaria ao dever de
comparecimento aos atos processuais como contracautela à prisão provisória.
Desse modo, o autor de um pequeno furto poderia ser posto em liberdade sem fiança
(quando, digamos, não tivesse recursos para pagar a fiança), ao passo que ao
autor de um roubo (inafiançável, pelo critério atual), se poderia conceder
liberdade provisória, desde que ausente motivo para a preventiva, mas com o
pagamento de uma certa quantia, a título de fiança. 3º A atribuição de competência exclusiva à autoridade
judiciária para a concessão da fiança, por ser o Fórum o ambiente mais
adequado e seguro para a prática de tão importante ato processual. Para obviar
eventual e justa crítica de que tal medida redundaria em atraso na soltura do
autuado, quando cabível, bastaria que se estabelecesse o direito do réu em ser
conduzido, tão logo lavrado o auto de prisão em flagrante, à presença da
autoridade judicial, para ser ouvido informalmente e para avaliar-se o
cabimento, ou não, de liberdade provisória, com ou sem fiança. Esta medida,
aliás, já poderia ser colocada em prática, bastando aos juízes dar
cumprimento ao disposto no art. 7º, item 5 do Pacto de San Jose
(incorporado ao direito positivo brasileiro por força do Decreto 678/92), o
qual determina que "Toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem
demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a
exercer funções judiciais e tem direito a ser julgada dentro de um prazo razoável
ou a ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua
liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento
em juízo." 4º A criação de outras medidas de contracautela
processual, a exemplo do que se fez em Portugal, onde se prevêem diversas
medidas coercitivas (além da fiança) a serem usadas de acordo com a situação
concreta, tais como "obrigação de apresentação periódica",
"suspensão do exercício de funções, de profissão e de direitos",
"proibição de permanência, de ausência e de contatos",
"obrigação de permanência na habitação" (artigos 198 a 201 do CPP
português). Tal inovação legislativa abriria o leque de opções para que o
juiz escolhesse a medida ou as medidas mais apropriadas ao caso concreto,
obviando a situação atual em que o juiz, nos crimes mais graves, tão somente
pode ou conceder a liberdade provisória mediante a isolada obrigação de
comparecimento aos atos processuais, ou manter a prisão cautelar. Do Poder Judiciário, além da providência sugerida ao final
do item 3º, retro , anseia-se que as decisões relativas à fiança sejam
tomadas em respeito ao dever de motivação do ato judicial, elevado à
categoria de norma constitucional (art. 93, inc. IX da CF), permitindo-se ao
Ministério Público e ao acusado saber de que modo a autoridade concluiu pelo
valor arbitrado a título de fiança. Enfim, do Ministério Público e da Polícia Judiciária
(estadual e federal), espera-se um cuidado maior na fiscalização e no
arbitramento, respectivamente, dos valores fixados a título da fiança,
cuidando-se para que a liberdade provisória não seja simplesmente comprada,
mas outorgada a quem a mereça.
Promotor de Justiça do MPDFT
e
Mestrando em Direito Processual Penal na USP