Ministério Público da União
Ministério Público do Distrito Federal e Territórios
13ª e 14ª Promotorias de Justiça Criminal de Brasília
Daniel de Matos Sampaio Chagas
* o presente texto
foi escrito antes da entrada em vigor do novo Código Nacional
de Trânsito, ao qual faço menção nas
observações finais.
Há algum tempo, repercutiu entre nós uma decisão, pela qual se suspendia um processo no qual um cidadão teria atropelado e matado, de forma instantânea, pedestre que atravessava a rua em local impróprio. No entanto, o fato, acontecido no dia 10 de agosto de 1996, possui algumas particularidades. A primeira delas é que o motorista era filho do então Ministro dos Transportes, Odacir Klein. Pior do que isso, o rapaz, de 18 anos, estando acompanhado pelo pai, fugiu da cena do atropelamento sem prestar socorro à vítima. O caso teve repercussões políticas e sociais de grande proporção, vez que o acidente se deu justamente quando o Ministério dos Transportes trabalhava na divulgação do PARE - Programa de Prevenção de Acidentes nas Estradas. Em termos análogos, seria como se descobríssemos que o Ministro da Reforma Agrária foi passar o fim-de-semana em seu latifúndio improdutivo.
Mas o que, verdadeiramente, causou espécie na sociedade foi a decisão a que me referi de início, proferida por uma juíza (e uma "juíza mulher" como asseverou certo amigo) suspendendo o processo contra o filho do Ministro sob a alegação de que "não há omissão de socorro a cadáver". Muitos, dentre os quais me incluo, não esperaram para demonstrar toda sua indignação, calcados no pensamento óbvio de que "como é que o motorista podia saber que houve a morte imediata se sequer parou o carro?".
É verdade que as circunstâncias do crime eram extremamente propícias a uma opinião desfavorável quanto à decisão. Afinal, estávamos diante de um conflito de classes na sua forma mais pura e extrema: filho inconseqüente de Ministro atropela e mata servente de pedreiro, espécime indiscutível das classes sociais que jamais emergirão, mas que atraem os olhares simpáticos da burguesia intelectual e ociosa, da qual fazia - e ainda faço - parte.
Entretanto, rendido que fui pelas delícias do tecnicismo, passados pouco mais de um ano e cinco meses, sou obrigado a rever minha posição. "Não se pratica crime de omissão de socorro contra cadáver!". É verdade. Me explico.
Inicialmente, quando analisamos os crimes culposos, verificamos que parcela da doutrina e da jurisprudência (com a qual concordo) sustenta que a culpa não subsiste quando se constata que, ainda que tivesse o agente agido com todos os cuidados objetivos, o resultado ocorreria do mesmo modo. Ofereço o seguinte exemplo: numa high-way interestadual, onde a velocidade permitida é de 100 Km/h, um pedestre, faltando com a sua obligatio ad diligentiam, cruza a via, sendo colhido e morto por um veículo que trafegava a 110 Km/h. Posteriormente, constata-se por perícia que a morte dar-se-ia ainda que o veículo estivesse a 100 Km/h (velocidade permitida). Nessa hipótese, inexiste a culpa e afasta-se o homicídio culposo. Isso porque o agente, ainda que atuasse com os devidos cuidados e mantivesse seu veículo em velocidade compatível, não estaria apto a evitar o resultado lesivo ocorrido.
Também de acordo com doutrina e jurisprudência, o crime de omissão de socorro - que é doloso - independe de qualquer resultado naturalístico, isto é, se passo com meu carro por uma via pública e observo, no acostamento, um mendigo sangrando estirado sobre o asfalto, mas nada faço pois lavei o carpete do meu carro semana passada e ainda estou atrasado para a minha partida de squach semanal, pratico o crime, ainda que, vinte segundos depois, um bom samaritano - invocando os ideais da Revolução Francesa - conduza o ferido até a unidade hospitalar mais próxima. Pratico igualmente a conduta criminosa ("apenas" com a pena triplicada), se o bom samaritano não aparece e o mendigo serve de desjejum aos urubus.
Mas... e se o sujeito já estava morto? Ora, nesse caso, do mesmo modo que a culpa não subsiste quando se constata que o resultado dar-se-ia independentemente dos cuidados que não foram observados; também o dolo, que é elemento subjetivo do crime de omissão de socorro, se afasta pela impossibilidade de repercussão material da "omissão". Não se angustie leitor, explico melhor. Como bem ressaltado por doutrina e jurisprudência dominantes, os crimes de omissão independem de um resultado naturalístico. Todavia, tal não significa dizer que prescindam da possibilidade de sua ocorrência; quer dizer, não interessa o que aconteceu à vítima (se morreu, se foi salva, tal é importante somente para efeitos de pena), mas interessa que haja um sujeito passivo, que possa morrer ou ser salvo. O morto não é sujeito passivo em direito penal (basta recordarmos do exemplo do sujeito que efetua disparos contra um cadáver e não comete crime algum por impropriedade do objeto). Mais ainda, o objeto jurídico do crime de omissão de socorro é a vida e a saúde de "pessoa", desconsiderando-se, para tanto, os mortos. Estamos, portanto, diante de um dos chamados "crimes impossíveis" por absoluta impropriedade do objeto. Como na maioria destes, houve uma conduta moralmente condenável, indesculpável, mas não houve ilícito.
"Que solução falaciosa", é o que deve estar apontando o leitor mais irresignado e perseverante. "Visto desse modo, parece até que o motorista, que sequer parou o carro, teve 'sorte' pelo fato da vítima já estar morta". Não é o que eu gostaria de dizer, leitor humanista, mas creio que você tem razão. Mais uma vez invoco alguns precedentes da culpa, vejamos o exemplo do médico que, após operação, constata ter esquecido ferramenta cirúrgica pequena, mas perfurante, no estômago do paciente. Apresento duas soluções extremadas. Na primeira, a ferramenta verdadeiramente perfura o estômago do paciente, ensejando hemorragia interna, que o conduz à morte; nesse caso, temos um homicídio culposo - negligência - sem sombra de dúvida e o médico possivelmente jogará paciência, pelo período de um a três anos, numa cela aconchegante da prisão especial a que tem direito. Na segunda solução, a ferramenta desce para o intestino e é evacuada por entre as fezes, sem que o paciente sequer perceba; aqui o doutor poderá dormir tranqüilo sem as maciças doses de "Lexotan" de que necessitaria para aplacar sua culpa. Eis aqui um bom exemplo de como a sorte (ou seriam os gases intestinais?) pode influir de forma a caracterizar ou não um crime.
"Mas não se trata de culpa. É dolo! Estamos falando de dolo!". Aplaca essa fúria, leitor ignóbil e teimoso, não estou mais tentando convencê-lo; conforte-se, estou apenas dando uma opinião, própria de quem não desfruta da sua experiência de vida e tampouco dos seus conhecimentos jurídicos. Mas não resisto e lhe empresto um último exemplo, que bem poderia ter sido retirado das obras de Stephen King: criança astuta, tentando induzir a erro e atemorizar os coleguinhas, despeja sobre si um balde de sangue de porco (não vomite ... ainda, leitor), deitando-se, em seguida, sobre o asfalto no acostamento da estrada e por onde vão passar seus amigos ao retornar da escola. Você, leitor pontual, que serve em uma repartição pública dali próxima, vem voltando para casa, dirigindo seu automóvel e imaginando o empadão de frango que sua mulher prometeu fazer no almoço. É quando se depara com a imagem horrenda daquela criança estirada sobre o asfalto e pensa: "Dane-se! Melhor ir logo para casa, o almoço já deve estar quente e, se bobear, dá tempo de assistir o 'Globo Esporte'". Amigo leitor, se você fizer isso, sentirei por você uma eterna repulsa, como pôde (?), você nem sabia que aquela criança estava só brincando, ela podia esta ferida e precisando de ajuda. Jamais casaria minha filha com um sujeito da sua laia, você maculou meus valores humanitários. Mas você não cometeu crime e, se precisar de um advogado, estamos aí.
Observações finais.
Impressionante como instantes após a incontestável satisfação de ter escrito algo em que se acredita (ainda que não se concorde); surge das entranhas do Legislativo um novo Código Nacional de Trânsito que joga toda a tese por terra. Eis que o leitor, outrora aborrecido, pode agora disparar contra mim um olhar superior e risonho.
São os termos do artigo 304 do novo CTN:
"Deixar o condutor de veículo, na ocasião do acidente, de prestar socorro imediato à vítima, ou, não podendo fazê-lo diretamente, por justa causa, deixar de solicitar auxílio da autoridade pública:
Penas - detenção, de seis meses a um ano, ou multa, se o fato não constituir elemento de crime mais grave.
Parágrafo único. Incide nas penas previstas neste artigo o condutor do veículo, ainda que a sua omissão seja suprimida por terceiros ou que se trate de vítima com morte instantânea ou com ferimentos leves." (destaquei).
Assim, o CTN foi mais rigoroso que o Código Penal especificando como objeto jurídico do crime, não a vida ou a saúde da pessoa, mas o sentimento de solidariedade que deve norteá-las em situações como esta. Optou-se por punir exclusivamente a intenção do agente, deixando de lado a possibilidade ou não de ocorrência de um resultado. Sem dúvida, se considerar correta a conclusão "técnica" a que cheguei no texto, o leitor há de convir que o CTN foi mais "justo" ao punir de forma direta a conduta moralmente condenável. Por outro lado, há também argumentos de "justiça" que poderiam ser levantados, como, por exemplo, o de que a conduta de um homem "médio", que culposamente atropela um pedestre, pode muito bem ser a de ficar confuso e apavorado por alguns segundos e, mais conduzido pelo veículo do que conduzindo este, evadir-se do local.
De qualquer sorte, tudo sobre o que dissertei na omissão de socorro continua válido, visto que apenas a hipótese especial da omissão no trânsito foi tratada pelo CTN, permanecendo as demais adstritas ao sistema do Código Penal.