SENTIDOS

O Gelson explicou que tinha sido inundado pelos senti­dos. Foi a palavra que usou: inundado. Entrara na cozinha e a Desilaine, a nova cozinheira, estava fazendo um lagarto na pa­nela com muito alho, como sua mãe fazia, e o aroma era o da sua infância. Pegou um aipim frito que esfriava em cima da ge­ladeira e começou a mastigá-lo, e olfato e paladar para decidir qual dos dois era mais feliz naquele instante mágico, só numa melhor de três. Ao mesmo tempo a cozinha enfumaçada, com um faixo de luz natural fazendo brilhar as maçãs artificiais da mesa, enchiam os olhos de Gelson como uma composição da escola flamenga do século dezessete. E como se não bastasse isto, no rádio tocavam uma música do Caetano. O único senti­do que não acompanhava o êxtase dos outros quatro era o do tato, e Gelson olhou em volta, atrás de algo para ocupá-lo. Uma das nádegas da Desilaine cabia, miraculosamente, na palma da sua mão, e a sensação da carne rija através do brim, explicou Gelson, completava maravilhosamente aquela tomada sincro­nizada das portas da percepção humana. Quando dona Zuleica entrara na cozinha não flagrara uma prosaica mão na bunda da empregada. Interrompera um tableau de plenitude, um momen­to de sinergia entre memória e experiência que raramente se abre ao Homem, explicou Gelson. Mas dona Zuleica não quis nem saber, despachou a Desilaine e até hoje não fala com o marido, que não pára de lamentar a falta de sensibilidade poética no mundo moderno.

Fonte: Novas Comédias da Vida Privada -  Luis Fernando Veríssimo

Enviada, por e-mail, pelo nosso amigo Gilberto Guimarães

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