O VÔO QUE EU NÃO GOSTARIA DE TER FEITO
Eu servia no
Grupo de Transporte Especial, da Força Aérea. Num sábado, 14 de junho de
1958, fui escalado, junto com o Capitão Virgílio, para transportar o Núncio
Apostólico, do Rio de Janeiro para a cidade de Botucatú, no interior de São
Paulo.
A decolagem
estava prevista para as 13h. Preparamos o plano de vôo, prevendo um pouso de
reabastecimento em Congonhas. Como São Paulo tinha uma camada de estratos,
fizemos um plano IFR, alternando em Campinas.
O avião, o C-45 2878, foi abastecido para três horas e meia de autonomia. O Super-Beech
tinha um problema: se totalmente abastecido a sua disponibilidade para
passageiros ou carga era muito pequena, e essas três horas e meia de autonomia, daria para irmos a São Paulo, tentar duas descidas por
instrumentos, prosseguir para Campinas e ter ainda mais de uma hora como reserva
para qualquer emergência.
O Núncio
Apostólico chegou só às 14:15h, o que nos complicou a vida, pois, sendo o
pôr do sol às 17:35h em Botucatú, a nossa margem de segurança começou a
apertar. Não poderíamos perder tempo em nossa escala em Congonhas. Como, em
vez dos três passageiros previstos, só se sentaram o Núcio e o seu
secretário, pudemos quebrar o galho de um aluno da Escola naval, que nos pedia
carona até São Paulo. Éramos eu o Virgílio, o sargento mecânico de vôo, o
Núcio, seu secretário e o aluno.
O vôo até a
entrada da área de São Paulo foi normal. A visibilidade era muito boa, havendo
apenas uns cúmulos isolados. No através de Mogi das Cruzes, uma camada de
estratos, abaixo de nós, se estendia até o horizonte. Falamos com o controle
São Paulo e fomos informados de que, devido ao acúmulo de tráfego, para
pousar em São Paulo, a espera seria de uns quinze minutos. Sugeriu
que, se quiséssemos, nos autorizaria a circular a sua área pelo setor sul e
prosseguir direto para Botucatú. Virgílio fez os cálculos e me informou que a
sugestão era boa. dentro de uma hora e cinco minutos estaríamos em Botucatú, com mais de
uma hora
de combustível de reserva e com uma folga de quarenta minutos para o por do sol. Ao mesmo
tempo me avisou de que já sintonizara a emissora de Botucatú e de que a mesma
falava de que o tempo estava bom e que o povo todo já estava no aeroporto
esperando o Núcio para darem início às festividades. Foi a gota de mel.
aceitamos a sugestão do controle, e circulando pelo sul de Congonhas,
rumamos direto para Sorocaba. De lá com o rumo 320 e trinta minutos depois, deveríamos
estar bloqueando Botucatú. O que me preocupava era a camada de estratos, uns
quinhentos metros abaixo de nós,
que se estendia na nossa frente. No Horizonte, uns cúmulos já
começaram a ensaiar o seu desenvolvimento vertical. por insistência do
Virgílio, passei a escutar a radio de Botucatú, que só falava nas
festividades religiosas e na chegada do Núcio Apostólico. No avião, estavam
todos bem felizes. O Núcio lia com grande interesse o seu breviário. O aluno
dormia o secretário do Núcio, um cônego forte, rezava o terço. Conforme previsto,
bloqueamos Botucatú às
16:56h. Abaixo de nós, o tapete de nuvens continuava firme. Rodamos uns cinco
minutos, mas nada de buraco para descer e
pegar o visual. Pedi ao Virgílio para computar a altura de segurança sobre
Botucatú. Sabendo que poderíamos baixar até a altitude de 4000 pés,
após o bloqueio da Broadcast, comecei a descida, entretanto, na camada de
nuvens, não consegui atingir condições visuais para o topo da camada.
Enquanto isto a estação de Botucatú falava que já estavam escutando o barulho
do avião, e que dentro em pouco o Núcio pousaria e a procissão teria início.
A cidade estava ali embaixo,
o povo esperando, e nós com umas nuvenzinhas, nos impedindo. Virgílio
me diz que, uns dez minutos antes de chegarmos em Botucatú, tinha visto uma
abertura nas nuvens que deveria permitir nossa descida visual. Resolvemos voltar
e descer no tal buraco e regressar. Sem perda de tempo, iniciamos a busca da
nossa porta para o visual que felizmente, apareceu uns dez minutos depois. Descemos e,
atingindo o visual, não perdemos tempo: aproamos Botucatú. O vôo era baixo,
mais não rasante. Continuamos mantendo Botucatú na proa, e... desilusão! Botucatú fica num planalto, mais alto que a
altitude que estávamos voando, e uma camada de estratos corta-prazeres encobria
a serra. A cidade estava pertinho. Mas, por mais que circulássemos e
tentássemos, não conseguíamos alcança-la. Virgílio e eu analisando a
situação. Pousar em Botucatú, já estava fora de cogitação. Tentamos falar
com o controle SP, mas a baixa altitude não nos permitia a comunicação.
Virgílio estudava a carta, fez alguns cálculos e me disse: "Campinas não
vai dar. Iremos para Baurú. Vamos chegar na conta: quatro minutos para o por do sol e
com os tanques quase a zero."Pus a proa no rumo Baurú, puxei o manche e
acelerei levemente os motores, para poupar combustível. Os mostradores de
combustível estão chegando no vazio. Com aquele friozinho na espinha, me
convenci de que as próximos trinta minutos seriam de sofrimento.
Como ainda era
dia e não havia turbulência, os passageiros estavam calmos, com exceção do
cônego, que continuava rezando o terço. O mecânico, sentindo o problema, saiu
de sua poltrona e veio para a cabine. Quando furamos a camada de extratos, vimos
bem na nossa frente um paredão de CBs. Os mostradores da quantidade de combustível estão
quase no batente. Não vai dar para desviar dos CBs. estão em toda parte.
Começo a suar... "Vamos entrar na pauleira em dois minutos!" escurece
rapidamente. Virgílio começa a manusear as cartas. Instrui o sargento para
controlar a temperatura dos motores. Se esfriarem muito, teremos problemas nos
cilindros; se acelerarmos para esquenta-los, acabaremos com o pouco combustível
que nos resta. Entramos no primeiro CB. O avião pula,
trepida... Começa a briga... Pancada para todos os lados... Pegamos uma
descendente... a velocidade aumenta... reduzo os motores... estou sendo obrigado a voar bem
acima da velocidade prevista... do lado de fora o negrume do CB, clareado
constantemente pelos relâmpagos, que não paravam de cruzar o nosso
pára-brisa. A temperatura começa a cair... O sargento, como um bom pianista ,
manipula as manetes de aquecimento... o avião despenca em outra descendente...
seguro como posso. Virgílio me diz que a carta de descida de Baurú, não
está na pasta de navegação. Meu coração dá uma rateada: O quê? Neste
momento o controle SP nos chama: FAB 2878, dê sua posição..
Virgílio responde, dizendo que estamos dentro de um CB, a quinze minutos de Baurú.
"FAB 2878, Baurú está fechado! vento forte e chuva pesada, teto e
visibilidade zero! prossigam para Campinas". respondemos que estávamos em
emergência e não tínhamos combustível para alternar Campinas. Passamos a
escuta de Baurú. Baurú confirmou as más notícias. Informamos que iríamos
pousar de qualquer maneira, não tínhamos outra alternativa, e pedimos para o
operador do radio nos cantar a carta de descida.
Neste momento chegou na cabine, se segurando como podia o Núcio apostólico e
me disse:
"Major, a festa não é tão importante assim. Se o senhor quiser, pode
voltar para o Rio de Janeiro." ë eu respondo, tendo o olhar fixo nos
instrumentos: "a situação não é boa. Volte para o seu lugar, se amarre
bem e converse com seu chefe, pedindo para que ele nos ajude a encontrar o
aeroporto.
A estação de
Baurú, nos passou os dados da carta, ditando os rumos e altitudes. Virgílio
não perdeu tempo, e em segundos a descida estava desenhada. O mecânico de vôo
me disse no ouvido: "Major, pensando nos meus dois filhos, eu coloquei uns
litrinhos de gasolina a mais. Devem dar para mais uns dez minutos de vôo... Foi
a melhor notícia da minha vida.
O
operador da radio nos avisou que ia se ausentar, pois tentaria acender o
balizamento de emergência com botijões de querosene.
Olho para a
minha tripulação, e estamos os três, suando as camisas, mais em perfeitas
condições físicas. O que será de nós dentro de alguns momentos? pedaços de
gente? Notícias de jornal?
Iniciamos o
procedimento. Entro na curva do regresso, com o avião balançando, quase
incontrolável. Virgílio me ajuda nos comandos. Volta a radio Baurú; "deu
para colocar alguns botijões, mas estão apagando por causa da forte chuva.
Entramos na curva final e não enxergávamos nada. Só chuva pesada e os
clarões dos relâmpagos. Grito pro Virgílio: "tente enxergar
qualquer coisa... Não vamos poder arremeter..." Virgílio cola o rosto no
pára-brisa, tentando enxergar na escuridão. Começa a gritar... Baixe o
nariz... baixe mais... isso... isso
... ESTOU
VENDO A CABECEIRA!... MANTENHA A PROA... ESTAMOS LÁ... ISSO... ISSO ...
Contrariando as normas, abandono os instrumentos e olho para fora, diviso um
marcador, bem na frente. É agora ou nunca. Corto os motores e... seja o que
Deus quiser Jogo o avião na pista de qualquer maneira. Entramos velozes. O
avião dá uns saltos, derrapa e aos poucos começa assentar. Pousamos. vou
usando os freios com cautela. Não consigo enxergar nada. A chuva aumentou.
Consigo levar o fiel 2878 até a estação de passageiros. Ao desligar os
motores, ainda não acredito que estou no chão. respiro fundo. Olho para o
Virgílio e para o sargento. Não precisamos falar, nos entendemos... Os
marcadores de gasolina estão no zero... Dirijo-me ao Núcio, que, com o rosto
vermelho e inchado, ainda está amarrado ao assento: "Eminência, vamos ter
que pernoitar aqui em Baurú. A que horas deseja decolar ama?" Ele me
olha com ar de espanto e, do fundo do coração, diz: "Major, eu vou voltar de
trem, de ônibus, de carroça ou a pé. Neste avião nunca mais! Deus te
abençoe..." Chega o operador da radio. Um cabo novinho, cara de criança,
devemos a vida a ele, e faço questão de dize-lo. Mais tarde na cidade, tomamos
o maior porre de nossas vidas
Nesta missão
cometemos os seguintes erros:
1 - Deveríamos
ter cancelado a missão quando o Núcio chegou atrasado;
2 - Deferíamos
ter pousado em São Paulo, conforme o planejado, se houvesse demora na escala, a
missão deveria ser adiada ou cancelada;
3 - Na chegada
a Botucatú, após a tentativa frustrada de tentar pegar o vôo visual,
deveríamos ter prosseguido para a alternativa, Campinas e interrompido a
missão;
4 - Apesar de
baurú não ter sido cogitada no nosso planejamento original, a pasta de
navegação deveria ter sido melhor conferida
Os
ensinamentos:
1 -Se o
passageiro tem urgência no cumprimento de uma missão, o mínimo que ele pode
fazer é chegar dentro do horário que ele próprio solicitou. Se chegar
atrasado, não é responsabilidade da tripulação tentar viabilizar aquilo que
o próprio passageiro inviabilizou.
2 - Nunca se
entregar numa emergência. Lutar sempre. Dei muita sorte em ter tido nesta
dificuldade, profissionais do mais alto gabarito. A minha tripulação, o
operador da radio baurú e o velho amigo 2878
Piloto: Cel João Luiz Moreira da Fonseca - Piloto de Caça, ex-Comandante da
Esquadrilha da Fumaça, 8000 horas de vôo
Avião: Bimotor
Beechcraft C-45 - E 18S - FAB 2878 - GTE
Fonte:
Aviação em Revista
Beechcraft