Introdução

A Arte Moderna e as Vanguardas Européias

No início do século XX, a Europa viveu um período de intenso progresso material, sob a égide da ciência e da evolução tecnológica. Inovações revolucionaram, à época, de forma abrupta, o modo de ser do cidadão burguês, provocando um clima de euforia e de confiança nos avanços empreendidos pelo homem e nos benefícios deles decorrentes.

A emergente burguesia industrial e a classe média gozavam de todos os prazeres materiais que a vida poderia lhes oferecer. Era a belle époque, que trouxe consigo um intenso período de atividades artísticas principalmente em Paris e em Viena, cidades que se notabilizaram por seu intenso ritmo de vida, em especial, noturna.

Ao lado deste clima eufórico, em contra partida, a situação de pura miséria e exploração a que eram submetidas as camadas mais pobres da população contrastava com este progresso desmedido, levando a eclosão de ideários socialistas e anarquistas.

A belle époque e a Primeira Guerra Mundial, que viria a pôr fim em todo este quadro de otimismo, forneceram bases para o surgimento de um cenário caótico e conturbado que se refletiriam em novas formas de expressão de caráter agressivo e experimental as quais romperiam radicalmente os padrões da arte tradicional, provocando polêmicas e debates nos meios em que se difundem: as correntes de vanguarda.

É importante notar que todas as correntes de vanguarda não se apresentavam de uma maneira uniforme. Cada qual assumiu um caráter específico dentro do país e do contexto onde surgiu. O que as aproximava era o sentimento de romper com o passado, o desejo de exprimir toda a subjetividade e o irracionalismo humano, elementos que iriam contribuir de maneira cabal para moldar aquilo que chamamos de arte moderna, uma arte que visa, principalmente, buscar novas formas de expressão que sejam capazes de traduzir a nova realidade do século XX.

Podem ser destacadas cinco movimentos preponderantes de vanguarda: Cubismo, Futurismo, Expressionismo, Dadaísmo e Surrealismo.

Cubismo: Corrente que se opôs ao Impressionismo do final do século XIX. Na pintura, caracterizou-se pelo bidimensionalismo, pela interpenetração dos planos e pelo simultaneísmo da visão. Já na literatura, representou a fuga do discurso, o abandono da regularidade métrica e da pontuação e a composição de textos sob a forma de fragmentos em uma linguagem cinematográfica.

Futurismo: Corrente surgida na Itália com a publicação do "Manifesto Futurista", por Filippo Marinetti. Pregava a audácia, a energia, a coragem, a rebeldia, o culto à velocidade e ao progresso humano. Denominava-se a arte "do soco e da bofetada", aderindo a ideologia fascista. Quanto à literatura, proponha a destruição da sintaxe, o uso de palavras em liberdade, do verbo no infinitivo e de substantivos duplos. Além disso, proponha a destrução do "eu" poético e a substituição da pontuação por sinais matemáticos.

Expressionismo: Nascido das artes visuais, na Alemanha e na França (fauvismo), caracteriza-se pelo desejo de "exprimir", ou seja, de dar vazão a todos os sentimentos do artista. É uma arte de caráter social, e combativo, regristando os horrores da guerra, da fome e da angústia humana, provinda da Guerra. Muitos consideram o Expressionismo uma arte disfórica.

Dadaísmo: A Primeira Grande Guerra é o ambiente de onde surge o Dadaísmo. A consciência jovem da época rejeita o espírito bélico, qualificando-o de absurdo e amoral. "Somos contra todos os sistemas e a ausência deles é o melhor sistema"; "Dadá é o dilúvio, depois do qual tudo recomeça"; "Que todo o homem grite: é necessário levar a cabo um grande trabalho destruidor, negativo. Varrer. Limpar. A linguagem do indivíduo afirma-se no estado de loucura, de loucura agressiva, completa, de um mundo abandonado às mãos de bandidos que se destroçam e destroem os séculos".

Surrealismo: Corrente que nega o real como matéria e base da arte. É a exaltação do sonho, da fantasia, da imaginação. O Surrealismo teve em André Breton um de seus fundadores e em Salvador Dali, o seu grande nome.

As correntes de vanguarda européias, aglutinando-se e sofrendo as mais diversas adaptações, disseminaram-se por todo o globo, influenciando, exercendo influência sobre a maneira dos diferentes povos realizarem sua arte. No Brasil, viriam a contribuir para a grande explosão Modernista, durante a Semana de Arte Moderna, em 1922, após um longo período de maturação, caracterizado pelo Pré-Modernismo.

 

A Semana de Arte Moderna

Antecedentes: Desde o início da segunda metade do século, atividades culturais diversas deram início ao processo de corrosão da arte acadêmica brasileira. Citamos dois mais importantes:

A Semana em si:

As noites de 13,15 e 17 de fevereiro de 1922, no saguão do Teatro Municipal de São Paulo, representaram uma série de manifestações artísticas, nas quais vários artistas mostravam obras com uma linguagem nova, afinada com as correntes estéticas do começo do século.

A Semana deu-se em um clima de ruptura com o tradicionalismo. Nossos modernistas apresentavam uma arte que estava em consonância com o grande movimento internacional de renovação de idéiais. Além de empregar uma nova linguagem, atacavam o passado, sobretudo o Parnasianismo e seu estilo preso a regras e modelos. Foi um verdadeiro choque para a época, aglutinando uma série de tendências revolucionárias que vinham ocorrendo na arte e na cultura brasileira desde o início do século.

Houve, com a Semana de Arte Moderna, a reunião de artistas antes dispersos, que puderam formar grupos para divulgar, para discutir e para lançar bases sólidas sobre as quais se ergueria o Modernismo brasileiro.

Divulgação da Semana: Obviamente, se tivesse permanecido restrita a São Paulo, a Semana não teria tido tão grande importância renovadora. A partir dos acontecimentos do Teatro Municipal, divulgados pela imprensa da época, as novas idéias encontraram adeptos em todo o país, ora adeptos mais serenos, ora mais radiacais. No período compreendido entre 1922 e 1930 - primeira fase do Modernismo - manifestos (Pau-Brasil, Antropofágico, Verde-Amarel), grupos e revistas (Klaxon, Estética, Revista de Antropofagia) difundiram-se por nosso cenário cultural como nunca havia acontecido antes.

A primeira fase do Modernismo Brasileiro

Apesar da diversidade de correntes e de idéias, pode-se dizer que, de modo geral, os escritores de maior destaque dessa fase defendiam as seguintes propostas: reconstruir a cultura brasileira sobre bases nacionais; promover uma revisão crítica de nosso passado histórico e de nossas tradições culturais; eliminar de vez o nosso complexo de colonizados e o apego a valores estrangeiros.

Foram os principais representantes desta fase Oswald de Andrade e Mário de Andrade. Nosso estudo irá se ater ao segundo, revelando traços de sua obra e enfatizando seu papel como contista.

Mário de Andrade

Mário Raul de Morais Andrade nasceu em São Paulo, em 1893. Um espírito inquieto animava sua impressionante atividade cultural: professor de música, grande pesquisador de folclore, colaborador de vários jornais e revistas, poeta, romancista, crítico literário, crítico musical, ensaísta de arte, folclore, literatura e música.

No ano de 1917, três fatos importantes: morte do pai; conclusão do curso de piano; e Há um gota de sangue em cada poema, primeiro livro, publicado sob o pseudônimo de Mário Sobral. Nessa altura, Mário já adquiria fama de erudito. A participação na Semana, a publicação de Paulicéia desvairada e a nomeação como professor catedrático do Conservatório de São Paulo consolidavam o prestígio de Mário. A cidade de São Paulo, sua mais profunda paixão, constitui tema freqüente de sua obra. Por volta de 1934, Mário foi chefe do Departamento de Cultura de São Paulo. Quatro anos depois, motivos políticos provocaram seu afastamento e a mudança para o Rio. Lá ficou pouco tempo. A ligação com São Paulo era muito forte. A Segunda Guerra Mundial afetou profundamente o ânimo do poeta. Parece que esta foi uam fase de grande angústia existencial.

Na tarde de 25 e fevereiro de 1945, faleceu Mário de Andrade. "No Pátio do Colégio afundem/O meu coração paulistano..."

Aspectos da obra de Mário de Andrade

Poesia

Há uma gota de sangue em cada poema é o primeiro livro de poemas. Feito sob o impacto da Primeira Guerra, apresenta poucas novidades estilísticas. Poucas, mas suficientes para incomodar a crítica mais acadêmica que não gostou do livro.

Paulicéia desvairada vinha repleto de inovações que logo transformaram o livro numa espécie de ponto de referência obrigatório para os modernistas. Além disso, trazia, em seu prefácio, a teoria poética de Mário de Andrade do desvarismo, e alguns traços futuristas.

É notável, entretanto, a cautela de Mário de Andrade ao tratar de equilibrar a novidade com a tradição cultural, atitude oposta à de Oswald de Andrade, muito mais radical.

"A inspiração é fugaz, violenta. Qualquer / empecilho a perturba e mesmo emudece". Entre esse empecilhos, Mário citará a preocupação com a gramática normativa, com a métrica e com a rima.

Losango cáqui, segundo o próprio poeta, constitui-se o cotidiano de sua vivência transformado em poesia.

Clã do jabuti, certamente resultado das viagens culturais do autor, vale-se do folclore, de costumes e de uma linguagem regionalista numa tentativa de analisar a diversidade cultural do Brasil.

Lira Paulistana retoma, numa perspectiva diversa, o mesmo tema de Paulicéia desvairada, ou seja São Paulo. É nele que se encontra o longo poema "A meditação sobre o Tietê", considerado uma obra-prima do autor.

 

Prosa

Romance

O primeiro romance data de 1927: Amar, verbo intransitivo. Nele Mário desmascara o convencionalismo da burguesia paulistana, através de uma história de amor entre Fraülein e Carlos.

Em 1928, publicou-se Macunaíma, uma rapsódia, como classificou o próprio autor. A obra resulta da utilização de lendas, ditos, provérbios, máximas, em resumo, fragmentos da cultura popular sul-americana, reunidos em torno da personagem central - Macunaíma, o herói sem caráter.

Conto

Dentre as ilhas que confiquram a personalidade Mário de Andrade criador, a do conto é talvez a mais importante e a mais discutida pela contribuição de seu sentido renovador. Tirou o conto do marasmo em que estava, imprimindo-lhe nova conceituação, capacitando-o como gênero literário de grande comunicação em seu poder de síntese. Formulando um conceito crítico, determinou uma ampliação psicológica ao gênero. De "Primeiro andar" a Belazarte", evoluiu sempre, proporcionando à literatura brasileira um exemplo de integração do conto no seu sentido amplo de criação. Dando-lhe estrutura dinâmica, intensificando-lhe o poder emotivo, fixou um marco importante. A partir de "Belazarte", o conto brasileiro teve outra evolução, outra mentalidade, adquirindo maior dimensão estrutural.

A evolução de Mário de Andrade no conto foi das mais arrojadas e isso se demonstra pelas qualidades de "Piá, não sofre? sofre", "O Peru de Natal", "Vestida de Preto" e tantos outros. Em Mário de Andrade, as estórias ganha uma consistência e uma dose bem medida na fabulação.

É preciso apontar no contista Mário de Andrade, o excelente intérprete da comédia humana. Para focalizá-la, nunca recorre a recursos melodramáticos ou grandiloqüentes. Ao contrário, seu tom é sempre outro. Seja para nos descrever as maiores paixões ou os maiores dramas, sempre se utiliza de uma falinha miúda e gostosa, uma fala que comove e convence a gente. "É o gosto de vida temperado pela arte".

Em Mário de Andrade, o cotidiano é interpretado por uma sensiblidade ímpar, com um sentido único ao comunicar ao leitor seu espírito de solidariedade humana. A própria maneira de narrar, como se fora um colóquio, sem formalidades ou grandes preocupações formais, entre o autor e o leitor, permite-lhe baixa a uma conversa de amigo, que, às vezes, assume o tom de confidência.

O conto, em sua estrutura, contém uma sutileza que requer do autor cuidados especiais, para configurá-lo com liberdade de expressão em seus momentos essenciais. Faz-se necessário domínio do tema visando o sentido de comunicação. Uma comunicação fixando cenários, determinando momentos psicológicos, ressaltando regionalismos, tudo com um único objetivo: espelhar a realidade em termos de ficção. Dentro desta perspectiva torna-se evidente que o conto moderno, impulsionado por Mário de Andrade, conseguiu encontrar um caminho certo, buscando explorar novas técnicas narativas e sondar o universo social e psicológico do ser humano.

Mário de Andrade contribuiu para valorizar o conto em sua essência, em sua psicologia, em sua comunicação, em sua densidade e em sua transmissão emotiva, dando-lhe limpidez e clareza de forma, além de grande jovialidade na linguagem.

De Machado de Assis a Mário de Andrade, temos dois pólos, duas escolas, dois estilos, duas marcas, duas personalidades que souberam valorizar a literatura brasileira. A ilha-conto - Mário de Andrade - está situada no arquipélago literário com aquela aura de profunda sensibilidade.

Contos novos

A coletânea Contos Novos, representante da maturidade artística de Mário de Andrade, está inserida na primeira fase do modernismo, ou seja, na geração de 22. Tal classificação permite-nos identificar alguns procedimentos tipicamente modernistas na presente obra, tais como o caráter revolucionário da linguagem, a narrativa fragmentada ou digressiva, a presença da metalinguagem, bem como a influência de uma visão psicanalítica.

Contos Novos mantém as conquistas obtidas em Amar, Verbo Intransitivo e em Macunaíma, só que dentro da técnica do conto. Dentre tais conquistas podem ser citadas: a ruptura das subordinações acadêmicas; a destruição do espírito conservador e conformista; a demolição de tabus e de preconceitos; a perseguição permanente pelo direito a pesquisa estética, pela atualização da inteligência artística brasileira e pela estabilização de uma consciência criadora nacional.

Um dos recursos bastante empregados nas narrativas de Contos Novos é a metalinguagem (o conto explicando a si próprio). De modo geral, os narradores empregam digressões (fugas da narrativa linera para comentar assuntos paralelos) para justificar, explicar ou analisar o próprio comportamento das personagens, bem como avaliar atitudes ou idéias. A linguagem é o ponto alto da obra, no que se refere a proposta experimental e estética, uma vez que o narrador se expressa através de um português popular, cheio de "brasileirismos".

De maneira geral, encontramos nos contos dessa coletânea uma grande preocupação do autor com a psicologia das personagens. Mário de Andrade disseca o passado dos protagonistas em busca de momentos traumáticas de suas existências, revelenado seres aparentemente atormentados, mas que buscam solucionar seus problemas através da exposição dos mesmo a partir dos relatos. Colocar para fora momentos dolorosos ou mal resolvidos parece ser a forma de cura encontrada. Sem dúvida, tal técnica terapêutica, utilizada pelo narrador, é a mesma de que fez uso Sigmundo Freud. Nós, simples leitores, cumprimos a função do analista. As personagens são pacientes que se redescobrem através de um monólogo, misto de auto-análise e exercício literário.

Dentre os principais temas abordados em Contos Novos, destacamos: o comportamento freudiano das personagens, a crítica ao comportamento burguês, a crítica à exploração do homem pelo homem, o amor mal resolvido, o autoritarismo da classe patronal, a repressão sexual, o homossexualismo latente, o gosto pela fofoca e o indivudualismo.

Em "O poço", um dos contos encontrados na coletânea e objeto de estudo deste trabalho, é a relação dividida e antagônica entre um fazendeiro e seus empregados, o núcleo central da narrativa, a qual, passará a ser analisada em seus principais aspectos literários.

 

Elementos Estruturais da Narrativa

Resumo das partes que compõem o enredo:

a) exposição, introdução ou apresentação:

Joaquim Prestes chegou ao pesqueiro ali pelas onze horas. Estava mal-humorado, mas disfarçava, não querendo incomodar a visita que o acompanhava para uma pescaria. A estrada estava péssima e o fazendeiro já era mesmo de pouco riso.

O fato é que foi ele quem começou a mania dos fazendeiros ricos adquirirem pesqueiros na barranca do Mogi. Bem rico, viajado, sem ter o que fazer, resolveu desbravar outros matos. Foi também "o introdutor do automóvel naquelas estradas..." e o primeiro a criar abelhas. "Joaquim Prestes era assim. Caprichosíssimo, mais cioso de mando que de justiça, tinha idolatria a autoridade". Sua eterna mania de capricho fez com que mandasse construir uma casa de verdade no pesqueiro, com dois quartos e sala. Havia até vaso sanitário. Só desistiu da água encanada por causa do preço. Resolveu também mandar abrir um poço.

Os próprios empregados da fazenda trabalhavam na abertura do poço. Ao todo eram quatro, fora dois outros que cuidavam do acabamento da casa. Estavam ali a contragosto, mas obedeceram. Só o vigia gostou de estar ali, imaginando que teria, quando quisesse, ovos, leite, e horta de semente.

Fazia frio nesse fim de julho. Joaquim e a visita foram logo se chegando para a fogueira dos empregados, que se levantaram para cumprimentar.

b) complicação ou desenvolvimento

Joaquim tirou o relógio do bolso e perguntou se ainda não tinham ido trabalhar. Os camaradas alegaram que já tinham, porém ningúem agüentava ficar dentro do poço com aquele frio.

O patrão não aparentava estar satisfeito com as explicações e nem também ter desculpado os empregados. Um deles, um mulato desempenado e bem escuro na cor, José, contou que já estava minando água, o que tornava o trabalho mais penoso. Joaquim Prestes ficou satisfeito. Todos suspiraram de alívio.

Só Albino conseguia descer no poço, por ser os mais leve de todos. Os outros trabalhadores não pareciam dispostos a tamanho esforço, nem mesmo José, que se preocupava com a suspeita de que Albino, seu irmão, estava fraco do peito. Albino é branco; José, mulato. O pai era espanhol. Primeiro se amigara com uma preta do litoral, depois da morte da mulher, veio para a zona da Paulista casar com uma moça branca, que morreu dando à luz o Albino. O espanhol amigou com a cachaça, deixando os filhos jogados. Quando criança, Albino tinha uma doença nova a cada ano: tifo, escarlatinha, disenteria, sarampo. Agora, Joaquim Prestes é que comprava o remédio para tosse de Albino, sem descontar no sálario.

Um dos camaradas comentou que esperavam pelo sol para Albino descer. Mas este, sentindo-se humilhado na condição de doente, exasperou-se. Passados alguns minutos, Joaquim Prestes decidiu que todos deveriam continuar o serviço na casa. Chamou Albino para ver o poço.

O poço estava coberto por tábuas, que foram retiradas por Albino para que Joaquim Prestes pudesse ver a água. Como as tábuas abaularam, Joaquim deixou cair sua caneta tinteiro. "Essa é boa!... Eu é qu não posso ficar sem a minha caneta-tinteiro! Agora vocês há de ter paciência, mas ficar sem minha caneta é que eu não posso! têm que descer lá dentro buscar! Chame os outros, Albino! e depressa! que com o barro revolvido como está, a caneta vai afundando!" Todos vieram dispostos, correndo, "ninguém siquer lembrava mais de fazer corpo mole nem nada". Albino desceu, segurado pelos demais camaradas.

Durante muito tempo, Albino procurou pela caneta no meio do barro. Seu irmão ficava desesperado, gritando a todo tempo se havia encontrado. Finalmente, conseguiu convencer Joaquim Prestes a esvaziar o poço. Albino foi retirado cheio de lama e sofrendo com o frio. "Foi vestindo, sujo mesmo, com ânsia, a camisa, o pulôver esburacado, o paletó. José foi buscar o seu próprio paletó, o botou silencioso na costinha do irmão. Albino o olhou, deu um sorriso quase alvar de gratidão. Num gesto feminino, feliz, se encolheu dentro da roupa, gostando".

Joaquim Prestes estava exasperado. Um dos camaradas, o magruço, sugeriu irem buscar na cidade um poceiro de profissão. Joaquim Prestes estrilou, porque não ia pagar poceiro por causa de uma coisa à toa. Os empregados acharam ruim e se encheram de um orgulho machucado. O magruço olhou José bem nos olhos e perguntou: " — Bamo!..." Foram logo pegando tábuas e buscando balde. Joaquim Prestes e a visita foram almoçar.

Joaquim embirrou que precisava reaver a caneta naquele dia mesmo. Ia também provar que no pesqueiro dele dava peixe, mesmo com aquele tempo. Mandou a empregada levar café para os homens, já que não havia pinga. Desculpou-se com a visita e foi ver o que os operários estavam fazendo.

Todos trabalhavam com afobação. José avisou que Albino não desceria mais, mas este reagiu, meio estourado. O magruço sugeriu que ele mesmo e o José se revezariam. Mesmo assim, o trabalho não rendeu. Joaquim Prestes não saiu de perto, vez ou outra consultando o relógio, com "uma censura tirânica, pondo vergonha, quase remorsos naqueles homens".

c) clímax

O magruço começou a demorar a cada nova descida e chegou a falar em cachaça. Joaquim Prestes acabou berrando, fulo de raiva, depois que o vigia sugeriu ir buscar no japonês: "Não pagava cachaça pra ninguém não, seus emprestáveis! Não estava pra alimentar manha de cachaceiro!" Os empregados olharam para ele, ofendidos. Joaquim Prestes insistiu nas ofensas, olhando o magruço. A visita resolveu ir ao japonês, porque fazia gosto de levar um pescado para a mulher. Voltou uma hora depois, trazendo uma garrafa de cachaça. Foi oferecendo aos camarada, mas estes estes nem responderam. A visita percebeu que algo grave acontecera.

O poço estava seco. Um bloco de terra desprendera-se do rebordo. O magruço recusou-se a descer e, depois da discussão com Joaquim, demitiu-se. Albino desceu para evitar confusão maior. Quando retornou, estava arrasado. Nem conseguia controlar seus movimentos. José deu cachaça para o irmão que contou que o poço estava seco. Joaquim Prestes disse que se ele tivesse insistido, teria achado a caneta. Albino reclamou que não tinha luz. Joaquim ofereceu. José olhou o patrão e disse com calma que Albino não ia mais descer. Depois insistiu e enfrentou o patrão, que terminou, depois de momentos sem palavras, dizendo que não valia a pena mesmo.

No decorrer da narrativa, conforme a atmosfera entre as personagem vai se carregando com a crescente obstinação de Joaquim Prestes, a sua figura começa a assimilar o traço de voracidade do poço, até se desumanizar por completo. Obcecado em atingir seu objetivo, a personagem apenas olha fixamente o poço, não sentido o frio implacável ("os operários tremiam muito, e a própria visita. Só Joaquim Prestes não tremia, firme, olhos fincados na boca do poço"), até que seus olhos passam a "engolir" a boca do poço ("Os olhos do velho engoliam a boca do poço, ardentes, com volúpia quase"). Finalmente, no momento de clímax, quando é contestado por seu empregado José, Joaquim Prestes já surge com a imagem da boca do poço estampada em seu rosto: um "boca escancarada" como a boca do poço, voraz, que não se fecha nunca. E os olhos, tornados "brancos" e "metálicos", completam sua máscara desumana:

"Joaquim Prestes, o mal pavoroso que terá vivido naquele instante... A expressão do rosto dele se mudara de repente, não era cólera mais, boca escancarada, olhos brancos, metálicos..."

Só após o confronto com o olhar "puro, tão calmo" de José, os olhos de Joaquim Prestes reassumem "uma vibração humana". É nesse momento que, incapaz de Ter a "dignidade de agüentar também com a aparência externa de derrota", ele finge uma benevolência covarde e hipócrita, atitude totalmente avessa ao seu caráter prepotente e orgulhoso.

d) conclusão ou desfecho

Joaquim Prestes preparou-se para partir, mas antes disse:

"— Amanhã vocês se aprontem. Faça frio não faça frio mando o poceiro cedo. E... José...

Parou, voltou-se, olhou firme o mulato:

— doutra vez veja como fala com seu patrão".

Dois dias depois a caneta foi entregue a Joaquim Prestes. Veio embrulhada e muito limpa, mas toda arranhada. Os homens tratram o objeto com carinho. Joaquim Prestes a experimentou, mas não escrevia. Estava rachada. Chamou-os de brutos por terem pisado na caneta e jogou tudo no lixo. "Tirou da gaveta de baixo uma caixinha que abriu. Havia nela várias lapiseiras e três canetas-tinteiro. Uma era de ouro."

Análise das Personagens

Personagens: Classificação quanto ao seu papel na narrativa:

Protagonista

"O poço" tem em sua personagem central um paradigma do homem dividido: Joaquim Prestes vive a dicotomia do fazendeiro desbravador, fruto de um passado "heróico" da história paulista, e do empresário progressista, figura típica de uma economia cafeeira. Em sua longa caracterização que inicia o conto, destaca-se, de um lado, uma personalidade inovadora e trepidante: fora o introdutor de uma nova atividade agro-industrial no município, a apicultura, além de outras empreendimentos como a difusão da língua alemã, a compra do primeiro automóvel da região, etc. Também o alto consumo de bens importados, característica própria da aristocracia cafeeira, o afasta dos antigos colonizadores, mais afeito a uma vida simples e austera. Mas de seus antepassados, Joaquim Prestes ainda guarda o espírito pioneiro e a autoridade patriarcal, dois traços fundamentais na conformação do caráter rude e orgulhoso dos antigos fazendeiros que habitam narrativas regionalistas de Mário de Andrade.

Em Joaquim Prestes, no entanto, esse espírito pioneiro dilui-se numa simples vaidade de família; é quase um "hobby", como ironiza o narrador: "Bem rico, viajado, meio sem que fazer, desbravava outros matos". Mas é a autoridade patriarcal, já sem qualquer sustentação histórica na realidade paulista de então, a característica que mais teria se corrompido, tornando-se no fazendeiro, como diz o narrador, uma verdadeira "idolatria da autoridade". Móvel central de toda a trama do conto, esse autoritarismo vai conduzir as relações conflitantes de Joaquim Prestes com seus empregados.

Essa personagem controversa, no entanto, mantém alguns resíduos do paternalismo e da austeridade dos antigos patriarcas, característica que acirram a natureza paradoxal do seu caráter: tem três carros e dez chapéus estrangeiros, mas sua meias quem faz é a mulher, "pra economizar", como diz a personagem. Ao mandar abrir um poço, é incapaz de contratar um poceiro, preferindo os peões de sua fazenda, mão de obra sem especialização para esse fim. Tem simultaneamente atitudes do mais puro paternalismo (vai sempre à cidade comprar um remédio caríssimo para um empregado doente, sem descontar do ordenado) e outras baseadas num relacionamento mais impessoal, estritamente profissional (desconta no salário desse mesmo empregado o custo de uma vidraça que o rapaz quebrara). Enfim, Joaquim Prestes parece sintetizar o Brasil de então, em vias de democratização, urbanização e industrialização, mas ainda preso a um mundo patriarcal.

Antagonistas:

A figura do poço e das péssimas condições ambientais, verificadas no conto, podem ser elevadas ao status de personagens antagonistas, uma vez que se opõem, por suas características, ao objetivo central de Joaquim Prestes: reaver sua caneta tinteiro.

Personagens secundários

José:

Um dos empregados engajados na construção do poço. Taludo, mulato, filho de um espanhol, tem como principal característica psicológica o grande sentimento de amor fraterno que dispensa a Albino. Foi capaz, inclusive, em nome da integridade física do irmão, de se revoltar contra Joaquim Prestes o qual insistia em submeter os trabalhadores a situações humilhantes e desumanas na árdua tarefa de secagem do poço.

Albino:

Irmão de José, branco, é também um dos trabalhadores a serviço de Joaquim Prestes. Tem aspecto doente e porte franzino. Sua postura perante o patrão é de pura submissão e obediência cega às ordens, o que o leva, inclusive, a pôr sua vida em risco a fim de recuperar a caneta perdida.

Quanto à doença de Albino, diz o narrador:

"A doença, não se falava o nome. O médico achara que o Albino estava fraco do peito. (...), mas o Albino, tratado só quando as colonas vizinhas lembravam, Albino comeu terra, teve tifo, escarlatinha, desinteria, sarampo, tosse comprida. Cada ano era uma doença nova, e o pai até esbravejava nos janeiros: "Que enfermedade le falta, caramba!".

Outros tralhadores:

Dentre os demais trabalhadores o que mais se destaca é o magruço, típico trabalhador rural, amante da cachaça, que tem um papel mais restrito na narrativa em relação a José e a Albino. Acabou demitindo-se após uma discussão com Joaquim Prestes, quando se recusou a descer ao fundo do poço.

Vigia:

"Só que estava maginando que enfim se arranjara na vida era o vigia, esse caipira da gema, bagre sorna dos alagados do rio, maleteiro eterno a viola e rapadura, mais a mulher e cinco famílias enfezadas. Esse agora, se quisesse, tinha leite, tinha ovos de legornes finas e horta de semente. Mas lhe bastava imaginar que tinha. Continuava feijão com farinha, e a carne-seca no domingo".

A mulher do vigia:

Uma das personagens que acabam por fazer parte apenas do cenário do conto. Não tem qualquer participação relevante. Sua função restringe-se a levar café ou pinga aos trabalhadores. É um dos inúmeros tipos humanos que abrigam as narrativas de Mário de Andrade.

A visita:

Não possui grande participação no conto. Não profere uma só palavra. Restringe-se a acompanhar Joaquim Prestes passivamente, e a conciliar situações desagradáveis com um sorriso ou indo buscar cachaça para os trabalhadores.

Personagens: Classificação segundo sua caracterização:

As personagens no conto não gozam de grande variedade de características, tampouco de acentuada profundidade psicológica. Podem ser, portanto, caracterizadas como personagens planas, pois seu comportamento pouco evolui com o decorrer da narrativa. Todos são, de certa forma, tipos.

Joaquim Prestes é a personagem que possui um maior desenvolvimento psicológico, todavia não a ponto de que se possa considerá-lo uma personagem redonda.

Análise do tempo

Quanto à época

Podemos localizar o conto, pelas características nele presentes e pelo meio social nele descrito, no início do século XX. Elementos como "o fordinho", a unidade monetária (réis) reforçam esta colocação.

Tudo leva a crer que se trata do Brasil do café, em vias de urbanização, em vias de industrialização.

Quanto ao período de tempo

Há referências em "O Poço" do período cronológico de tempo durante o qual seus fatos se desenrolaram. A principal de tais referências diz respeito ao mês: final de julho de um ano em que "chuvas diluviais alagavam tudo".

Quanto à duração do conto, pode-se dizer que abrange um período de três dias. Inicia-se em um dia de muito frio e ventos fortes, durante o qual há a perda da caneta, e encerra-se dois dias após, quando esta é, enfim, encontrada e devolvida a Joaquim Prestes que a joga fora.

Quanto à ordem em que aparecem os fatos

Os fatos apresentam-se, quanto à ordem temporal, de uma forma natural, cronológica e linear. Tal afirmação é reforçada pela presença de expressões, no texto, que enfatizam a seqüência lógica dos acontecimentos. São estas expressões:

"Ali pelas onze horas da manhã..."

" o almoço estava pronto..."

"Quando mais ou menos uma hora depois..."

"Minutos antes..."

"Dois dias depois..."

Entretanto, podem ser encontradas, no texto, passagens em que o narrador faz digressões e relembra fatos relativos ao passado, a fim de melhor esclarecer o leitor, o que caracteriza o chamado tempo psicológico, não-linear e segundo uma ordem estabelecida pela memória. Esta tendência verifica-se, em especial, na introdução e em curtas passagens nas quais é retomada a história de personagens como José e Albino:

"José, taludinho, inda agüentou-se bem na orfandade, mas o Albino, tratado só quando as colonas vizinhas lembravam, Albino comeu terra, teve tifo, escarlatinha desinteria, sarampo, tosse comprida. Cada ano era uma doença nova, e o pai até esbravejava nos janeiros: "Que enfermidade le falta, caramba!" e bebia mais. Até que desapareceu pra sempre.

Análise do espaço

A grande maioria dos fatos se desenrola em um pesqueiro de estimação, construído por Joaquim Prestes, em um terreno na barranca do Mogi, local de difícil acesso. O espaço é, portanto, rural e aberto, preponderantemente.

Tem-se, na narrativa, um parágrafo dedicado apenas a descrição de elementos físicos presentes no pesqueiro do rico fazendeiro:

"... Pois o velho Joaquim Prestes dera pra construir no pesqueiro uma casa de verdade, de tijolo e telha, embora não imaginasse passar mais que o claro do dia ali, de medo da maleita. Mas podia querer descansar. E era quase uma casa-grande se erguendo, quarto do patrão, quarto pra algum convidado, a sala vasta, o terraço telado, tela por toda a parte pra evitar pernilongos. Só desistiu da água encanada porque ficava um dinheirão. Mas a casinha, por detrás do bangalô, até era luxo toda de madeira aplainada, pintadinha de verde pra confundir com os mamoeiros, os porcos de raça por baixo (isso de fossa nunca!) e o vaso de esmalte e tampa. Numa parte destocada do terreno, já pastavam no capom novo quatro vacas e o marido, na espera de que alguém quisesse beber um leitezinho caracu. E agora que a casa estava quase pronta, sua horta folhuda e uns girassóis na frente, Joaquim Prestes não se contentava mais com água da geladeira, trazida sempre no forde em dois termos gordos, mandara abrir um poço."

A categoria do espaço desempenha na narrativa um papel fundamental, participando ativamente daquela atmosfera tensa que vai recrudescendo com o desenrolar da trama. Um estilo muito semelhante narra a convivência de Joaquim Prestes com seus empregados e a relação da natureza inóspita com esses homens, quando se configura uma identidade entre o tratamento dado pelo homem e o dado pela natureza: enquanto "a umidade corroía os ossos" dos camaradas, após uma ordem do patrão, ele "obedeceram mandados, mas corroídos de irritação"; "o vento soprando, chicoteava da gente não agüentar", "a última reflexão do fazendeiro pretendera ser cordial. Mas fora navalhante", ou ainda, "O rapaz não agüentou o olhar cutilante do patrão".

Também a caracterização tipológica de Joaquim Prestes mantém um forte paralelismo com a descrição da natureza. O seu caráter fechado ("era de pouco riso mesmo") e "taciturno" correlaciona-se com o "dia escuro" e o "ar sombrio". Até a esterilidade cíclica da natureza, cujo frio úmido apodrecia os frutos ("o café apodrecia no chão") e espantava os pássaros e os peixes, tem sua correspondência na aridez dos sentimentos da personagem:

"Aliás o fazendeiro era de pouco riso mesmo, já endurecido por setenta e cinco anos que o mumificavam naquele esqueleto agudo e taciturno."

Mas a descrição do espaço vai mais longe, e através de uma adjetivação personificada, acaba de compor o caráter de Joaquim Prestes com característica que a narração não chega a atribuir à personagem: clima ruim, frio terrível, umidade maligna.

Nessa expressiva identificação do homem com a natureza, o narrador mostra que o caráter de Joaquim Prestes, a sua maneira de tratar os trabalhadores, têm a mesma índole selvagem e irracional daquele inverno inclemente.

O estilo personificador ultrapassa a natureza e atinge todo o espaço do conto, atribuindo a essa categoria narrativa um valor simbólico extremamente crítico. É sobretudo na análise desse aspecto compositivo que se evidencia o alto nível artístico em que se processou a veemente denúncia social presente no conto.

Assim, o poço, signo central daquela tarefa degradante imposta aos camaradas, surge no texto como um prolongamento da personagem. O caráter voraz e fatal desse trabalho, que explora os homens até a exaustão e põe em risco suas vidas pela iminência de um soterramento, é sintetizado na imagem de uma boca: "boca do poço", "bocarra traiçoeira". É significativo que o ato de esgotar a água do poço seja paralelo a um esgotamento físico e psicológico dos trabalhadores.

Mas nessa relação degradada não é só o opressor que se desumaniza; também no oprimido a desumanização não é menos fatal. Esses homens, incapazes de contestar a autoridade arbitrária do patrão, têm, quando muito, uma revolta inconsciente e silenciosa: o magruço, ofendido, fica "ruminando uma revolta inconsciente, que escapava na respiração precipitada, silvando surda pelo nariz". É quando o espaço, muito significativamente o sarilho, instrumento de trabalho dos camaradas, dá vazão aquele desespero através do grito, a forma mais primitiva de expressão. E é através desse grito primitivo que se evidencia a natureza primária e rudimentar dessa revolta "inconsciente" e "surda", a qual, no momento em que finalmente explode, acarreta nesses homens acostumados sempre a obedecer, "uma tristeza, uma desolação vazia, uma semiconsciência de culpa lavrada pelos séculos".

É realmente pungente o trecho em que se inicia a personificação do sarilho: enquanto o "gemido" do objeto vai ganhando forças até se tornar um "uivo lancinante", o grito de aviso de Albino, ou seja a palavra articulada, a linguagem humana, sofre um processo inverso, chegando até a superfície apenas como uma "queixa". Mais do que a força física dos homens, o poço parece ter exaurido a sua capacidade de verbalizar a revolta.

"José e o companheiro viraram o cambito, Albino desapareceu no poço. O sarilho gemeu, e à medida que a corda se desenrolava o gemido foi aumentando, aumentando, até que se tornou um uivo lancinante. Todos estavam atentos, até que se escutou o grito de aviso de Albino, chegado apenas uma queixa até o grupo".

E a narração insiste na resistência do sarilho, que só se cala quando Albino se encontra fora de perigo. Mas recomeçado o trabalho, cada vez mais insano, o seu protesto se exacerba tanto, que é finalmente abafado pelos peões, a mando do patrão:

"E o trabalho continuava infrutífero, sem cessar. Albino ficava o quanto podia lá dentro, e as caçambas lentas, naquele exasperante ir e vir. E agora o sarilho deu de gritar tanto que foi preciso botar graxa nele, não se suportava mais aquilo".

 

Análise do Ambiente

Tem-se, no conto, um verdadeiro corte da sociedade paulista do início do século. Joaquim Prestes é representante da velha aristocracia rural que continua, em parte, presa a velhos preceitos autoritários e paternalistas típicos do colonialismo.

Ao mesmo tempo, os trabalhadores e inúmeros tipos humanos, verificados no conto, são um pequeno retrato da exploração e da submissão trazidas pelo advento do capitalismo.

Análise do Foco Narrativo

Em "O Poço", observa-se a existência de um narrador observador (3ª pessoa), dotado de onisciência, porém não onipresente, uma vez que se restringe a narrar fatos acontecidos em ambientes onde se encontra o protagonista. Sob tal ótica pode-se considerar o narrador como parcial, já que enfatiza o papel desempenhado por uma personagem no conto, no caso, Joaquim Prestes.

Comprovando a onisciência do narrador, podemos destacar a seguinte passagem na qual narra o porquê de Albino e José, apesar de irmão, terem cores da pele distintas:

"Isso de um ser mulato e o outro branco, o pai espanhol primeiro se amigara com uma preta do litoral, e quando ela morrera, mudara de gosto, viera pra zona da Paulista casar com moça branca. Mas a mulher morrera dando à luz o Albino, e o espanhol, gostando mesmo de variar, se casara com a cachaça. José, taludinho, inda agüentou-se bem na orfandade, mas Albino, tratado só quando as colonas vizinhas lembravam, Albino comeu terra,..."

Outra prova da onisciência do narrador pode ser dada a partir do conhecimento que este desmonstra ter do estado emocional das personagens:

"Os camaradas esperavam, naquele silêncio que os desprezava, era insuportável quase. O rapaz não conseguiu se agüentar mais, como que se sentia culpado de ser mais leve que os outros."

 

Análise da linguagem

A linguagem é o ponto alto do conto, no que se refere à sua proposta experimental e estética, uma vez que o narrador se expressa através de um português popular, cheio de "brasileirismos".

Por exemplo:

"Ali pelas onze horas da manhã o velho Joaquim Prestes chegou no pesqueiro".

"Pra comprar o seu primeiro carro fora à Europa..."

Ademais, Mário de Andrade, em "O Poço" faz uso de uma linguagem com uma alta carga expressionista, capaz de personificar os elementos espaciais (umidade que "corroí", o sarrilho que "geme"e "uiva") e de deformar grotescamente as personagens (Joaquim Prestes, assumindo a fisionomia da "bocarra traiçoeira do poço), contribuindo para acentuar o ambiente tenso do conto.

Indicação do tema, do assunto e da mensagem

O tema a partir do qual se estrutura a narrativa em "O Poço" diz respeito à exploração do homem pelo homem.

O assunto, ou seja, a concretização do tema, pode ser sintetizado da seguinte forma:

Ao observar um poço recém-aberto, Joaquim Prestes deixa cair sua caneta. Extremamente irritado, o fazendeiro obriga os peões a uma tarefa torturante, quase um trabalho de Sísifo: esgotar a água de um poço que mal tinham acabado de cavar, durante um dia de frio e de vento.

Com o passar das horas, a situação desumana e degradante a que os trabalhadores são submetidos torna-se insustentável. Joaquim Prestes, contestado por um de seus empregados, é obrigado a mandar que fossem cessadas as buscas pela caneta.

Dois dias após, esta é encontrada e devolvida a seu dono que a joga fora, por julgá-la estragada.

Da exposição do assunto, obtém-se a seguinte mensagem:

"Nada pode contentar aquele que tem seus princípios baseados no autoritarismo, apenas o exercício da autoridade em si, não importando os valores éticos, humanos, materiais e morais que estejam envolvidos".

Análise dos tipos de discurso

Em "O Poço, pode-se constatar a presença de discursos direitos, indiretos e indiretos-livre, sendo o primeiro predominante sobre os demais.

Dentre os exemplos de discursos diretos podem-se citar as passagens:

" — Então ocê vai ficar naquela dureza de trabalho com essa umidade!

— Se a gente pudesse revezar inda que bem... murmurou o quarto, também regularmente leviano de corpo mas nada disposto a se sacrificar. E decidiu:

— Com essa chuvarada a terra tá molde demais, e se afunda!... Deus te livre...

(...)

— ‘cê besta, mano! E sua doença!

Como amostras de discursos indiretos citam-se:

"Sem censura aparente, perguntou aos camaradas se ainda não tinham ido trabalhar".

"Os camaradas responderam que já tinham sim,...".

"De repente contou que agora ainda ficara mais penoso o trabalho porque enfim estava minando água".

"Perguntou se não havia pinga".

Por fim, exemplificando o discurso indireto-livre, podem-se enumerar as seguintes passagens:

"Mas só o forde poderia ir buscar o homem e Joaquim Prestes, agora que o vigia afirmara que não dava peixe, tinha embirrado, havia de mostrar que, no pesqueiro dele, dava. Depois que diabo! Os camaradas haviam de secar o poço, uns palermas!"

"Joaquim Prestes e a visita foram se chegando pra fogueira dos camaradas, que logo levantaram, machucando chapéu na mão, bom-dia, bom-dia".

 

 

Conclusão

Como pudemos observar a partir da análise de "O Poço", Mário de Andrade procurou em Contos novos manter o mesmo caráter experimental e revolucionário de suas publicações anteriores, mantendo-se fiel às propostas modernistas por ele defendidas e muito bem praticadas.

"O Poço" atesta o fato de que Mário de Andrade atingiu,em Contos Novos, o mais alto grau dentro da técnica narrativa do conto, dominando a linguagem sintética dessa espécie literária com a mesma força de narrador que o caracterizou nos romances Macunaíma e Amar, verbo intransitivo. Desde a publicação de seus primeiros contos, reunidos em Primeiro Andar, Mário já anunciava a perfeição que viria quando atingisse a maturidade nesse gênero. Indiscutivelmente, Contos novos é esse momento pleno de amadurecimento técnico e humano.

"Por tudo isso os Contos novos assinalam um dos pontos altos da obra literária de Mário de Andrade; além de representar uma de suas realizações mais plenas e acabadas do pono de vista formal, é também o vibrante testemunho de uma sensibilidade artística cada vez mais empenhada na pesquisa da alma humana". "O Poço" confirma esta afirmação explorando o lado da alma humana que é capaz, por vezes, de priorizar valores materiais em detrimento de valores humanos. Sem dúvida, é uma narrativa rica em significados, prazerosa, que, quando devidamente analisada em todos os seus pormenores, permite-nos grande enriquecimento como leitores.

 

Bibliografia

AMZALAK, José Luiz. Literatura Fuvest 97. Resumos e Análises das Obras. São Paulo: Navegar Editora, 1996, v. 2 (Série Buritis), 146 p.

PASSONI, Célia A. N. Literatura Unicamp 92. Resumos de Literatura. 1. ed. São Paulo: Núcleo, 1992, 126 p.

MIGUEL, Jorge. Curso de literatura. Modernismo. São Paulo: Harper & Row do Brasil, 1986, 379 p.

FARACO, Carlos Emílio e MOURA, Francisco Marto. Língua e Literatura. São Paulo: Ática, 1996, v. 3, 400 p.

PAULILLO, Maria Célia Rua de Almeida. Mário de Andrade Contista, tese de mestrado defendida na FCLH da USP, São Paulo, 1980.

ANDRADE, Mário de. Contos Novos. 16 ed. Belo Horizonte: Villa Rica, 1996, 109 p.

 

Luiz Henrique Guitte Bernabé

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