O sentimento de propriedade e o utilitarismo

A busca por compreender o sentimento de posse e o utilitarismo, que permeiam a narrativa em São Bernardo, leva-nos a concluir que ambos, em última análise, tem sua fonte de origem no caráter do protagonista da obra: Paulo Honório. Daí a necessidade de se caracterizar, primeiramente, os valores e princípios que regem as ações de tal personagem.

A figura de Paulo Honório pode ser tida como um verdadeiro emblema do capitalismo nascente no Brasil do início do século, constituindo-se, antes de mais nada, num retrato fiel do latifundiário empreendedor, independente e dominador que lança mão de todos os meios que lhe estão ao alcance, lícitos e ilícitos, para transpôr os obstáculos que se impõem à sua frente, como um verdadeiro rolo compressor, movido pela ganância e pela cobiça desmedidas. Ganância e cobiça essas que o impelem a estabelecer, sobre tudo (pessoas e objetos) uma relação essencialmente de posse, fomentada por seu poder econômico.

São muitas as passagens em que podem ser destacados exemplos que comprovam tal constatação. Na verdade, costuma-se dizer que toda a obra tem sua unidade mantida, basicamente, pela temática do sentimento de propriedade que advém do próprio Paulo Honório.

Todavia, a necessidade de possuir a tudo e a todos encontra seus pontos altos no anseio do protagonista de "ter", para si, a fazenda São Bernardo e, posteriormente, a pessoa de Madalena. Com relação ao primeiro objetivo, obtém sucesso, fazendo uso de métodos oportunistas e pouco éticos. Já, em relação ao segundo, é fadado ao fracasso que o leva à destruição e ao desencontro consigo mesmo, pois não consegue exercer controle sobre os pensamentos e sobre a maneira de ser dinâmica de Madalena, que acaba se matando.

Se nos voltarmos agora à estrutura básica da narrativa, poderemos ver que um fator importante ainda a destacar diz respeito à cronologia do romance, intrinsecamente influenciada pelo sentimento de propriedade. Na obra, dias, meses e anos são contados com exatidão quase perfeita e objetiva, algo que denota certa pretensão do narrador-personagem em tomar para ele mesmo, para seu uso em benefício próprio, cada instante que lhe é dado viver. Paulo Honório somente comprova, dessa maneira, o quanto o "sentir" é suplantado pela doentia necessidade de "possuir".

Ao mesmo tempo, como uma extensão mais acentuada do preceito de propriedade, encontra-se na obra o utilitarismo, ou seja, a conversão de pessoas em meros joguetes, em coisas que têm seu valor medido pela capacidade de desempenhar tarefas que interessem a um alguém. Paulo Honório revela-se um verdadeiro mestre nessa área, em especial no que toca a seus agregados, levados apenas em consideração enquanto força de trabalho e sendo submetidos, muitas vezes, a condições subumanas e degradantes (Ex: Mestre Caetano e Marciano).

Ainda como exemplo do utilitarismo presente na narrativa, podemos citar o desejo de Paulo Honório de compor São Bernardo a partir do princípio de divisão de trabalho, dispondo das pessoas da maneira como bem convinha a seu ego.

O casamento do protagonista, em última instância, também pode vir a ser tido como um exemplo do utilitarismo, uma vez que não foi, na realidade, fruto do amor, e sim produto de um arranjo, de um negócio: Paulo Honório queria ter uma esposa para lhe dar um herdeiro e utilizou-se de Madalena para tal fim. Da mesma forma pode ser considerada a criação de uma escola, por Paulo Honório, em sua fazenda, exclusivamente para a obtenção de favorecimentos políticos junto ao governador.

O desenrolar da trama comprova que o utilitarismo é um sentimento destrutivo, tanto para aquele que o exerce, quanto para aquele que ousa, de alguma forma, questioná-lo. A relação Madalena X Paulo Honório é o exemplo mais representativo dessa constatação. A primeira encontrou a ruína por tentar questionar o utilitarismo do segundo, já esse foi destruído, em grande parte, em função dos efeitos que sua postura de conversão de pessoas em objetos gerou.

O surpreendente da narrativa fica por conta do fato de que, mesmo sabendo que usou pessoas como objetos, Paulo Honório não se arrepende de tudo o que fez, atribuindo a verdadeira culpa às circunstâncias que envolveram sua vida e sua profissão e que foram capazes de delinear seu caráter.

Sobre Paulo Honório, o sentimento de propriedade e o utilitarismo afirma Antônio Cândido:

"Paulo Honório é modalidade de uma força que o transcende e em função da qual vive: o sentimento de propriedade. (...) São Bernardo é centralizado pela irrupção duma personalidade forte, e esta, a seu turno, pela tirania de um sentimento dominante. Como um herói de Balzac, Paulo Honório corporifica uma paixão, de que tudo mais, até o ciúme, não passa de variante".

Luiz Henrique Guitte Bernabé

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