Crônicas de Infância: Férias no Sapé  

Uma noite quase sem barulhos de pessoas ou máquinas. Parece que haverá lua e os cachorros estão inquietos, deixando que ouçamos grilos nos intervalos de seus latidos.

Evoca-me meu tempo de menina, na fazenda, e as noites em que nós, crianças, íamos dormir amedrontadas pelas estórias de mulas sem cabeça e lobisomens, que o povo local contava. Como hoje, os cães também latiam e os grilos não cessavam de trilar. Era uma época tão boa que acabou logo e hoje faz parte de um doce passado, sem retorno.

Dessa minha história de infância, meus avós são peças fundamentais, porque participaram intensamente de muitos momentos de minha vida,entre eles, e sobretudo, as férias. Como moramos sempre longe de Natal, passávamos o ano todo esperando pela hora de tomarmos um ônibus ou avião para visitarmos vovô Félix e vovó Mely. Assim, guardei com especial carinho os tempos que passamos juntos na fazenda Sapé, então de sua propriedade, onde vivenciamos juntos alegrias e zangas.

Dói-me muito a saudade lembrar a figura querida do meu avô.  A gente também queria muito bem a vovó, mas o vovô era carismático. Todos o ouviam. Era comum vê-lo dando ordens com energia, zangado mesmo, num controle total de tudo o que acontecia na fazenda.

Lembro-me de um de seus pitos muito severos no morador mais antigo, quando, ao assistir a ordenha das vacas, notou a desastrada direção que o homem impunha ao fio de leite que direcionava ao copo. Havia bebido na véspera e ainda não se recompusera. Vi o Alberto, assim se chamava, baixar a cabeça envergonhado, enquanto meu avô passava-lhe uma senhora descompostura. Era muito respeitado pelos peões e seu tom de voz não deixava margem para réplicas. Afinal, era um juiz!

Tenho saudade até do calçamento de paralelepípedos que revestia a pequena rampa da garagem, onde o trator de esteiras era o único ocupante. Tinha um sabor especial o contato dos meus pés com aquelas pedras quentes. Claro que de vez  em quando pisávamos em incômodos carrapichos, contra os quais não havia remédio, porque adorávamos andar descalças.

Do lado direito da casa havia uns coqueiros anões, debaixo dos quais um dia fizemos uma "casinha", utilizando paus de cerca (roubados da cerca mais próxima) e palhas secas dos benditos coqueiros. Foi um custo para os adultos nos convencer a desmontar a casa. Andávamos muito a cavalo, nos pangarés Moeda e Gavião, de trote massacrante, e, quando íamos para os lados dos vizinhos, era comum desfilarmos ensaiando diálogos numa língua ininteligível até para nós, só para aumentar nossa importância aos olhos dos curiosos.

À tardinha, era programa andar nos trilhos de trem que cortavam a fazenda em frente à casa principal, enquanto vovô sentava-se invariavelmente na varanda e era cercado pelos trabalhadores, que iam receber seu pagamento diário e as instruções para o dia seguinte.

Na hora do jantar, ficávamos alvoroçados quando ouvíamos o som do trem  para Recife parando na pequena estação Trahiry. Sabíamos que a parada nos dava vantagem para ainda correr até o portão e vê-lo passar. Era um tal de engolir rápido a comida para não perder o espetáculo da máquina remanchando para fazer a curva em aclive, concentrando força para vencer o obstáculo!

Ainda tenho nos ouvidos o "café-com-pão-bolacha-não" que os "Maria-Fumaça" resmungavam pela madrugada nessa ladeira logo após a casa. Hoje sei que o que sentia era pura emoção. Todos recolhidos, eu ouvia o trem segurando a respiração, num misto de admiração e medo, feliz por estar protegida pela escuridão de dentro de casa. Acho que vem daí a minha segurança ao apagar as luzes.

O jantar era sempre seguido de uma sessão de jogo de cartas.  Nós, os pequenos, não participávamos, mas nos divertíamos ouvindo relatos das aventuras vividas por meu avô ou inventando brincadeiras com as redes. Campeonato de quem balançava mais alto, fingindo que estávamos em barcos navegando em mar agitado; enrolar alguém dentro delas para vê-lo ser desenrolado pelo impulso contrário; enfim, tudo o que a imaginação permitia. Éramos incansáveis, eu, minha irmã Lais e dois primos com os quais convivíamos mais na fazenda, Maurício e Eduardo. Havia também um terceiro primo que estava sempre conosco, o José Carlos - Zeca - que, por ser mais velho do que nós, era tratado como adulto. Que ciúme tínhamos dele!

Para afugentar as muriçocas, cascas de côcos eram mantidas queimando,  produzindo fumaça. Mesmo assim, as janelas recebiam telas ao cair da tarde, bem como  a porta principal, para que pudéssemos dormir sem a cantilena e os ferrões dos mosquitos.

A viagem de volta era dolorida, mas a ansiedade do reinício das aulas  tornava as coisas mais fáceis. Chato era acordar de madrugada para enfrentar o percurso de carro até um aeroporto que não chegava nunca! Na verdade, tudo era bom para nós. Sabíamos que nossos avós estavam sempre lá, à nossa espera, com um doce de caju em compota que só a vovó sabia fazer e com um queijo do sertão escolhido a dedo por vovô.

Hoje eu relembro e faço de conta que vovô e vovó ainda estão lá, a nos esperar para as férias, sentados nas suas cadeiras de balanço, vovó a tamborilar os dedos musicais, solfejando melodias, e vovô a relatar as estórias de sua mocidade, no seu português impecável.

Feliz daqueles que têm um passado de recordações tão queridas como as minhas. É o meu maior patrimônio! Vania  
 
 

Página inicial Felu & Mely Raízes Aniversários JequitiNET

 


This page hosted by Geocities. Get your own Free Home Page  

1