FESTIVAL DO RIO 99
críticas dos filmes em exibição

   1947: Terra, de Deepa Mehta

Índia/Canadá, 1998


Apesar dos esforços, este 1947: Terra, filme do indiano Deepa Mehta, revela uma indistinção. Lemos no créditos: parceria entre Índia e Canadá. Na seqüência, nos perguntamos "mas não é um filme americano, do tipo Entre Dois Amores? Tudo no filme nos remete a uma idéia muito comum por aí, que é a concepção de um "cinema para todos". Este cinema seria um basta às complicações "técnicas" e "intelectuais" do chamado "cinema de arte", trocando em miúdos, aquele tipo de filme que todo mundo acusa ter sido feito pelo autor para o autor. Isto é, quando na década de cinqüenta/sessenta, determinada camada de consumidores foi "atacada" por uma avalanche de filmes, uma filigrana desta camada foi apelidada "cinema de arte" graças ao diferencial que portava como alternativa ao cinema industrial norte-americano. Este cinema americano, através de uma linguagem elaborada, ainda produzia obras primas como Vertigo e era o cinema industrial, comercial que muitos buscavam destruir, pelo menos com palavras.

Todo esse papo pode ser anacrônico e confuso, porque, por exemplo, o termo "cinema de arte", não foi cunhado somente para os fins estabelecidos acima. Muito menos, as décadas de 50/60 podem ser reduzidas à obra prima de Hitchcock. A propósito, falar de Hitchcock sem lembrar da geração Cahiers? Outro absurdo. O que me exime de culpa? Além da ignorância, que vocês devem me perdoar, o desejo de apontar a existência de uma discussão. Parece tolo afirmar que há uma discussão em torno das potencialidades e finalidades do cinema comercial. Minha confusão existe graças a questões muito ambíguas do tipo filme de arte/filme comercial. Hoje sabemos que o filme pode ser comercial e genial ao mesmo tempo. Do mesmo modo, ele pode ser "de arte" e uma porcaria sem fim.

Pois bem, há alguns anos vemos nascer um novo tipo de filme comercial, que sempre existiu, mas que hoje se realiza de outro modo. Mifune: dogma 3 é um exemplo dele. Um filme com todos os pequenos preconceitos de um cinema mediano do tipo Uma Linda Mulher e Ghost, com reiterações de linguagem, destituído de ambição, expressão, graça e grosseiro em seus juízos subjetivos. Tem até suspense para sabermos quem vai ficar com a mocinha, uma prostituta que "quer sair desta vida". Ora por que as prostitutas nunca gostam de ser prostitutas nos filmes comerciais americanos? Ou se gostam, são sempre purificadas no final, ou a partir de uma punição, ou a partir de uma conversão, sempre a reboque de um Richard Gere a cavalo. Isto não é um detalhe: denota todo um contexto de serialização da produção, que não é novidade para, rigorosamente, ninguém. O contexto histórico do cinema americano permite. Neste contexto, muito se produziu de original e expressivo. Agora, nada se produz de original, a não ser em determinados segmentos. Mas este posicionamento não quer significar uma distinção mais clara? Pulp Fiction é sucesso, mas no seu devido lugar. Há, então, uma categoria bem determinada para se manifestar. Até aí tudo bem. O problema é quando isso se extende ao mundo todo. Tanto o dinamarquês, quanto o indiano e o brasileiro abrem mão de suas respectivas cinematografias em prol de um "cinema universal", para todos. Isto é, um cinema idêntico no mundo inteiro, supremo e mascarado em produções como Mifune e este 1947: Terra. E quando o filme gera dinheiro, mas não se enquadra na categoria "filme para todos", vira um Pulp Fiction, um sucesso mas em seu devido lugar. Nós também temos nosso lugar, nem ao lado de Star Wars nem ao lado de Pulp Fiction, mas na mesma categoria de 1947: países periféricos que imitam uma linguagem em prol de uma "compreensão" geral. Ora, o que é Central do Brasil, senão esta vontade de "entrar" no primeiro mundo?

Em suma, entendemos que o cinema sempre foi mercado e, atualmente, em decorrência deste fato, alguns excessos são cometidos. Entendemos que esses excessos trabalham por uma unificação da linguagem cinematográfica, sob um pretexto igualitário ("filme para o povo") mas que no fundo, reitera um estado de dominação política e de coação. Também compreendemos que a política do cinema se realiza gradativamente em padrões cada vez mais radicais: filme independente, filmes periféricos, filmes de arte (jargão adotado por Hollywood), etc. A idéia e a tática para não entrarmos na mesma leva deste pobre rapaz indiano (na realidade, pobre sou eu!!) residiria na observação do cinema de Eduardo Coutinho, Rogério Sganzerla, Carlos Reichenbach, Julio Bressane, Beto Brant e muitas outras cabeças que buscam fugir da dominação.

Bernardo Oliveira

 

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