2001, à noite
Por Rafael Viegas?
 

     1. A velha frase com que se enamoravam os súditos no Grande Império [O Rei está morto, viva o Rei!] ganha mais sentido agora, que não há nada a ser colocado no seu lugar. Uma espécie, não de vazio – claro, isto não existe –, nem de saudade – tampouco isto! –, mas de júbilo negativo e parricida, pela morte do Grande Pai, pela alegria acridoce de alguém que nos deixou (o sortudo!), obliterados pela memória, sacrificados pela procura eterna de um substituto. Observando o Oscar na televisão temos uma idéia precisa do que se trata.

    2.5. O processo de reconhecimento de uma obra não é imediato, por isso existe a história – e os que fazem história. Neste último campo dos saberes, posto que somente a experiência empírica e concreta dos homens pode nos revelar a sua qualidade e a sua permanência, está um seleto grupo de objetos notáveis: Franz Kafka, Carl Theodor Dreyer e Stanley Kubrick. Por que Stanley Kubrick está na galeria dos notáveis? Nem mesmo eu sei dizer. A foto de Kubrick apareceu no jornal anteontem e decidi pôr eu mesmo, em definitivo, a sua efígie no seleto grupo dos homens. E também porque Stanley Kubrick está morto.

    3.4. Em Michelângelo nós temos o seguinte processo em gestão: a crise do corpo (que espécie de bárbaro poderia considerar mais belo o calçado e não o pé que está dentro dele?) na crise do espírito. Por que? Porque as mãos não foram feitas para pensar, nunca souberam operar o espírito, nunca processaram a alma. A situação da arte italiana do Quatro e do Cinquecento é a de produzir uma história completamente nova, na sua relação com o antigo, que na verdade é tão somente a conquista do moderno, do inédito e do canibal.

    Non ha l'ottimo artista alcun concetto
    c'un marmo solo in sé non circonscriva
    col suo superchio, e solo a quello arriva
    la man che ubbidisce all'intelletto.

    Il mal ch'io fuggo, e 'l ben ch'io mi prometto,
    in te, donna leggiadra, altera e diva,
    tal si nasconde; e perch'io più non viva,
    contraria ho l'arte al disïato effetto.

    Amor dunque non ha, né tua beltate
    o durezza o fortuna o gran disdegno,
    del mio mal colpa, o mio destino o sorte;

    se dentro del tuo cor morte e pietate
    porti in un tempo, e che 'l mio basso ingegno
    non sappia, ardendo, trarne altro che morte.

    3.8. Para Kubrick, a aventura tem um significado diferente. Ela redimensiona a paraliteratura, que ironicamente se transforma na própria dimensão da ciência. De que ciência se trata? Ciência do espírito? Certamente, num sentido amplamente diverso do de Hegel. Que Hegel? Num sentido completamente diverso. A pesquisa audaciosa de 2001, a diognese tecnológica que vai para o céu, não toma conhecimento de velharias, de efeitos-especiais, de sofismas ciencioficcionais ingênuos. Em 2001 não há qualquer menção a efeitos-especiais: eles não se deixam penetrar pelo simples vazio do mistério. São plausíveis. Não existem, na história do cinema, efeitos-especiais que sejam plausíveis – o cinema inteiro, que é uma grande lorota, um ouro de tolos, vive deles. Mas os de Kubrick se remetem decisivamente à realidade. Ou talvez, se vocês quiserem, a absoluta masterização do inconsciente coletivo, o gigantesco cérebro amorfo do acaso, que seja considerada parte de sua forma e modelo. Dos Passos, quero dizer, Kubrick, não faz montagens de cinema subconsciente. Trata-se mais do que nunca de fazer esta diferença fundamental. O que há de comum entre Kubrick e a natureza é que a natureza o produz e Kubrick produz uma natureza-morta factível, tocável, possível. Kubrick tira da epistéme a impossível poíesis. As ligações são muitas: Kubrick entre o passado e o futuro, Stanley kubrick[adjetivo] e a Mona Lisa, Kubrick e a partida dos Los Angeles Lakers, Kubrick e o imperador, Kubrick morreu. Quanto tempo foi empregado para a construção de 2001, quer dizer, para se poder dominar a linguagem própria à NASA, domínio hermético sobre a linguagem do universo que somente a NASA conhece [a NASA, que é o futuro país dos Estados Unidos], quanto tempo se perdeu no detalhismo do incalculável, construção infinita e insuportável às margens do absurdo, do urubùquaquá, no pinhém? Só o computador então controlaria essa estética. Ele seria a única chance do filme perfeito – e ele está lá, em mutação congênita, fugindo da perfeição para tornar-se ridiculamente humano. No entanto, apesar de tudo isso, é somente a possível desconstrução que orbita, como uma nódoa impossível de fechar, por sobre todo o vazio da noite. Ou antes, é o ballet dolorosamente impossível no meio do nada [música primorosamente cromática de Aram Khachaturian] entregando a nave aos nossos olhos, contraparte da familiar valsa dos brinquedos de Johann Strauss, no ambiente familiar e reconfortante entre a Lua e a Terra: a Grande Mãe olha, para cima ou para baixo?, sua prole mágica sorrir. "É incrível como eles são frágeis", ela diz. O Danúbio Azul com seus fluxos magnéticos invisíveis. Ao lado de Júpiter, o quase outro sol do mundo, Dave Bowman, longe de casa, está finalmente pronto para a idade adulta do homem [Atmosphères de György Ligeti].

    6. De virginitate. Aparentemente, Santo Agostinho – mas Tertulliano.

    7. 2001: A Space Odyssey. Aparentemente, Stanley Kubrick.

    8. (1968)

    Production: Company Metro-Goldwyn-Mayer?
    Producer: Stanley Kubrick?
    Director: Stanley Kubrick?
    Screenplay: Stanley Kubrick, Arthur C. Clarke, based on Clarke's shortstory "The Sentinel"?
    Photography: Geoffrey Unsworth?
    Screen Process: Super Panavision, presented in Cinerama?
    Color: Metrocolor?
    Additional Photography: John Alcott?
    Special Photographic Effects Designer and Director: Stanley Kubrick?
    Editor: Ray Lovejoy?
    Production Design: Tony Masters, Harry Lange, Ernie Archer?
    Art Direction: John Hoesli?
    Special Photographic Effects Supervisors: Wally Veevers, Douglas Trumbull, Con Pedereson, Tom Howard?
    Music: Richard Strauss, Johann Strauss, Aram Khachaturian, György Ligeti?
    Costumes: Hardy Amies?
    Sound: Winston Ryder?
    Cast: Keir Dullea (David Bowman), Gary Lockwood (Frank Poole), William Sylvester (Dr. Heywood Floyd), Daniel Richter (Moon-Watcher), Douglas Rain (HAL's Voice), Leonard Rossiter (Smyslov), Margaret Tyzack (Elena),Robert Beatty (Halvorsen), Sean Sullivan (Michaels), Frank Miller (Mission Control), Penny Edwina Carroll, Mike Lovell, Peter Delman, Dany Grover, Brian Hawley?
    Running Time: 141 Minutes?
    Distributor: Metro-Goldwyn-Mayer, Films Incorporated/16?
 

    10. Magnus es, domine, et laudabilis valde: magna virtus tua, et sapientiae tuae non est numerus.

    12. O cinema se compõe de traços eminentemente modernos. Kubrick sabia disso e teria feito péssimos filmes de terror caso optasse pela genialidade que sempre se lhe opuseram os outros. Para Kubrick, portanto, o ideal do sublime escapa à Gelassenheit. O tecnologista simplório nunca advirá de tamanha competência, graça e saúde pública e coletiva. Mas dará banho com o charme do mal e da masturbação in vitro, sua pele circunvoluída até a morte, o chão completo de anamnese volátil e preta. Il mio basso ingegno non sappia, ardendo, trarne altro che morte, sejam suas palavras finais. Ou não. A pose de Santo Antônio.
 
 

Izesuq Kilistoq
 
 
 
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