Além da Linha Vermelha (The Thin Red Line),
de Terrence Malick (EUA, 1998)

thinred02.jpg (14778 bytes)
Além da Linha Vermelha

Num certo momento de Além da Linha Vermelha, o coronel interpretado por Nick Nolte retira o capitão Staros (Elias Koteas) do comando da missão. Staros havia previamente decidido por não levar seu grupo a um embate direto com uma casamata. Sua manobra fora eficiente: o grupo não teve perda de homens e, atacando pelos flancos, conseguiu dominar o território estratégico para a vitória aliada. Entretanto, o coronel não está tão certo sobre a bravura do capitão. Diz que ele não é homem para uma guerra e resolve tirá-lo de lá sob pretexto de malária. Mais tarde, ao ouvir de seus soldados que a decisão tomada havia sido injusta, o capitão diz que realmente não sabe: "O pior de tudo é não saber se você está certo". É aí que se instaura o mundo dos personagens de Terrence Malick: um mundo onde não há verdades absolutas, onde cada decisão tomada recebe seu devido posto de relativa, onde antes das decisões globais e dos jogos macro de guerra, o que conta são os jogos do micro, do íntimo, do interior de cada personagem. Seu filme não tem personagem principal, não tem o que os "profissionais" de roteiro chamam de plot. Seguindo seu desejo do íntimo, Malick estraçalha seu centro narrativo em vários personagens diferentes, várias histórias de vida diferentes. Não sabemos muito sobre cada um deles, mas cada informação nova que temos parece ser realmente a única possível. Seus personagens – absurdo para os filmes de guerra convencionais! – nunca são tipos ou caracteres arquetípicos (o sargento malvadinho, o intelectual covarde, o bravo guerreiro...). Seu cinema do detalhe cria personagens de carne e osso, irredutíveis a modelos narrativos prévios ou "de sucesso".

Além da Linha Vermelha começa de forma inesperada. Não vemos soldados, não vemos guerra: vemos uma tribo melanésia e seus costumes, numa câmara que ora quer-se antropóloga ora quer-se membro da tribo. É dessa câmara que aparece Witt, o ocidental branco que já desertou uma meia-dúzia de vezes. Witt, personagem mais encantador do filme, é quem tenta achar suas relações com o absoluto. Ele incarna, como vários outros personagens-autores da literatura americana, a adequação perfeita homem/natureza. É ele quem, ao longo do filme, sai do paraíso melanésio para a guerra destruidora. Seu objetivo é morrer serenamente, tal como sua mãe. De seus olhos sai o inesperado (dessa vez para os melanésios, mas não para o espectador): dois navios aportam à ilha. A guerra começa, e a partir daí o que vemos é a luta dos soldados não para defender a América ou para obter a glória, mas simplesmente para continuar vivos. Em outra situação do filme, o sargento interpretado por Sean Penn corre pela linha de fogo para levar morfina a um soldado alvejado. Na volta, o cap. Staros diz que vai recomendá-lo para a Medalha de Honra. O sgto., sem deixar lugar para maiores elogios, responde grosseiramente que não repita mais algo do tipo.

O filme de Malick é, sem apelação, um conjunto de imagens em que cada ato de cada personagem deve ser remetido unicamente a si próprio, sem glórias ou pesos sociais. Daí vermos o coronel que sempre quis lutar em uma guerra; mas é menos pela glória do que por ser sua guerra. Daí Welsh (Sean Penn) dizer, ao ser perguntado sobre solidão: "Só quando tem um monte de gente do seu lado". Além da Linha Vermelha é um filme em que não há uma moral (a do exército, a dos direitos humanos, a do ocidente contra o oriente...) nem qualquer outro procedimento base segundo o qual os personagens estariam certos ou errados ao tomar tal ou tal decisão. Ao contrário, Além da Linha Vermelha é um filme ético, onde tudo que acontece remete única e exclusivamente à vivência do personagem, e como tal, deve ser julgado somente à luz de seu próprio modo de pensar. Daí a figura de linguagem que é o tão discutido monólogo, usado ao longo do filme por todos os principais personagens (Witt, Welsh, Bell [Ben Chaplin]...). Longe de ser "chato" ou "entediante" como o querem os detratores do filme, o monólogo é o fio-condutor através do qual o filme passa do macro para o micro, deixa de ser uma observação jornalística de uma guerra (e realmente vemos no filme uma câmara se movimentando entre o jornalismo de guerra e a coreografia dos travelings bem ensaiados) e passa a ser o relato dos indivíduos que estão aí envolvidos.

Antes de ser um filme de guerra, Além da Linha Vermelha é um filme sobre uma condição existencial, uma cujo nome está tão batido quanto "existencialismo" ou "irracionalismo": é um filme sobre a incomunicabilidade. Do homem para o mundo falta coisa demais: Witt volta para o paraíso melanésio e vê seu povo destruído (os nativos têm medo dos recém-chegados, as crianças têm doenças de pele, os velhos brigam entre si, os crânios dos nativos são guardados como lembranças de guerra...); o soldado Bell, que encontra na esposa o abrigo para um lugar tão hostil, vê seu mundo despencar; o coronel têm vergonha de seu filho por ele trabalhar com vendas e não pegar em armas. A figura que Malick faz do homem em Além da Linha Vermelha é herdeira do modernismo mais belo do século XX. O homem é cindido, existe algo (Deus, o inconsciente, o Estado) que pensa por ele. Esse algo, entretanto, está sempre fora do filme. A solução cinematográfica que Malick dá é perfeitamente adequada: o homem tem de buscar seu destino por si mesmo, para finalmente poder morrer com serenidade. Daí um último plano maravilhoso, tal como inúmeros outros ao longo do filme: em meio à água rasa, um pequeno monte de terra dá vida a uma planta, que não é bonita nem feia, mas que tenta sobreviver apesar de tudo. Esse é o perfil dos homens de Malick. Como o soldado amigo de Witt, que ao reembarcar (possivelmente para outra missão, quem sabe) tem os olhares perdidos ao longe. Sozinho.

Ruy Gardnier

1