A Maçã (Sib),
de Samira Makhmalbaf (Irã/França, 1998)
Ruy GardnierO primeiro plano do filme não poderia ser mais revelador de todo contexto do filme. Uma flor precisa ser regada, e uma mão do alto do plano tenta jogar água de uma caneca, mas há algum impedimento (fora de campo) que faz com que apenas um bocadinho de água consiga realmente chegar a seu objetivo. De fato, A Maçã será a tentativa de fazer com que essa flor possa ser regada livremente, que a mão que rega a planta possa ter toda a liberdade. Um filme contra os entraves da liberdade? Também. O primeiro filme de Samira Makhmalbaf surpreende menos pelo formato (mistura documentário-ficção comum nos filmes do seu pai, Mohsen Makhmalbaf, mas originalmente criada por Abbas Kiarostami a propósito do pouco conhecido Close-Up) do que pela sutileza com que ela mostra seus personagens, com o intrincado e um tanto insólito desenrolar dos acontecimentos.
A história da qual o filme parte nos é dita logo no começo do filme: um pai prende suas duas filhas em casa porque a mãe é cega. A partir de um abaixo-assinado organizado pelos vizinhos, o assunto passa a ser conhecido pelos jornais e pelas autoridades. Uma assistente social é designada para fazer com que os pais respeitem as definições da justiça: que às meninas seja dada a liberdade. O que no começo parece pura idiossincrasia paterna vai aos poucos se revelando como uma complicada teia de preconceitos, fanatismo e jogos de poder. Primeiro vemos a justificação filosófica para mantê-las presas: diz o Livro que as meninas são como pétalas de flor que se desmancham em contato com o Sol. Depois, mais tarde, o verdadeiro motivo: o domínio da mulher, cega, mas que aparece como a verdadeira força (do mal) oculta no filme, uma força sem cara (ela aparece sempre encapuzada), para defender o antigo modelo, em contraposição ao novo modelo, defendido pela assistente social. Poderia-se dizer que A Maçã é um filme feminista? Parece que não. O filme é, isso podemos dizer, um assunto de mulheres. De fato, elas são tudo que move o filme, e os homens (o pai e o vendedor de sorvetes) estão na história apenas como atualizadores de um sistema.
Mas há em A Maçã uma beleza bruta, desconhecida. Beleza documental, uma função-Freaks (o filme de Tod Browning): vemos as meninas embrutecidas pelo tempo de clausura elas não falam direito (quase uivam!), se movimentam estranhamente, não sabem utilizar o dinheiro... Mas há algo que humaniza-as em primeira instância (e aí a função parece se confirmar), imediatamente. É o sorriso delas, o gosto de conseguir sair pela rua, de brincar selvagemente com as meninas mais ricas, de comer as maçãs resultantes de sua primeira compra...
Fala-se muito de uma suposta ingenuidade do cinema iraniano, de uma suposta sinceridade documental que é comum a todos os filmes iranianos. Não se poderia imaginar mais bobagem! Se certos filmes do Irã realmente assumem a forma lógica e estética de certos filmes do neo-realismo (Ladrões de Bicicleta, por exemplo), como O Jarro e Gabbeh, o grosso dos cineastas iranianos trabalha com o contrário da verdade, com a mentira. A reconstituição, figura clichê do cinema americano, torna-se no cinema do Irã um escalonamento de planos de interpretação possíveis (em A Maçã, os fatos realmente ocorreram e os protagonistas são os mesmos na realidade e na ficção), o cinema iraniano pode tornar-se um cinema da crueldade (Salve o Cinema) ou um cinema nitidamente voltado para a mentira como principal modelo para chegar à verdade (Kiarostami). A Maçã é um digno representante desse cinema, um primeiro momento de uma diretora que promete dar altos passos.