Realismo e Neo-Realismo em André Bazin

por Luiz Rezende Filho

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Umberto D., de Vittorio de Sica

Em seu prefácio ao livro de André Bazin sobre Orson Welles, André Labarthe diz ser a descoberta de uma nova relação filme-espectador, imposta pelo cinema moderno, a intuição central da obra de Bazin sobre o cinema. Bazin teria sido talvez o primeiro crítico a perceber e a analisar a mudança fundamental que ocorreu no cinema nos anos 40 e no pós-guerra, a separação entre um primeiro cinema — "realista" — e um cinema moderno — "neo-realista". O que fazia esse novo cinema diferente e o que nele possibilitava essa nova relação com o espectador, ou, ao contrário, o que aconteceu ao cinema e ao mundo para que se buscasse uma nova relação filme-espectador, seriam questões fundamentais para a análise e para a crítica de cinema feita por Bazin.

É em seus textos sobre o neo-realismo italiano que essas questões seriam tratadas mais detidamente. A análise intrínseca dos elementos fílmicos e narrativos de uma série de obras de diretores neo-realistas italianos fornecerão o substrato necessário para Bazin retirar daí as principais características desse novo cinema "neo-realista" e suas principais diferenças em relação ao "realismo". De uma maneira geral, é em relação a dois dos principais pontos da estética cinematográfica clássica — a dramaturgia e a montagem — que Bazin vai estabelecer as diferenças mais significativas entre realismo e neo-realismo.

No que diz respeito à dramaturgia, Bazin vai ver, em certos diretores italianos como Rossellini, Visconti e De Sica, uma maior liberdade em relação às regras da necessidade dramática herdadas do teatro e uma quebra com os mecanismos do espetáculo, que até então teriam dominado o cinema. Há, para Bazin, uma renúncia voluntária às "seduções dramáticas" — o que faz com que a história não se desenrole mais segundo regras de desenvolvimento de suspense e de tensões — e uma dissolução da ação, que é quase paralisada, deixa de existir para dar voz aos acontecimentos, aos fatos, que não mais se hierarquizam e passam a ter o mesmo peso.

A utilização de atores não profissionais e de cenários naturais, é, para Bazin, mais do que artifícios contingenciais da realização cinematográfica, elementos de uma crítica ao cinema-espetáculo. O intérprete, "escolhido unicamente por seu comportamento geral", passa a ser ao invés de expressar. O cenário natural reduz as possibilidades de controle e de obtenção de efeitos de luz e de cenografia permitidos pelo estúdio, e põe em jogo o acaso como criador.

Bazin vê também neste cinema moderno um afastamento das influências do teatro e uma aproximação com o romance. O neo-realismo, num sentido amplo, abandonaria a ação teatral clássica que caracterizava o grande cinema até então, para aprofundar suas "virtualidades romanescas":

"Se a tela pode, em certas condições, desenvolver e como que desdobrar o teatro, é necessariamente em detrimento de certos valores especificamente cênicos e, em primeiro lugar, da presença física do ator. Em contrapartida, o romance não tem nada a perder no cinema. Podemos conceber o filme como um super-romance cuja forma escrita não seria senão uma versão enfraquecida e provisória." Bazin, p.276. (todas as numerações de página se referem à edição brasileira de O Cinema — Ensaios, de André Bazin.)

Bazin percebe, assim, no romance uma fonte privilegiada de inspiração para o cinema e identifica no neo-realismo talvez o primeiro grande momento de verdadeira influência da literatura no cinema, não apenas influência temática, através das adaptações, mas influência de ordem estrutural (de "linguagem"). É nesse sentido que ele poderá falar de Paisá como o primeiro filme cuja estrutura se aproxima à do conto, à de um conjunto de contos. O que leva Bazin a aproximar a literatura do cinema é a possibilidade de uma representação contínua do acontecimento, do fato, um respeito pela duração da descrição da realidade, idéia até então pouco aproveitada pelo cinema, que preferia proceder pela análise, decupagem e montagem para "significar" o acontecimento. Essa idéia, a do respeito, por parte da estrutura do relato cinematográfico, à verdadeira duração dos eventos, constituirá a principal crítica de Bazin à montagem realista — e também aos soviéticos — e um dos pontos principais de sua conceitualização de "neo-realismo".

A crítica de Bazin à "montagem realista", ou melhor, ao tipo de montagem corrente nos anos anteriores à segunda guerra mundial, da mesma forma que sua crítica à dramaturgia clássica, pode ser entendida claramente como a defesa de um certo "específico cinematográfico", redefinido por ele. Da mesma forma que o cinema progressista se afastava dos recursos do teatro, ele também procurava substituir a criação de sentido através da montagem pela preservação da unidade e da continuidade do fato filmado. Desta forma, o fato ou "a imagem-fato", como Bazin vai chamá-la, estaria aberta à proliferação de sentidos e não mais limitada à univocidade discursiva da "montagem". O cinema moderno reencontrava, para Bazin, uma outra especificidade, perdida nas teorias da montagem do início do século: o seu realismo intrínseco, sua capacidade fotográfica privilegiada de representar o real sem intervenção humana, e a possibilidade de preservar esse real captado em sua multiplicidade de sentidos.

Em vários textos célebres, como Ontologia da imagem fotográfica, Montagem proibida e A evolução da linguagem cinematográfica, Bazin vai tratar dessa "essência" realista que caracterizaria o cinema, dessa sua propriedade particular de representar melhor o real, de obter uma adequação exata entre a imagem e o objeto. Identificando na história das artes plásticas a história da semelhança e do realismo, Bazin vai ver na fotografia e no cinema a chegada a um estágio especial dessa história — chegada a um realismo talvez definitivo — e a solução de contradições sempre presentes na pintura:

"A pintura se esforçava, no fundo, em vão, por nos iludir, e esta ilusão bastava à arte, enquanto a fotografia e o cinema são descobertas que satisfazem definitivamente, por sua própria essência, a obsessão de realismo. Por mais hábil que fosse o pintor, a sua obra era sempre hipotecada por uma inevitável subjetividade. Diante da imagem uma dúvida persistia, por causa da presença do homem. Assim, o fenômeno essencial na passagem da pintura barroca à fotografia não reside no mero aperfeiçoamento material (...) mas num fato psicológico: a satisfação completa do nosso afã de ilusão por uma reprodução mecânica da qual o homem se achava excluído." Bazin, p.21.

A grande contradição da pintura, ou seu grande "defeito" ou limitação, era, para Bazin, a sua falta de "objetividade". Não importava o quanto um quadro e um pintor fossem bem sucedidos na reprodução fiel do real, na concretização da ilusão a que a arte figurativa se propunha: à obra sempre faltava credibilidade, porque ela não provinha diretamente da realidade. Esta precisava passar pelas mãos de um artista para existir como representação e, neste processo, se tornava, então, discurso subjetivo do artista, e não mais dado do real. Ela perdia, assim, muito do realismo que no princípio se buscava e seu valor se restringia ao sucesso da concretização de uma ilusão. Não se podia acreditar na obra como testemunha do real, ela era antes a visão de um artista.

É essa contradição que a fotografia, e depois o cinema, vem resolver, segundo Bazin. A possibilidade de um tipo de representação que exclui o homem e a sua subjetividade, daria, finalmente, ao real a capacidade de falar por si próprio. Talvez seja este o ponto principal daquilo que Bazin chama de "realismo": o próprio real como representação do real. E esta seria a potencialidade maior do cinema, a sua especificidade.

Mas, inicialmente, não foi por este caminho que o cinema seguiu. Segundo Bazin, o cinema principiante também visou, copiando a pintura, à ilusão, ao trompe l'oeil, à mentira. Procurou estabelecer com o seu espectador uma relação de fascinação pelo truque, que, como a pintura, representa o real pela mão de um artista habilidoso que, manipulando uma técnica invisível, cria a "aparência" de uma realidade. Esse realismo seria o que procura fazer uma cópia da realidade através do truque e a despeito dele. Bazin vai dizer que essa "função de embuste" cederá lugar rapidamente a um realismo ontogenético (p.32), que, como veremos, só estará pronto no pós-guerra.

Os passos iniciais do cinema e de seus primeiros grandes "autores" parecem ter seguido, de certa forma, o caminho das artes plásticas. O valor dos primeiros filmes se restringia, mais uma vez, ao sucesso da concretização de uma ilusão. Deixando de lado suas possibilidades como mecanismo automático de apreensão do real, o cinema herdaria, com isso, as contradições da pintura e continuaria insistindo na idéia da intervenção humana como operadora da ilusão e como criadora de significado e de discurso a partir da imagem. Neste sentido, a montagem foi a grande vedete das teorias dos primórdios do cinema. Tanto Eisenstein quanto Griffith, entre outros, teriam entendido a montagem como o grande elemento criador do cinema, recurso através do qual o realizador produz o sentido que deseja dar à imagem, discursa livremente e cria sua visão de mundo. As teorias da montagem dialética e da montagem de atrações de Eisenstein vão neste sentido, assim como a clássica experiência de Kulechov. Essas teorias preconizavam que determinada imagem poderia assumir qualquer acepção de acordo com a montagem que se faz dela.

Bazin fará a crítica dessa compreensão da montagem. Ele detecta no cinema de 1920 a 1940 a existência de diretores que acreditam na imagem e diretores que acreditam na realidade. Os diretores que acreditam na imagem são aqueles que, para Bazin, acrescentam, através de recursos plásticos — o cenário, a maquiagem, a interpretação, a luz, o enquadramento — e de montagem, elementos exteriores ao fato representado. Em outras palavras, acrescentariam "imagem" à realidade, ou transformariam a realidade em "imagem". Para estes diretores a montagem se definiria, segundo as próprias palavras de Bazin, como "a criação de um sentido que as imagens não contêm objetivamente e que procede unicamente de suas relações" (p. 68). Neste grupo encontraríamos os realizadores que tomavam a montagem como o específico cinematográfico e que criaram um arsenal de recursos de expressão baseados nas técnicas de montagem.

Ao contrário, diretores como Stroheim, Murnau e Flaherty, que "acreditariam na realidade", já estariam fazendo através de seus filmes, para Bazin, uma crítica à noção de que o "expressionismo" da montagem e da imagem é o essencial da arte cinematográfica. Desde o cinema mudo, estes cineastas estariam lutando por um cinema que privilegiasse a realidade em sua transparência e duração próprias:

"A composição de sua imagem não é de modo algum pictural, ela não acrescenta nada à realidade, não a deforma, muito pelo contrário, ela se esforça para revelar suas estruturas profundas, para fazer aparecer relações preexistentes que se tornam constitutivas do drama." Bazin, p. 69.

É esse o cinema moderno que Bazin vê nascer nos anos 40, com a morte da "montagem-rei". O "cinema da realidade" representava a decadência de uma certa estética cinematográfica e a reaproximação do cinema com sua "vocação realista", ou seja, com aquilo que vimos ser a mais importante potencialidade do cinema para Bazin: a apreensão direta do real e a superação das contradições herdadas da história das artes plásticas. Da montagem conservava-se a descrição descontínua e a análise dramática do evento, abandonando-se os recursos da metáfora e do símbolo em nome da representação objetiva.

A principal diferença entre o cinema da montagem e o cinema moderno da representação objetiva, para Bazin, parece ser a "reintrodução da ambigüidade na estrutura da imagem". A montagem se oporia essencialmente e por natureza à expressão da ambigüidade, pois ao analisar a realidade supõe a unidade de sentido do acontecimento. Seguindo Bazin, poderíamos ver o experimento de montagem realizado por Kulechov com o ator Mosjukine de uma outra forma. O rosto de Mosjukine é por natureza ambíguo e por isso um mesmo plano seu pode assumir vários sentidos quando relacionado a imagens diferentes. É a montagem que limita a ambigüidade do rosto e lhe dá, a cada vez, um único sentido e um sentido diferente. Quando o cineasta não monta, ele estaria abrindo mão da sua visão de mundo para deixar passar a realidade na imagem e permitir a completa expressão de toda a sua ambigüidade. Frente a um rosto, o cineasta neo-realista preocuparia-se mais em "conservar seu mistério" (p.78).

Mas quando o cineasta opta por não montar, ele também precisa inventar uma montagem. A profundidade de campo será, por excelência, o procedimento narrativo do cinema moderno. Ela não só respeita fotograficamente a unidade do espaço e a ambigüidade do real, mas também está na base da nova relação filme-espectador:

"1. a profundidade de campo coloca o espectador numa relação com a imagem mais próxima à que ele mantém com a realidade. Logo, é justo dizer que, independente do próprio conteúdo da imagem, sua estrutura é mais realista;

2. ela implica, por conseguinte, uma atitude mental mais ativa e até mesmo uma contribuição positiva do espectador à mise-en-scène. Enquanto que, na montagem analítica, ele só precisa seguir o guia, dirigir sua atenção para a do diretor, que escolhe para ele o que deve ser visto, lhe é solicitado um mínimo de escolha pessoal. De sua atenção e de sua vontade depende em parte o fato de a imagem ter um sentido." Bazin, p.77.

Bazin vai analisar o uso da profundidade de campo e do plano seqüência — como elementos de uma linguagem cinematográfica evoluída e mais próxima de suas especificidades — em vários realizadores, como Orson Welles, por exemplo, mas são os cineastas italianos do neo-realismo que lhe despertarão maior interesse neste sentido. O neo-realismo representaria uma quebra com as formas anteriores de realismo, pois, abandonando os efeitos discursivos da montagem e do expressionismo, devolve ao filme o sentido da ambigüidade do real. E o uso corrente do plano seqüência e da profundidade pelos diretores do neo-realismo teria íntima relação com essa nova condição.

São todos esses fatores — abandono do intervencionismo e do discurso através da montagem, uso do plano seqüência e da profundidade, conservação da unidade tempo-espacial do evento — que levam Bazin a ver no neo-realismo a possibilidade de se alcançar uma representação justa da vida, representá-la tal como ela realmente é. A vida não segue as regras dramáticas do espetáculo, não tem atores, nem cenários e muito menos mise-en-scène. O desaparecimento de todos esses elementos Bazin também vai detectar como característica fundamental do neo-realismo:

"Como o desaparecimento do ator é o resultado de uma ultrapassagem do estilo da interpretação, o desaparecimento da mise-en-scène é igualmente o fruto de um progresso dialético no estilo do relato. Se o evento basta a si mesmo sem que o diretor tenha necessidade de esclarecê-lo com ângulos ou arbitrariedades da câmara, é porque ele conseguiu chegar àquela luminosidade perfeita que permite à arte desmascarar uma natureza que afinal se parece com ela." Bazin, p.274.

Uma "coincidência" entre arte e realidade é o que Bazin parece notar no neo-realismo. Ele chega mesmo a dizer que Ladrões de Bicicleta é um dos primeiros exemplos de cinema puro, que prescinde de atores, de história, de mise-en-scène, para constituir enfim, "na ilusão estética perfeita da realidade", um filme onde não há nada de cinema (p.277). "Não há nada de cinema" quer dizer, antes, que não há nada daquilo que se entendia como cinema até então: o espetáculo, o star system, a intriga bem encadeada. O neo-realismo é um cinema inteiramente novo para Bazin, e é o cinema como ele sempre deveria ter sido, um cinema que explora suas potencialidades ao máximo e cria, desta forma, o que nenhuma outra arte podia criar até então. Sobre Umberto D, ele vai dirá:

"Se pretendo contar o filme a alguém que não o viu, o que faz, por exemplo, Umberto D no quarto ou Maria, a empregada, na cozinha, o que me resta para dizer? Uma poeira impalpável de gestos sem significação, em que meu interlocutor não poderá ter a menor idéia da emoção que cativa o espectador." Bazin, p.293.

Apesar de falar em uma aproximação do cinema com a literatura, Bazin vê o cinema, com o neo-realismo, encontrar a sua especificidade e ultrapassar a literatura, ir aonde ela não pode, e tampouco nenhuma outra arte: a fruição, pelo espectador, da passagem do tempo, da duração, tal como ele a tem na vida real. Talvez Umberto D seja, para Bazin, o filme mais realista (ou mais neo-realista) da história do cinema, neste sentido. A estrutura temporal do filme é a mais próxima possível, na compreensão de Bazin, da passagem real do tempo. Isso porque De Sica e Zavattini teriam desenvolvido uma maneira especial de filmar e de escolher o que mostrar ou não no filme. Normalmente os fatos são organizados conforme o sentido dramático que se deseja dar a eles. De Sica e Zavattini, ao contrário, dividiriam os eventos em eventos menores e assim sucessivamente até o limite de sua percepção como duração, passagem. Bazin dá como exemplo a cena do "acordar da empregada" em Umberto D: num filme clássico dois ou três planos seriam o bastante para "significar" que a empregada acordou, de acordo com as necessidades dramáticas do filme. Mas em Umberto D aquilo que seria uma unidade dramática — o acordar — está dividido em eventos menores — a travessia do corredor, a inundação das formigas — que são mostrados em "tempo real" contínuo.

Desta forma, o que Bazin encontra em comum entre vários realizadores do neo-realismo, como De Sica, Rossellini e Fellini, não é o significado de seus filmes, mas sim "a primazia dada, tanto em uns quanto nos outros, à representação da realidade sobre as estruturas dramáticas" (p.302). É o "respeito" pela realidade que os une. Para Bazin:

"A arte do diretor reside em sua destreza para fazer surgir o sentido desse evento, pelo menos aquele que ele lhe atribui, sem com isso acabar com as ambigüidades. O neo-realismo assim definido não é de modo algum a propriedade dessa ideologia, ou mesmo daquele ideal, tampouco exclui um outro, tal como a realidade, justamente, não exclui o que quer que seja." Bazin p.302.

Neste ponto podemos voltar ao que André Labarthe dizia sobre a "intuição central de Bazin". Essa intuição, segundo Labarthe, é a de que o cinema moderno, do qual o neo-realismo faz parte, teria imposto uma relação nova entre filme e espectador, isso porque o filme — e o cineasta — teria passado a demandar uma participação maior do espectador no estabelecimento dos "significados" da imagem cinematográfica. É a ambos uma matéria muito mais "ambígua". Como quer Labarthe, Bazin foi o primeiro a identificar esse resgate do espectador à passividade que ele mantinha com o cinema clássico, onde um autor, manipulando uma técnica poderosa, cria, de acordo com sua visão, um discurso que o espectador não poderá "ler" de outra forma que não aquela pré-determinada, e que habitará, no final das contas, a sua memória como uma verdade que ele não pode reconstruir de outra maneira.

Bazin parece ter razão ao identificar no cinema moderno uma crítica à univocidade verossimilhante do cinema do pré-guerra. Ele já via em Orson Welles um cineasta profundamente preocupado — como muito se comentará mais tarde — com a polissemia, a dúvida, a recusa ao julgamento e a relativização do verídico. Sobre Cidadão Kane, Bazin nos fala da "incerteza em que permanecemos da chave espiritual ou da interpretação" que está inscrita nos próprios contornos da imagem do filme. Mas, se levarmos em conta os caminhos que este "cinema moderno" tomou a partir daí, não parece ter sido em nome de uma arte que representasse mais adequadamente a realidade e que abandonasse o cinema como meio de enunciação discursiva que se abriram as portas da representação cinematográfica para a ambigüidade e para uma maior participação do espectador.

Bazin quer vê no cinema moderno um cinema mais realista porque menos "ideológico", onde o realizador se absteria de intervir porque a própria "natureza" que ele capta com sua câmara já é uma obra de arte pronta que prescinde de retoques. Não se trata tanto de subestimar o poder criativo do diretor, mas antes de acreditar que não decupar, cortar ou montar não seja também uma opção ideológica e plenamente discursiva. Não montar também é montar. A profundidade de campo ou o plano-seqüência tanto podem ser usados, se é isso o que mais importa, para a expressão completa ou para a limitação do fluxo da ambigüidade. Não há nada de essencialmente mais realista neste procedimentos.

A ambigüidade, ou a multiplicidade de sentidos, é, nos filmes, mais um produto de uma formulação discursiva do cineasta do que um dado natural da imagem. Na obra de Orson Welles mesmo, podemos ver que a indiscernibilidade e a abertura dos seus filmes são resultado da vontade e da visão do cineasta, e não naturais a seus temas. Da mesma forma, o cinema de Godard, que Bazin não pôde conhecer, é marcadamente polissêmico, demandando grande participação ao espectador, e, ao mesmo tempo, profundamente montado, "discursivo" e ideológico. A ambigüidade não vem do tema ou da imagem, em si, contínua e sem cortes, mas da opção do realizador de produzir um discurso que não determina para si uma unicidade de sentido e deixa para o espectador, em certa medida, a tarefa de fazê-lo.

Neste sentido, quando se fala em ambigüidade deve-se mesmo compreendê-la em função da possibilidade de participação do espectador. O que se chama aqui de "participação" se relaciona ao grau de exigência maior ou menor, em um filme, de que o espectador "complete" as informações fornecidas, o que acarreta uma certa variação, de um indivíduo para o outro, do sentido final que um filme pode ter. Tanto Labarthe quanto Bazin, segundo Labarthe, colocam o aumento dessa participação como uma das características do cinema moderno. E não parece inexato afirmar que o percurso daquele cinema que chamamos aqui "moderno" tenha sido, em grande parte, produto da problematização da participação do espectador na "leitura" do discurso fílmico.

Tomando um exemplo radical desta postura do cinema moderno, poderíamos fazer com o cinema de Andy Warhol algumas articulações problemáticas com o que Bazin entendia como "cinema progressista" em sua época — principalmente no que diz respeito à idéia neo-realista da desdramatização e do filme como "integral" da realidade e à nova participação do espectador.

Andy Warhol — com seus filmes de oito horas sobre o Empire State ou simplesmente mostrando um homem dormindo — poderia ser compreendido como um neo-realista radical, que tirou do filme todo o conteúdo dramático e toda a ação para, reduzida a montagem ao mínimo necessário, mostrar a realidade de um evento em toda a sua extensão, em toda a sua duração, obtendo uma estrutura temporal o mais próxima possível da passagem real do tempo. Teria levado, com isso, o cinema à inexistência, ao desaparecimento total de seus elementos (atores, enredo, mise-en-scène), chegando muito perto do que Bazin teria previsto como o filme mais realista possível — nada de atores, nada de história, "nada de cinema". Mas Warhol não era um neo-realista e relacionar as suas idéias às de Bazin serve mais, aqui, para ilustrar, a teoria cinematográfica de Bazin.

Se por um lado os filmes de Warhol representariam a concretização de um "sonho" de realismo para Bazin, por outro eles evidenciam uma série de problemas que esse sonho precisava enfrentar. Primeiro, no que diz respeito à ambigüidade que afloraria do real a partir da minimização da intervenção do realizador e da montagem, poderíamos dizer que quando levada ao extremo, que entendemos ser os filmes de Warhol, ela simplesmente desaparece em um amontoado de imagens "sem sentido", sem significação. A imagem da realidade "pura" não tem ambigüidade nenhuma, ela simplesmente não quer dizer nada, não significa nada. Oito horas de imagens do edifício Empire são apenas isso, e não podem significar nada mais do que isso para nenhum espectador. A ambigüidade, quando existe em um filme, é produzida pela intervenção direta e maciça do diretor numa realidade que não a emana pura e simplesmente. A polissemia só existe como discurso e era isso que os diretores neo-realistas faziam para obtê-la.

Mas Andy Warhol, que não era mesmo neo-realista, não pretendia com seus filmes "dar lugar à realidade" ou "encontrar um expressão perfeita para o real em arte". Antes ele tinha a intenção de modificar a relação filme-espectador (aqui novamente Bazin parece ter razão em sua "intuição central" a respeito do cinema moderno). Seus filmes se parecem mais com quadros pop do que com filmes mesmo. O que mais interessava era que eles fossem apreendidos como quadros e não como filmes, daí terem durações muito longas. O espectador não podia vê-los da mesma maneira que estava acostumado a ver filmes hollywoodianos, por exemplo, daí o desconforto que causam. De qualquer forma era a relação filme-espectador que se procurava subverter, e não o sentido intrínseco do filme, que não tinha importância.

É óbvio que este é um exemplo radical, o qual Bazin poderia não levar em conta. É claro também que quando Bazin fala contra a montagem e contra a intervenção excessiva do cineasta, ele está se dirigindo diretamente a um cinema que o desagradava — o cinema anterior à segunda guerra — e com o qual ele queria polemizar. É complicado submeter sua teoria a algo que veio depois dela. Mas, no entanto, essa análise é válida porque mostra que a idéia do específico cinematográfico, qualquer que ele seja, montagem ou realidade, não pôde ser corroborada pelo que ocorreu a seguir com a arte cinematográfica. Além disso, confirma-se que o cinema não é um meio privilegiado de representação da realidade e não é realista por natureza.

Mas o que mais importa, a despeito de todas as críticas que se pode fazer à obra de Bazin, é, segundo Labarthe, o caminho do pensamento, a clareza da demonstração, o rigor da análise. Bazin deixou uma obra importante sobre o cinema moderno, bastante reveladora sobre os seus princípios. Se procuramos pensar o cinema que se seguiu, é preciso fazê-lo levando em conta seus primeiros passos, tão amplamente problematizados por Bazin.

Referências Bibliográficas
BAZIN, André. O Cinema — Ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1991.
____________. Orson Welles. Paris: Ramsey, 1971.

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