Carne Trêmula (Carne Tremula),
de Pedro Almodóvar
(Espanha/França, 1997)

Em sua última visita por nossas terras, Pedro Almodóvar brindou os expectadores do programa Roda Viva, ao explanar, com guerrilheira desenvoltura, os problemas referentes à distribuição de filmes no âmbito ocidental. Naquela noite, imperou uma discussão fértil sobre os caminhos do cinema de arte, ou melhor, do cinema que não se submete às amarras do formatão americano. Uma discussão que se viabilizou graças a consciência de Almodóvar: "sincero fui em todas as imagens que já fiz", repetiu, opondo ao seu modo de fazer cinema, o tal formatão em questão. Embora o texto ipsis literis me falte, posso dizer que tal surpresa provinha menos do seu tom contido, porém impetuoso, do que por suas afirmações e informações precisas, matemáticas. Servindo-se delas, Pedro Almodóvar questionou, grosso modo, as políticas que interferem nas produções independentes, prejudicando até mesmo um cineasta do seu calibre. Confessou que embora seja autor de alguns filmes que constam de qualquer antologia recente, encontra empecilhos para filmar e distribuir.

Me perdoem os que não admitem imprecisões calcadas num suposto simbolismo, mas Carne Trêmula é reflexo do olhar ambíguo de Almodóvar que além da sinceridade por ele ressaltada, abriga um amor/ódio pela máquina americana. Um ódio justificado pelo aparato econômico-cultural que reitera as invariações estilísticas do formatão e a hipocrisia do star-system. Por conseguinte – e na contramão – o amor por cineastas como Hitchcock e Billy Wilder, astutos inventores dos clichês que Almodóvar adora desconstruir.

Ora, não é absurdo concluir que Carne Trêmula é o notável reflexo de um cineasta preocupado com a política do filme, mas que segue uma orientação distinta das propostas de Godard, por exemplo. Digamos que o clichê abraçado por Almodóvar suplanta a própria vocação do clichê, ou seja, ultrapassa aquela carga de simpatia que lhe é inerente, por uma nova interpretação. Por exemplo: o jogador de basquete/herói. Ele é o personagem que é popular, faz comercial de tênis (impagável) e fuma maconha (90% da NBA é, digamos, canabista). Almodóvar contorce o clichê para torná-lo estranho, ao invés de torná-lo somente empático. E é por essa empatia / estranheza, que seus filmes ultrapassam a mera repetição em prol do comentário crítico. Sua habilidade em revolver clichês é um trunfo.

Basta submeter à esta razão toda primeira parte do filme. Um bebê nasce num ônibus, sob a benção de Frank Capra; um homem apaixonado e "disposto-a-tudo-para-conquistar-seu-amor"; uma dupla de policiais (Chips?); uma cinderela dark que encontra seu príncipe encantado... paraplégico. A resolução do caso, quando o policial da NBA descobre seu verdadeiro algoz, nos remete a qualquer enlatado de TV, assim como o final feliz na escolinha é, mais uma vez, Capra evocado.

Toda esta gama de personagens e situações são críticas debochadas, porém impregnadas de simpatia. Eis parte da força de Carne Trêmula: este ímpeto crítico, cada vez mais esquecido ou substituido pelo gostismo uniforme, perpetrado pelas máquinas dos "filmes de entretenimento".

Bernardo Oliveira

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