Tudo é Central! Mas como, se são dois Brasis?

por Bernardo Oliveira

Um dia após o Globo de Ouro sair para Central do Brasil, Rogério Sganzerla conversou com os espectadores de seu último longa, Tudo é Brasil, no CCBB. Estranho paralelo, ainda que fecundo: abrir os jornais pela manhã e constatar um cinema forte que, mais uma vez, corre mundo açambarcando prêmios; à tarde, ouvir de um dos nossos mais prolíficos autores, a pergunta fatal, "por que não me deixam filmar?" Ao final da conversa, ficou a nítida impressão de que já tinha visto este filme. De um lado, a festa, do outro, a precariedade.

O cinema brasileiro sempre viveu este paradoxo, cujas parcas interpretações remontam às nossas primeiras tentativas ‘industriais" com Paschoal Segretto, passando pelo "fracasso" Vera Cruz e outros monstros paradoxais. Podemos até perguntar por que Mojica, apesar de todo aparato midiático que o cercou nos últimos anos, ainda encontra dificuldades para filmar e exibir. Esta constatação não quer de modo algum entoar um coro contra "Central do Brasil", mas apontar, mais uma vez, que política e cinema andam de mãos dadas, por vezes, atadas.

É fato que vivemos esta "nova realidade", gestora de uma consciência plena, crente do binômio competência/competitividade. A política das "parcerias" e da "captação de recursos" funciona no mundo inteiro, e não se cansam de repetir que, com a mão do estado, o cinema brasileiro redundaria na política dos privilégios da velha Embra. E aí que entra o problema: captar recursos na fonte? Ok, mas, quem capta? Por que Rogério Sganzerla, dentre outros, não captam tais recursos? Por que o trinômio Barretão/Waltinho/Conspiração leva a boa, tanto na concessão de verbas como nas reuniões no planalto. O próprio Walter Salles fez esta pergunta, numa mezzo recente entrevista para a TVE. Dizia ele que, embora Central fosse um filme do seu agrado, reconhecia a problemática da terra de um cinema só. E os outros cinemas, habitantes das entranhas do cinema brasileiro? Será que vão virar bolor? Ou vamos esperar alguns anos, até um sueco descobrir o Edgard Navarro e um japonês se deslumbrar com Rogério Sganzerla?

Waltinho sabe que sem cinematografia forte não há verba que sustente muito tempo o cinema no Brasil. E, embora não tenha declarado, sabe que a política do filme precisa mudar, para atingir as universidades e os amadores, para reconstituir o cinema como prática, nas ruas e nos cineclubes, no MAM e no dia-a-dia. Lima Barreto morreu pobre; idem Mario Peixoto. Ambos construtores de nossa rica cinematografia. E a continuidade desta construção passa pelo problema do cinema experimental. Somente a ignorância e a preguiça justificam o horror diante desta palavra, pois mesmo a Conspiração Filmes teve seus momentos de experimentação, que não diminuiram em nada sua audiência. Muito pelo contrário, haja visto o padrão-conspiração, trazendo vida inteligente para TV (vide "O auto da compadecida"). Em suma: ou o dinheiro é repassado para todo mundo que precisa, e isso inclui verba para formação de técnicos e cineastas, ou veremos sucumbir o que Paulo Emílio chamaria a 9ª fase do cinema brasileiro. E, pior, sucumbiríamos por motivos semelhantes, nas mãos dos Borbas Vitas deste Brasil de Deus.

Apesar de tudo, o Brasil...

Mas, ó ingênuo, acreditando que se pode ganhar no campo do adversário. Ou do adverso. E podemos: Sganzerla erigiu mais uma pérola para sua coleção de obras-primas. Mais que um documentário, um documento intenso, vivo, obra aberta, disposta a interpretações surpreendentes e que também joga com certa simplicidade, palavra-chave constante da "estética da captação de recursos". Tudo é Brasil incorpora um caleidoscópio de imagens, retiradas das latas oriundas da pesquisa elaborada por Sganzerla. Por vezes ele passeia sua câmera-montagem pelas manchetes da época. Obviamente não é um filme linear, analítico; constitui-se como um ideograma, ou melhor, coleção de ideogramas, que ilustram a passagem de Orson Welles pelo Brasil. Rogério realiza menos uma reconstituição que uma interpretação criadora, tanto para revelar aspectos, até então dissimulados, da relação Brasil/EUA, como para sugerir as conseqüências culturais desta passagem. Mas, sobre Tudo é Brasil, falaremos, brevemente em outro texto.

Já cantava o bom e velho Zeca Pagodinho, nos meados da década de 80, que "nesse jogo só ganha o banqueiro", e o mundo prefere acreditar no eufemismo banal do "filme para todos", aquele que diz que só há um modo de se produzir, construir e exibir cinema, e este modo é um só: contar uma estória de A para B, de B para C. Ora ,"Central do Brasil", certamente, representa esse mundo da "simplicidade", e Walter Salles sabe disso. Sabe também que seu filme foi indicado ao Oscar porque segue padrões muito bem delimitados e fez ótima carreira no Brasil. E daí? Nossa realidade cultural permite essas extravagâncias "antropofágicas". Mas essa mesma realidade não suporta macaquices e, que não se proliferem mil "centrais" pelo Brasil, sob pena de vermos, mais uma vez, a massa desandar.

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