Cinema: Entre o Mito e a Realidade

por Eduardo Guerreiro


1) Descrições da realidade e suas formas de leitura

Sempre quando se assiste a um filme longo, permanecendo muito tempo envolvido com o desenrolar da narrativa fílmica, o espectador vivencia uma transformação do olhar, uma transfiguração dos modelos de reconhecimento. Em qualquer situação que extravase sua experiência de realidade, ele é transportado à realização visual de um mundo não mais existente (histórico), inexistente (ficção científica) ou desconhecido (retratando outro país ou outra cultura) etc. Logo depois de sair de um filme, as pessoas têm uma sensação de despertar, similar a de estar acordando de um sonho marcante. Tarda a readaptação ao cotidiano, pelo menos por alguns minutos.

Isso possui explicação: uma das principais propriedades do cinema é criar uma ilusão de realidade1, um modelo de cotidianidade sob o aspecto de produto ficcional. Todo o espectro da realidade é reconfigurado para que surja uma experiência estética (mais próxima da vida cotidiana do que todas as outras artes), encarnada pelos personagens, ou pela própria ambiência. Quanto mais o espectador se identifica com o personagem, ou a modelização ficcional em si, mais ele entrega sua percepção da realidade e recebe um imaginário diferente, um imaginário outro, que pode o enriquecer ou conflitar com seus valores e concepções íntimas - pode ameaçar o seu modelo de realidade. Os filmes mais apropriados para efetuar um conflito produtivo são aqueles que se preocupam em desmontar modelos já infusos nas formas narrativas de expressão, descodificando o modo de olhar e de entender do espectador. Essa desconformidade de relacionamento do receptor com o código cultural está bem esclarecida nos dois regimes de imagem conceituados por Deleuze:

Chamaremos de "orgânica" uma descrição que supõe a independência de seu objeto... O que conta é que, cenários ou exteriores, o meio descrito seja posto como independente da descrição que a câmara dele faz, e valha por uma realidade supostamente preexistente. Chamamos, ao contrário, "cristalina" a descrição que vale por seu objeto, que o substitui, cria-o e apaga-o a um só tempo, como diz Robbe-Grillet, e sempre está dando lugar a outras descrições que contradizem, deslocam ou modificam as precedentes.2

A imagem orgânica contribui para uma conotação infusa no espectador sobre o que é o mundo real. Como nunca podemos chegar a pureza do real por ele estar sempre mediado pelo simbólico, como diz Lacan3, essa naturalização dos signos nos filmes de grande circulação (em geral, de Hollywood, ou, como se diz, "americanizados") contribuem ativamente para a estruturação que a cultura de massa produz nas representações das referências. Eles não passam, então, de uma das peças constitutivas para a ilusão de evidência dos signos4, feita pela mídia, que naturalizam formações históricas e as mascaram como dados imediatos e indubitáveis.

A imagem cristalina não se propõe a denunciar o ilusionismo indicando o conhecimento da verdadeira realidade, mas sim despertar nossa atitude perceptiva do encantamento do paraíso de consumo e trabalhar nosso olhar para observar o que não está sendo exposto – desenvolver ao máximo situações críticas para a codificação (o "entendimento" da frágil razão do espectador, que não suporta a dispersão da causalidade narrativa) contra a contenção ao mínimo em tipificações formais. Isso amplia a relação com o real, pois o questionamento de descrições apassivadoras só pode levar a uma desmontagem construtiva. Os "filmes de arte" ou "filmes de autor" exemplificam esse conceito (sem esquecer que essa oposição entre filme americano de entretenimento e filme europeu de difícil entendimento é uma generalização simplificadora).

A análise dessa produção de diferenças é essencial, pois, ao ler um texto cinematográfico complexo, a teoria vai compartilhar, participar da criação artística, oferecendo um prolongamento que a atualiza.

Mas não é o que faremos aqui. A análise da descrição orgânica é também frutífera, em outro sentido: ela procura apontar onde a pluralidade poderia ter aparecido, onde se poderia ter aberto um campo de mutações semióticas. Ela aponta a presença morta dos significados, desnuda a falta de elaboração transformadora no forçamento de uma mera plenitude técnica, imobilizante. Mais: ela localiza qual a cumplicidade entre o utilitarismo do consumo - que desocupa, esvazia espaços de invenção e troca cultural - e a padronização da comunicabilidade estética que embota a produção cultural, encena cultura em vez de fazer cultura. Por isso, a análise da cultura de massa, sendo hoje menos uma "crítica" que uma desconstrução, vai cristalizar o olhar do espectador para a descrição orgânica, fazer uma leitura fugaz, desafiar essa legibilidade fácil no seu próprio território, desterritorializar tanta recorrência no campo em que a visão distintiva cruza com velocidade e rasga, fratura as prescrições dessa delimitação e repreensão sígnica.

2) Modelização mitológica

A descrição orgânica reduz a troca de perspectivas singulares e impõe uma comunicação consensual, totalitária. Reduz o panorama narrativo a tal ponto, e com tal autoridade, que o resultado dessas ficções "clonadas" uma da outra, todas originadas de um modelo inviolável, fazem desse modelo um mito5. Exemplo: o modelo de filme de terror, de comédia, o modelo do heroizinho, do vilão, da mocinha, do inocente, do sábio, do bom, do mau etc.

Cada modelo é tão rigoroso, tão circunscrito, que chega a violentar o grau indiscernibilidade natural da realidade. A fidelidade de sua reprodução ultrapassa a caracterização do objeto original, motivo pelo qual esse simulacro pode ser chamado de hiper-real. Quando o modelo se torna tão imperial, a imagem é privilegiada em detrimento de seu significado, determinando o efeito extático do mito cinematográfico. A mitologia atual - ou seja, o conjunto de "esqueletos" narrativos que regem os desejos, as fantasias e as crenças dessa hiperrealidade, enfim, que estruturam seu valor - passa a coordenar a zona mais sugestionada do imaginário pós-moderno. Ao contrário da mitologia arcaica propriamente dita, a mitologia atual não é abertamente assumida, está subjacente ao materialismo e ao ateísmo que denegam a existência do imaginário com sua auto-referente superfície racional. No entanto, quanto mais a mentalidade tecnicista repudia o imaginário, mais ele se multiplica nos fantasmas regressivos dos indivíduos.

Desta forma, muitas narrativas históricas se transformam em mitos. Daí o romantismo melodramático atual, por exemplo, fascinado pelas restrições morais históricas que possibilitavam o aparecimento do "amor eterno", pelo sacrifício do contato sexual, ou pelo desafio de sobrepor obstáculos familiares vitorianos (como no sucesso do Titanic). Justamente quando a instituição matrimonial está em decadência, quando todos os relacionamentos têm vida curta, o mito do amor eterno e unidirecional se torna cada vez mais emergente. Agora que estamos liberados da repressão sexual e familiar, sem resolver problemas herdados, realizamos um culto histórico a ela no imaginário cinematográfico.

3) Sensacionismo sigital e hiperrealidade

Mas a atualização fílmica desses mitos traz um elemento essencial para sua validação. Jameson é quem o aponta:

...quaisquer que sejam os atuais ressurgimentos do conceito kantiano do sublime, há também um renascimento daquilo que o filósofo prussiano descreveu como constituindo seu oposto, a saber, a beleza enquanto tal. Minha opinião é que esse é um renascimento que - após o agudo descrédito da estética e do belo pelo movimento modernista - só pode ser lido como um sistema duvidoso e regressivo, e não apenas no âmbito da própria cultura... o meio visual em si mesmo constitui o veículo através do qual vários públicos são seduzidos e "interpelados": é o próprio visual que abstrai esses públicos de seus contextos sociais e imediatos, criando a sensação de uma materialidade e concretude cada vez maiores....6

Só ao preço de uma materialização e uma apreciação absoluta dos mitos que é possível torná-lo atuante na estrutura das fantasias contemporâneas. Uma beleza abstraída de humanismo e metafísica pode aumentar ainda mais seu poder da ação por estar desprendida de qualquer compromisso reflexivo. Beleza operacional, digital, que rompe as fronteiras do real para se transubstanciar no virtual; livre de qualquer impedimento verbal, pode reinar no plano sensível para fixar mitos no plano imaginário. Podemos reconhecer nessa manobra pragmática não só sensacionalista mas sensacionista, o atual controle do imaginário.

Beleza das tecnologias espaciais da ficção científica, da "fotografia" de uma natureza paradisíaca (todo cinéfilo amador não esquece de elogiar um filme com esse termo), das cortes absolutistas (Rainha Margot), dos ambientes burgueses (interior do Titanic), empresariais etc. Alucinações minuciosamente equalizadas, conforto tátil, perfeição funcional, neo-realismo hedonista.

4) Exemplificação dos mitos e sua latência cultual

Se a praxis do mito nos povos antigos e primitivos se dá no rito iniciático, a praxis do mito contemporâneo é mais difundida e possui outro plano de interiorização. Até os anos 60, a realidade oferecia sua "matéria prima" para a reprodução virtual. No entanto, com a completa penetração da mídia em todo o mundo, a virtualidade acabou superando a realidade, e hoje é o real que reproduz o virtual.

Um exemplo: filmes que foram feitos sobre a figura do presidente dos Estados Unidos. Para se reeleger, o filme mostra o presidente produzindo intencionamente uma guerra no oriente médio para suspender acusações contra sua pessoa, levá-las ao esquecimento e apoiá-lo no seu papel profissional. Tempos depois, a ficção se torna realidade na política e na mídia internacional (com o presidente Bill Clinton): eis uma operação de inversão do direcionamento reprodutivo entre o real e o simulacro.

Mais um motivo se diagnosticar uma hiper-realidade. É essa reprodução invertida a própria prática concreta do mito, solidificado no cinema. A mídia internacional é um mundo-modelo esvaziando o mistério do mundo, ou seja, sugando a própria energia do real. Mas o cinema de massa é mais: ele é a vida-modelo (vida morta, anatomizada) esvaziando o mistério da vida (que é a morte ritual, a morte "vital", a iniciação), sugando a própria energia do sagrado.

Podemos dar exemplos fáceis: a moda. "Leonardo de Caprio" fez com que vários jovens se vestissem ou se comportassem como ele, assim como a moda John Travolta nos anos 80, assim como a moda Sean Connery nos anos 60.

Objetar-se-ia que esse poder de imitação comportamental é mais característico nos ídolos do rock do que propriamente em personagens cinematográficos. Mas ainda não é isso que aponta toda a extensão de sua influência. Os ídolos do rock são apenas encarnações de uma existência sem interdição nem recalque, ídolos que transcendem o proibido e vivem num paraíso de rebeldia. Eles ocupam a posição do anti-comportamento. São lendas vivas.

De forma diferente e mais radical, o cinema efetua a solicitação violenta de legitimar seus estereótipos como ideais reinantes do comportamento possível no imaginário social. Tais protagonistas do cinema de massa ocupam a posição da virtude virtual, são os deuses do nosso materialismo, emblemas de uma mitologia do anti-humanismo que se traveste com todos os álibis do humanismo. Analisando os primeiros filmes de 007, o "James Bond Connery", Violette Morin afirma:

"Na fineza das armas, na harmonia dos gestos, na elegância do estilo, a virilidade bondiana se duplica de uma espécie de feminilidade ideal. Ela resulta antes de um equilíbrio espetacular da anatomia, ... de um controle estético sobre si... o herói é um robô porque não tem mais necessidade de ser psicanalizado; ele é o único homem bem sucedido... "sem medo nem censura"... No fundo, James Bond Connery dá (ou confirma) a vontade de sonhar com um herói inteligente e bom, sem cabeça nem coração. Teríamos as vantagens da performance sem seus inconvenientes. Teríamos um humanismo encarnado e eficaz a todo o momento, mas não disperso nos interesses contrariados da reflexão lenta e da tristeza... É a adaptação mecânica feita homem, diante do mundo e suas máquinas".7

Não diríamos aqui que existe um mito "James Bond", mas sim um modelo de herói dos filmes de ação petrificado no 007, e até hoje utilizado com sucesso. Isso configura um mito de massa: a repetição constante da mesma estrutura, com variações narrativas mínimas que não prejudicam sua funcionalidade em várias produções comerciais, preenchendo a mesma fantasia, criando o mesmo fascínio. Por isso a análise de Morin se aplica à maioria dos heróis dos filmes de ação atuais que insistem na descrição orgânica.

5) Conclusão probleprática

Todavia, não é exato entender os filmes de 007 como esteticamente inferiores, nem associar a qualidade estética à descrição cristalina. Boa parte dos filmes de 007, assim como alguns filmes de Spielberg, possuem uma dimensão artística importante sem elementos críticos, desconstrutivos, paródicos, cristalinos ou descentrados. Há, na cultura de massa, produções que têm muito a acrescentar, sem deixar de reproduzir um modelo mítico. O problema político-cultural não está em ser ou não ser para as massas, em ser ou não ser mito-modelar, mas sim em ser obrigado a atingir as massas (já totalmente condicionadas aos encadeamentos mitológicos atuais) restringindo-se à fórmulas fáceis para obter interesse, divulgação, patrocínio, enfim, infra-estrutura. Isso estreita, inibe e interdita a liberdade mínima de que o artista necessita para o ato de criação, ato de polifonia dialógica, a priori contra a corrente modeladora. Esse código globalizador totalitário, reinante, impede a troca simbólica das práticas artísticas para impor o consumo dos simulacros mitológicos.

1. LOTMAN, Yuri. Estética e semiótica do cinema. Lisboa, Estampa, 1978, p.45 e 135: "O cinema apresenta um modelo do mundo real".

2. DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. São Paulo, Brasiliense, 1990, p. 155.

3. Citamos essa conceituação lacaniana do real, já consagrada e operada por Barthes para a teoria da cultura de massa, de propósito, tanto para dar a ela seu lugar nessa reflexão quanto para avisar que nesse artigo damos preferência à definição de Jean Baudrillard contrapondo-a à simulação, como será exposta abaixo.

4. BARTHES, Roland. "O mito, hoje. Leitura e decifração do mito". In: Mitologias. S.P., Difel, 1975, p.151: "Atingimos assim o próprio princípio do mito: transforma a história em natureza".

5. BAUDRILLARD, Jean. Simulacro e simulação. Lisboa, Relógio d'água, 1991, p. 59: "Num período de história violenta e atual (...) é o mito que invade o cinema como conteúdo imaginário. É a idade de ouro das grandes ressurreições despóticas e lendárias. O mito, expulso do real pela violência da história, encontra refúgio no cinema."

6. JAMESON, Fredric. "Transformações da imagem na pós-modernidade". In: Espaço e imagem: teorias do pós-moderno e outros ensaios. R.J., Editora Ufrj, 1994, p.135 e137.

7. MORIN, Viollete. "James Bond Connery: um móbil". In: Cinema: estudos de semiótica. Petrópolis, Vozes, 1973, p.24-30.

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