De Cidade das Sombras a Matrix

por Fabian Rémy

homenagem a Blade Runner, de Ridley Scott

 

Visão quase profética de tão atual, Blade Runner nos surpreende hoje ainda, quase vinte anos depois da adaptação do livro de Philip K. Dick: Do Androids Dream of Electric Sheep? Terceiro filme após o bem sucedido Alien, e de maneira semelhante a ele, a obra de Ridley Scott marcou por sua incrível beleza e minúcia estética, valendo ao diretor a famosa marca do "layering": a composição caleidoscópica de suas imagens. Há quem suspeite da artificialidade do filme com receio, justificado em grande parte, da bugiganga hollywoodiana. Até mesmo o ator principal, a futura estrela americana Harrison Ford, deixou entender que se sentia oprimido pela mão onipotente do diretor e pela sua precisão estética. Mas Blade Runner é uma história de outro tempo e de outro espaço, e quem a ela presta ouvidos descobre um apelo semelhante ao da criatura do Dr. Moreau na câmara dos sofrimentos, no filme em que o herói comenta: "mas seu grito era tão humano!" (Island of Lost Souls — E.C. Kenton, 1932). Passados os 120 minutos obsessivamente sombrios do filme, guardamos a impressão de termos assistido a um espetáculo de signos tenazes e poéticos, como se Ridley Scott tivesse emprestado às imagens e aos sons de sua obra uma outra voz: uma melodia codificada na ordem das formas do sonho.

A recente saída nas telas de Matrix, de Larry e Andy Warchowski, dá-nos a oportunidade de rememorar esse thriller futurístico já que em apenas dois anos assistimos a um certo número de filmes, bons talvez, anglofônicos certamente, aparentemente inspirados por uma inquieta fonte comum: Dark City de Alex Proyas, Truman Show escrito pelo publicitário e autor de Gattacca: Andrew Niccol, Pleasantville de Gary Ross, eXistenZ de Cronenberg (Canadá) e Cube de Vicenzo Natali. Cada um deles carregados da queixa do difícil e problemático relacionamento com o mundo, o Brave New World dos tempos modernos, e conduzindo à constatação de Nietzsche do "estranho contraste entre uma vida interior, à qual nada de exterior corresponde, e uma existência exterior sem ligações com o que se encontra no interior".

Rememorar Blade Runner é apenas homenagear uma obra que há muito assumiu como poucas tal espírito melancólico e futurístico de crise existencial. Nela, a concepção estética funde-se plenamente com o sujeito, pelo encontro totalmente consumido do filme Noir com a ficção-científica – já experimentado em 64 pelo genial Godard em Alphaville, no universo em preto e branco composto por Raoul Coutard. Tendência menos convincente nos filmes Dark City (homônimo de um filme exemplar do período Noir), Gattacca e Matrix.

Bergman, em seu livro Lanterna Magica, parece bater na pedra angular do filme: «Agora que eu conheço a solução do problema, sei que precisaria de mais de quarenta anos antes que meus sentimentos pudessem sair da câmara cerrada onde estavam trancados. Eu vivia sobre lembranças de sentimentos, e sabia bastante bem como reproduzir os sentimentos, mas sua expressão espontânea nunca era espontânea, sempre havia um microssegundo de separação entre minha experiência intuitiva e minha expressão sentimental.

Hoje, que imagino estar mais ou menos curado, pergunto-me se existe ou se existirá um dia algum instrumento capaz de medir ou de definir uma neurose que deu, com tanta eficácia e derisão, a imagem de uma normalidade ilusória».

Os primeiros minutos de Blade Runner bastam para traçar o cardiograma da humanidade de Los Angeles 2019. Dois homens num falso diálogo em que se procura determinar a "não humanidade" do interlocutor, reúnem-se em torno de um instrumento, único juiz a sondar a pupila de sua vítima como se fosse um furo na parede. Não há lugar para sentimentos. O terror da ordem e do protocolo que se instalam nos levam ao primeiro crime que encerra a cena. Alívio passageiro ao sentimento penetrante que atravessa o filme: algo se espremendo contra as paredes de uma câmara cerrada.

Rick Deckard, o héroi baudelairiano, o policial solitário vagando nas mais profundas camadas sociais abandonadas pela ordem, entre a histeria dos neons e a exuberância barroca das faixadas, começa sua empreitada na rua sob um signo de tolerância – "dois mais dois igual a dois"; breve clarão de esperança no diálogo surrealista com o chinês da barraca.

Mas a obscuridade se alastra como a metrópole, sem limites, cuspindo chamas como o céu soltaria relâmpagos; é o teatro de um transtorno contido pela tecnologia na lógica do limiar.

A angústia do caos, indeterminação que Kracauer, o autor de De Calligari à Hitler, punha como pendente oposto à iminência da tirania na Alemanha de sua época. Procuramos então a nova forma de poder nessa desordem, e encontramo-na nas alturas de uma pirâmide inacabada, meio Babel, obcecada pela conquista colonialista do além. O autor alemão descrevia uma tal sociedade de insegurança onde cada indivíduo era suspeito de ser o "olho do poder".

Tal é, na perspectiva da crise, um dos motivos principais do filme. Scott, artista plástico e publicitário consagrado, privilegia e desenvolve o tema da percepção visual, instrumento da consciência. A história começa sob um olhar que se pousa sobre os homens ao mesmo tempo em que se anuncia a chegada dos misteriosos replicantes. Olho insuportável da culpa como a que rói o rei em Hamlet, ou olho benevolente… O poder na cidade parece medir-se na capacidade em ver: ver de fora do quadro que nos é imposto pelo mundo material (Dark City, Truman Show, Pleasantville, Cube e Matrix), observar os meandros da matéria (Gattaca); ou pela capacidade em controlar a visão, de agir fora de seu alcance. Como se diz em inglês, Deckard é um private eye.

Tratando-se de percepção e sensibilidade, todos os filmes em questão colocam as aparências na fileira dos suspeitos existenciais; em relação à visão, mas também ao corpo. Memória sentimental e memória do corpo, sentimentos e lembrança de sentimentos, separados pelo abismo no qual se instala o instrumento, insidiosamente. Como encarar nesse mundo, o projeto da célebre frase: "Conhece-te a ti próprio" inscrita no templo de Apolo em Delphes? Como armar-se de coragem para fazer as verdadeiras perguntas, como os replicantes na busca do ser demiúrgico cujo crime projeta a sombra sobre suas vidas breves? Pois, para conquistar o além era necessário criar escravos; e para que fossem utilizáveis deviam ter vida curta o bastante para que não aprendessem os sentimentos, e para que não começassem a perguntar. No espírito romântico de Faust, Frankenstein e Golem, Tyrell, o gênio, cientista biomecânico e tecnocrata com feições clericais, criou a vida perfeitamente útil.

O oráculo de Delfos justamente, prevenia o homem que tivesse a tentação de imitar a perfeição dos deuses, contra o estado grandioso que os gregos chamavam de hybris. Sob o seu charme, os mortais imaginavam que podiam controlar o próprio destino, e em particular, a maneira em que sua lembrança poderia viver na memória dos outros. "Implantes de memória!" exclama Deckard frente à Tyrell, na cena em que submete Rachel ao teste de Voigt-Kampff.

Tal é a intenção oculta da publicidade, mas logo a de outros mecanismos sociais… é a realidade tornando-se intencionada – absurdidade encarada no filme Cube – modificando o ser a ela confrontada. Nesse processo, assistimos o divórcio da linguagem com as coisas e os sentimentos, a passagem das aparências e do relacionamento sob o signo do espelho, da máscara, e da fria violência do medo.

"strange experience to live in fear, that’s what it is to be a slave"

Como Hamlet, descorajado e desiludido, Deckard procura libertar-se do sol negro sob o qual passa seus dias em sonolência. Movido pela obrigação profissional e pela ambição, ele sente portanto a cada passo o apelo insistente de certo abandono, sacrifício tanto mais apavorante em Los Angeles 2019, reino da indeterminação do caos, da visão e da razão, antro da crise das aparências e do corpo, deserto espiritual. Não mais se conhece a linguagem dos sentimentos; como diz Bergman, não mais se distingue os sentimentos da lembrança dos sentimentos. Deckard deve abandonar-se aos sentimentos.

Blade Runner é também uma bela história de amor. Como dizia o cérebro artificial de Alphaville, "uma vez que conhecemos um, pensamos conhecer dois porque um mais um igual a dois; esquecemo-nos que antes devemos saber o que significa mais. São os atos dos homens através dos séculos passados que pouco a pouco vão destruí-los, logicamente; eu Alpha 60, sou apenas o meio lógico desta destruição". Dois seres, e a união construtora do amor. Do desejo por um ser à assunção da totalidade de uma relação humana, corre-se por sendeiros de violência, de dúvidas e conflitos; a passagem pelas diferentes figuras da feminidade, de Zhora, dançarina tal Salomé, à Pris, boneca espacial dos prazeres. É esta a verdadeira investigação de Deckard, o fio condutor do filme e ao mesmo tempo atitude íntima da interrogação existencial: tanto do detetive quanto dos replicantes. Deckard procura a chave do mistério de seus sentimentos – que ao mesmo tempo parecem prontos a rebentar. Os sentimentos também estão à sua procura.

Proclaims no shame
When the compulsive ardour gives the charge,
Since frost itself as actively doth burn
And reason pandars will

(Hamlet III, scene IV, 85-88)

Na cena final do clímax, vemos o interrogatório do início transformado em perseguição: o caçador virou a presa. Roy dança em êxtase, uivando, irradiando a força que está prestes a brotar em Deckard; ele guarda todas as saídas do apartamento em que se encontram. Aterrorizado, o herói escala a faixada do prédio até o alto. Sua unica escapatória é de saltar no vazio para alcançar o prédio vizinho – "blade runner"; começa à correr para dar o pulo… é um fracasso. Pendurado pelas mãos, vê apenas o filho prodigioso de Tyrell imitar seu salto como se voasse. Parece um semi-deus; nesse estado exaltado encontra a vontade positiva de salvar Deckard que lhe estende a mão em seu desespero trágico. Ele alcançou seu limite na mediocridade, Roy o limite da morte: a figura do sacrifício, um estado de abandono. Como se diria no Brasil: "vixe! o santo baixou!"; o europeu apelaria para a histeria.

Um homem da lei sensível e às margens da marginalidade, anjos caídos ou demônios, figuras incertas e fascinantes… em relação oposta a muitos filmes, Blade Runner defende sua ambivalência. Ridley Scott lançou uma nova versão do filme em 1993 na qual tirou o comentário em off, e o pálido e mísero happy end da antiga versão. É com essa coragem que assume o universo negro da obra ; tragédia encenando a humanidade no palco sem horizontes do espetáculo fantástico, como nos filmes de Hitchcock, mergulhando nas sombras para desembocar na luz.

Blade Runner é mais que tomadas umbilicais, mais que litros de memória num pote de geléia, muito além de todo um mundo na TV ou no aquário do salão, banhado num azul de melancolia, que descobre com espanto o rosto hediondo da classe média americana para depois gritar como Baudelaire: "N’importe où! n’importe où! pourvu que se soit hors de ce monde."

1