Desconstruindo
Harry (Deconstructing Harry),
de Woody Allen (EUA, 1997)
Vágner RodriguesNão é de hoje que Woody Allen despeja na tela suas obsessões de forma engraçadíssima. Não é de hoje que através de um roteiro primoroso e um elenco afinado o diretor cria personagens fascinantes. Não é de hoje que somos psicanalistas de Woody Allen. E não é de hoje que amamos tudo isso. Surpreendentemente, ao lado de todas estas não-novidades, encontramos aspectos singulares na história de Harry Block, o escritor apaixonado por mulheres de todo tipo, dono de uma carreira de sucesso e de uma vida pessoal desastrosa, igualzinho a um carinha de óculos que já conhecemos.
Valendo-se da história deste personagem, que narra, para desespero de suas amantes, suas aventuras aorosas num livro, novamente notamos a presença de elementos já vistos, como o diretor interpretando a si mesmo, expondo seus desejos e neuroses, bem como o seu amor por Nova Iorque e por tudo que é nova-iorquino (mesmo sendo parecidos, seus filmes são completamente diferentes e nunca repetitivos). Neste, ao contrário dos outros filmes do diretor, observa-se um caráter de testamento, um tom melancólico característico de obra conclusiva. como se o objetivo fosse fechar com chave de ouro uma trajetória brilhante. A reunião do elenco numa homenagem ao final, a forma como o personagem fala de forma explícita sobre o seu criador e, principalmente, as referências à morte e a Morangos SIlvestres ajudam a evidenciar essa ambientação amarga. Felizmente, esta ainda não é a conclusão de uma carreira, até porque o diretor já realizou um outro filme.
Paradoxalmente, depois de observado esse aspecto de amargura, é impressionante o fato de ser este um dos mais engraçados filmes de Woody Allen (mesmo não sendo um dos mais geniais), com piadaas sutis e outras bem diretas sobre um infinito conjunto de instituições. Não sobra pedra sobre pedra da psicanálise, do judaísmo, do jornalismo e das relações familiares, particularmente o casamento. É notável também, e talvez seja esse o fator responsável pela sensação de montanha-russa cômica, a utilização da narrativa entrecortada, com diversas brincadeiras de montagem funcionando como instrumento da desconstrução/dissecação de um personagem tão interessante. Isso sem falar da encenação dos fatos do livro com outros atores e da já antológica cena da descida ao inferno.