Deus e o Diabo na Terra do Sol
por Rafael Viegas
Deus e o Diabo na Terra do Sol, o novo Glauber Rocha's film, rapazola de vinte e três anos, é um westerne regado à seca e apelidos para a fome do Terceiro World, ponto final. No, non, mimto, é antes um filme culinário, evidentemente, de refinamentos gastronômicos pouco usuais, que trata duma assíncrona e paralela luta de boxe, brésil yenne, entre um personagem porvir (o Mal, Curisco, Othon Bastos, hilariante), um personagem oniausente (o Governo, impagável), e dois antagônicos Bens (L'Église, precisa e lacônica, e Beato Sebastião, Lídio Silva, na voz d'Othon Bastos). Acima destes, centrífugos, os personagens principais, três apenas: o Morro de Monte Santo, o Cego Júlio (Marrom, profético). Yoná Magalhães, esposa do produtor, bem velhinha, morre logo no início, é enterrada com espalhafato sob apupos do público e depois substituída, para dar início propriamente à ação, pelo personagem ultra-homogêneo do Povo. (aquilo que se convencionou chamar de brasilinheiros por causa do nome dado ao país deles: Galinha). Decerto, é ele o verdadeiro monumento em toda a obra, o experimental, vazio, sempre ao impacto sonolento de toda a violência. Porque, mesmo ausente, desconhecido, cármico, bêbado, nele é onde mesmo se celebram tanto a participação quanto a oligarrrquia, tanto o jogo sutil quanto a brutalidade. Há também Antônio da Mortes, um Maurício do Valle enfurecido diante duma partida de foot-ball, mas ainda assim tétrico, doux, ele mesmo culinário do outros com todo cuidado, irmão mais novo e pai de Curisco. Antônio é mão da oligarquia enriquecida pela lei seca, falida de vez em quando mas imune às grandes considerações trágicas de outrora, destruída pela tentação interior daquilo que não consegue fazer de jeitcho ninhum: pensar. Então ele age. No preto-no-branco, sob música de Sérgio "Glauber Rocha" Ricardo. Age para controlar seu pânico, o de um sinônimo, o de um afogamento: ele afirma que mata o Povo mas é dele que recebe dinheiro, dele se alimenta se complet-menta se movimenta. Ele é o suspense nunca antes imaginado: absorvido, redimido e suplantado, não pelo poder da morte que o libertaria - ele é um sujeito, afinal, um marginal de nós todos -, mas na figura do Povo. O boxe, portanto, se desenrolara num campo inóspito, sem trégua, no meio de um ringue de plástico orgânico. Para isto criou-se um neologismo: Ser-tão. Ser-tão assim imbecil, Ser-tão acolá. Este filme, se rodado às vésperas da Revolução, seria um verdadeiro escândalo. Seria, mas quem o diria? Observem atentamente a voracidade - implícita na cena do facão erguido no ar prestes a descer sobre o cabeção do coronè Morais. Não cai sobre a França, a Alemanha, o Serviço Secreto, os yankees (militares ou civis). O cinema não pode ser revolucionário. Quando Lampião - aparece a sua sombra - é, virtualmente, apagado pelo discurso de Curisco, o que se nos parece? Um homem que os vale a todos e que vale não importa quem, uma mancha sub-reptícia: quem, quem morreu? Lampião? Curisco. Lídio "Sebastião" Silva? Antônio. Consciência duma diluição espaço-temporal? Sobre quem ? Curisco fecha o corpo e a música conclama o mundo: "Sê integra, Curisco!" O punhal de Curisco sucumbe. A voz de Curisco sucumbe Lampião e Antônio das Mortes. Sobre quem toda essa violência indescritível? " Tu, um garotinho, sais das lojas Connoly segurando tua mãe pelo braço ", disse Beckett. O povo europeu não existe pas. Não há uma única violência visível na Europa, um único grão de fome. SE existe o desemprego, ele é pela lei ou é epistemológico, como a frágil esperança do analfabetismo ou os filmes de Ingmar Bergman. É um povinho pequeno, en attendant os limites próprios a uma grande espera, que tem direitos, que sabe onde estão os seus impostos - e quando não sabe viaja até o Quartier Latin para tomar café. Mas os brasilinheiros, índios tomográficos, são os donos da massa redundante, têm uma oligarquia poderosa, um conjunto de pistoleiros e agitadores macabros que mantêm a ordem e a beatitude. Seus padres e imperadores não são homens ou algo parecido. São categorias etéreas, viajam no espaço por sobre as cinzas. Já não produzem dinheiro ou coisa que o valha: produzem interpretações, escolhas, eleições, quad rilhas de contrabando, repúblicas moles e inférteis. Quatro delas. Um Povo financiador, um Povo holístico. Mas Rocha não parece querer ir junto dar esse passo decisivo. Ele não é bárbaro, não é arbitrário. Ele não. Mas, senhores e senhoras, infelizmente, quero vos apresentar um cinema pós-autoral: dum lado a paronomásia, a metáfora, a sinérese, a antítese; do outro, a espada e a fome. Rocha não segue, não quer ir, não aceita, não compra de jeito nenhum, o apelo do vazio epistemológico. Ele quer - como se fosse possível - sentido. Hoje, e muito! " Ele quer provar a desunião indissociável do verme e do arado que o corta (Blake), da garrafa de rum com o sanduíche de goiaba dentro. (Maiakovsk)." - o coro se levanta indignado: não é possível, cadê ele? Este filme é, sem despropositada ironia, um perfeito fracasso. Entre opressor e oprimido não há senão um vício de linguagem: somente a semelhança que ele revela ser intraduzível num outro idioma - um Povo triunfante, canibal.
Pois então, Wim Wenders e aprendenders - como disse o Profeta.