Disque M Para Matar

por Bernardo Oliveira

François Truffaut considerava Disque M... um filme menor. Hitchcock confirmou, talvez por gentileza, talvez por convicção, não sabemos. O que importa é que vale a paga: "Dial M for murder" reestreou no Cine Estação Paissandu. Todos à sala!!

É impressionante a qualidade, a linearidade, o frescor e a intensidade dramática obtidas pelo gordo mestre, com pouquíssimos recursos. Todas as vicissitudes e cacoetes que servem de sustentáculo ao conceito "filme de entretenimento" estão ali dispostos para apreciação. A trama linear, a gratuidade dos acontecimentos, a beleza dos cenários e figurinos (também imbuídos de sentido), a tensão renovada a cada lance, humor ingênuo e mordaz (não é impossível) e a potência de um roteiro breve. Sobre esta última característica podemos garantir que Hitchcock nos embala, ou melhor, tranforma uma torrente de palavras em imagens que bailam na tela. Podem observar: a cada momento de intenso diálogo (a primeira conversa com Swann, a visita do inspetor de polícia, o bate-papo com o amante,...) Hitch nos leva no ritmo da trama, compondo as imagens a partir de um roteiro bem amarrado, um tanto simplório. E não deixa a peteca cair, talvez por percebê-lo simplório. As formas por ele obtidas para "dar sentido" ao roteiro, baseado num sucesso da Broadway, são, a um tempo, estritamente cinematográficas e unívocas, visto a ação intensa que, paradoxalmente, se dá numa sala praticamente.

Hitchcock releva certos aspectos a respeito do espaço onde decorre a ação, não somente em Dial M..., mas em outros de seus filmes "teatrais" (como The Rope e Trouble with Harry). Para ele, a transposição cinematográfica destas pequenas peças carecem de exatidão, ou seja, respeito pelos limites espaciais do teatro, pela unidade da ação. Embora algumas cenas se realizem num cenário ou no back projection, a maior parte do filme se passa no apartamento. E o que revela a tensão e a atenção máxima dispensada pelo público (meninos, eu vi a cara do público!) é o que ele extrai das palavras: movimento. Ou seja, embora Hitchcock estabeleça sua regra para os filmes "teatrais", afirmando a necessidade de conservar a unidade cênica em prol da unidade dramática, nada impede que uma ágil trama cinematográfica nos faça embarcar no jogo. De modo que entendemos Dial M... como um filme de movimento incessante, como se a câmera adivinhasse que nossos olhos são outras câmeras e que, atentamente, vagueiam pela tela. Mas ora, ora: nossos olhos vadios não são menos nômades ao aportarmos numa sala de teatro. A bibliografia sobre a atenção ou "a vasculhação do olhar", a quem interessar possa, está no ensaio de Hugo Munsterberg, na introdução do "A experiência do cinema", organizado por Ismail Xavier, onde lê-se: "O ator que chega ao proscênio vai imediatamente para primeiro plano na nossa consciência. Se todo mundo está parado e um levanta o braço, este leva a atenção." Mas não é este o convite que Alfred nos faz? Um passeio pelos quatro cantos da tela, ressaltando os "movimentos" do texto e o intenso jogo de palavras nele contidos?

Como dissemos no início, este é um filme em que até o vestuário realiza operações com nossa percepção. Todos os detalhes são importantes para a construção da trama. Os que aparentemente não são, revelar-se-ão mais tarde, como por exemplo os vestidos de Grace Kelly, O vermelhão choca nossos olhos, nos surpreende e até "compete" em esplendor com os olhos da bela moçoila. Hitch, dando a entender que também meteu a mão nos figurinos, revela que, na medida em que se encrenca com a lei, os vestidos de Grace vão ficando menos esplendorosos, até o cáqui que a "embala" na cena final.

Outro signo interessante é a afetação do inspetor de polícia. Ele é exageradamente orgulhoso de seus achados. Tudo que faz é de uma tremenda impaciência, como quem diz "santa ignorância..." À exceção de seu emprego, nada sabemos sobre sua vida. Veste-se impecavelmente, irritando-se quando Ray Milland amassa-lhe o casaco. Carrega um ar levemente assexuado, como o próprio Hitch se revelara algumas vezes. Quem será este homem, preocupado com o que os outros fazem, com sua roupa, sempre desconfiado e com o agravante de parecer não gostar de sexo? Psicanalismos a parte, não é uma crítica a lei e seus pressupostos arbitrários? O eco de um trauma? Hitchcock é o cineasta dos fugitivos da lei, aqueles cuja redenção é longínqua, e a sua danação é mais concreta que o castigo divino.

Hitchcock é o cineasta dos oprimidos pela lei. Mas este fio perpassa suas obras, sendo o grande barato a diversão e a beleza. Dial M for murder nos coloca um grande problema que parece datado, mas tão atual quanto problemas com a lei: o que representa a idéia "filme de entretenimento"? Ele dá a resposta em tom sutil, classe A, maravilhoso, sucinto, veloz, eficiente, linear,... E para justificar um pormenor, uma pergunta que duvida até do que eu mesmo escrevi acima: não seria o pentear dos bigodinhos do inspetor, o próprio Hitch a nos perguntar "E aí garotada? Gostaram?" Sem comentários.

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