Dogma: pela última vez, porra!!
Há muito tempo não se discutia tão exaustivamente uma questão: afinal, o Dogma 95 é um movimento estético importante, lance de marketing, picaretagem, novidade,
cópia,...??O que me pareceu equivocado em todas as discussões do assunto foi uma tentativa de se achar uma resposta final, quando na verdade todas as opções acima são válidas. Aproveitando a entrada em cartaz de Festa de Família e a exibição de Os Idiotas na Mostra Rio e de São Paulo temos uma chance de aprofundar as questões tomando os únicos dois filmes produzidos pelo movimento até agora como base.
Vamos resolver isso antes de tudo: sim, o Dogma é um golpe de marketing. E dos mais efetivos, afinal mesmo quem acha o movimento picareta "perdeu tempo" vendo os filmes e discutindo só por causa do marketing. Lars Von Trier é um dos mais brilhantes marketeiros do cinema atual, e acertou na mosca criando esta polêmica toda.
Não, a maioria das coisas propostas pelo Dogma não é novidade. Mas também o que é? Ficar criticando o movimento só pelo fato de que ele traz coisas já vistas no neo-realismo, na nouvelle vague, no cinema novo, no cinema direto, é bobagem. Até porque o Dogma nunca afirmou ser a novidade salvadora.
Dito isso, ele é sim um movimento estético importante e útil. Primeiro porque hoje a ditadura da estética global hollywoodiana atinge uma hegemonia sem igual. Que a partir destes dois filmes dinamarqueses se possa começar a discutir estética e possibilidades de produção é mais do que genial ou não, vital neste momento. Pelas discussões que causa, o movimento é saudável.
Depois que a grande "novidade" que ele traz diz respeito aos gastos na filmagem de um longa. A utilização do vídeo como formato primeiro de captação é um elemento barateador indiscutível, assim como as locações, som direto e falta de luz artificial (mas estes já eram usados desde a década de 60).
A parte do manifesto que é picareta, mas nem os signatários a levam tão a sério assim, são as restrições e proibições. Há música não ambiente em Os Idiotas e cenas encenadíssimas (como as entrevistas). Em Festa de Família, o próprio diretor assume que manipulou a luz e a cenografia em algumas sequências. Como se não bastasse, eles fingem não saber que personalidade e dramaturgia em cinema têm muito a ver com montagem, e não há regra sobre como manipular ou não o espectador pela montagem.
Mas Von Trier é tudo menos bobo, e ele sabia disso tudo. Sobre as proibições (que a mídia e opositores levaram muito mais a sério do que eles), ele disse: "O problema é que, não importa a escolha que você faça, é sempre dramaturgia. Dogma 95 contém algumas poucas regras paradoxais, mas o mesmo vale para dogmas religiosos". A renegação do diretor, então, é uma tolice completa, pois só se fala no filme de Vintenberg ou de Lars Von Trier. Vintenberg disse: "Por mais que a gente não queira os filmes terminam sendo muito pessoais".
Em suma: o Dogma é marketing, é picaretagem, não é novo. Mas é, acima de tudo, vital para o cinema hoje como possibilidade estética e, antes de tudo, de produção, que serve muito para nós.
Os Filmes
Mas, e o que importa, os filmes??? Tanto Festa de Família quanto Os Idiotas são ótimos, e isso é o principal elogio ao Dogma. Também é legal que se diga que são filmes completamente diferentes, apesar do mesmo caminho, o que prova que o Dogma não necessariamente impede a criação com suas regras. Festa de Família é um filme mais exato, fechado, talvez até melhor. Mas Os Idiotas é mais impactante, inovador, perturbador.
Festa de Família possui uma complexa construção dramatúrgica, um roteiro estruturado e, que com certeza, tem pouco de acidental na sua realização. O seu ritmo é estudado, criando tensões e relaxamentos constantes, medindo cada segundo do seu impacto.
Tecnicamente o vídeo lhe dá um visual despojado, e uma facilidade de movimentos e mise-en-scène, mas pode-se dizer que se feito em película com um estilo mais tradicional de encenação, Festa de Família ainda seria um grande filme. Isso porque está no seu conteúdo a sua força. A forma que o Dogma propõe é importante pela urgência que dá as imagens, pela estranheza. Mas o roteiro e a direção (extremamente pessoal e estilizada) são a base do sucesso do filme.
Os Idiotas não existe sem o Dogma, e talvez por isso o espectador saiba menos o que fazer com ele. O público que vê Os Idiotas tem uma experiência incômoda porque a dramaturgia de Lars Von Trier é completamente nova. Neste sim impera o improviso, a imagem não rica. Em Os Idiotas o roteiro e a direção importam menos que a forma e a sensação que o filme passa. A repulsão/atração constante dos personagens entre si são as mesmas do espectador com a tela.
Os Idiotas é uma radicalização do que Von Trier já fazia em Ondas do Destino, e em toda a sua carreira. Fala das entranhas do ser humano que nós gostamos de esquecer que existem. Fala do lado secreto, do "idiota dentro de nós". Critica toda uma tradição do cinema com o idiota "boa gente". Ao contrário de Festa de Família não há personagem simpático, ponto de identificação, storyline. Por isso, Os Idiotas é um filme mais imperfeito mas mais importante do que o ótimo filme de Vintenberg.
Mas, cada um a seu jeito, o mais legal é que ambos são bem sucedidos no que se propõe, e acima de tudo, validam um manifesto que só na teoria não teria a força e a vitalidade que estes filmes lhe dão.