Ente a Dádiva e a Loucura, O Conhecimento

por Bernardo Oliveira

É admirável o vigor e a continuidade da obra de Júlio Bressane. Durante os últimos 15 anos, filmou cinco longas, além de incursões em vídeo (as galáxias de Haroldo de Campos...) e em textos irregulares, porém esclarecedores. Realmente interessante: uma assinatura própria em tudo o que faz, um esquema de produção barato e eficaz, um olhar de viés sobre o cinema, a história, as artes, o mundo. Bressane apresenta sua perspectiva do fenômeno cultural, fragmentada e confusa, pressupondo a efemeridade das fronteiras demasiado arraigadas, reproduzindo assim o diálogo da cultura brasileira com a "cultura ocidental" em termos mais ou menos genéricos, nem sempre comparativos (e consequentemente, nem sempre "interpretativos").

Mais ou menos a partir de Brás Cubas, Bressane enveredou por um caminho estranho. Caminho este que conjuga a um tempo a análise de signos culturais por ele considerados importantes e o desenvolvimento de uma sintaxe cinematográfica que encontra em Godard sua referência mais explícita (sobretudo no que diz respeito a planos fixos e "notas sobre filmagens"). Com a exceção de Miramar, autobiografia e plano geral das influências, já foram "mapeados" Vieira, Mário Reis, Machado de Assis e textualmente, José Lewgoy, Vassourinha, Benedito Lacerda, Deleuze e outros. Mas não tratemos destes filmes como meramente educativos ou intérpretes do signo. Bressane busca este mapeamento como uma espécie de sugestão da obra do "analisado" sugerindo-lhes portas de entrada incomuns, acessórias, subterrâneas...

Chegamos ao Jerônimo: pré-anunciado pelo texto do Alguns (97), O signo Jerônimo, onde algumas dúvidas objetivas são tiradas sobre uma pata de leão, uma caveira e flagelos no meio do deserto. Jerônimo é uma espécie de maximum tradutore, que segundo reza a tradição, buscou agregar e transliterar os textos em grego e hebraico, constituintes do Antigo Testamento, para o latim. Todo este esforço aparece no filme, como uma aula mesmo: Jerônimo chegou a criar neologismos para dar conta das imagens e dos sentidos obliterados pela prosa em grego e hebraico. E por aí vai o esforço. Tanto é que tudo que quem vos escreve sabe sobre o Jerônimo, garanto, foi ensinado pelo texto e pelo filme. Uma experiência quase-aula, quase cinema...

Por outro lado, relembremos as palavras de Rossellini, como meio para refletir o modo pluralista das observações de Bressane. A respeito da verdadeira função social do cinema (ele nos lembra que "os estetas acampam nos degraus dos palácios"), Rossellini revela uma extrema decepção com o mau uso da arte cinematográfica, visto que "desde sempre o homem busca representar o real e quando consegue, põe tudo a perder em nome de seus pequenos choques estéticos." Façamos Bressane dialogar com Rossellini: a) qual a questão básica do Jerônimo, isto é, por onde Bressane quer nos induzir a entrar pelo "signo Jerônimo"? E uma pergunta a ser considerada maldosa, mas que proferimos com todo respeito que Bressane merece: b) o que o filme pode fazer pelo signo Jerônimo que o texto não pode? Vamos por partes.

a) A questão básica está em nos fazer identificar a figura de Jerônimo num plano cultural muito diferente do nosso. Ele é responsável pela tradução do Antigo Testamento. Ele é um dos fios que agrega o povo cristão. Ele trabalha para reconstituir o texto numa língua acessível, portanto ele "democratiza" a palavra de Deus. Ele é um intelectual, um profeta, um monge no deserto. Este plano "diferente do nosso" é o nascimento do cristianismo, assunto do qual estamos por fora mesmo. Obtivemos informações de quinta mão. Somos uma nação católica mas nos tornamos um pouco mais graças as imagens do deserto perpetradas por Bressane. De qualquer modo Rosselini aparece como o espectador que observa ternamente as imagens de Bressane e se pergunta: "onde está o povo?", "Para onde vai o povo?" ou ainda, "o que e como o povo utilizou o trabalho de Jerônimo?" O filme não parece querer dar conta deste assunto, o que é um problema, visto que interrompemos o diálogo com a "tradição", perdemos o fio da meada, isolamos Jerônimo do deserto e saimos da sala de cinema de volta ao deserto, sem saber qual rumo tomar. Sabemos quem é Jerônimo, en passant, e ouvimos a voz de Bressane: estudem crianças, "que depois vocês serão mais livres..."

b) O texto sobre celulóide fotografa Jerônimo, o intelectual. O texto do Alguns, fotografa hábitos e história. Por vezes imaginamos que o complemento ideal do filme é o "O signo Jerônimo". Entendemos que ele mantém um diálogo aberto com o filme, e até suplementar. Outro problema: ainda não inventaram notas de pé de página no cinema, nem seria prático. Rosselini bem observa que o cinema é, enfim, o meio de representar o real para fins educativos. Não estamos falando de pedagogia, mas educar para conhecermo-nos uns aos outros. Faltou uma lição de complementaridade no filme: a película, sem o texto. O texto sem a película. Ambos propondo meios para a penetração no Jerônimo.

"Ler, ler, ler..." - uma frase pela boca da personagem. Parece conectada às ideias de Bressane. Seus últimos e ricos filmes trazem um exercício de estilo em constante diálogo com sua bagagem cultural. Mas não tememos afirmar que o mais interessante e estimulante de tudo é a continuidade inteligente da produção de Bressane, buscando um objetivo brilhante e contraditório para os padrões brasileiros e ainda assim, realizando filmes que dão o que falar.

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