FESTIVAL DO RIO 99
críticas dos filmes em exibição
eXistenZ, de David Cronenberg
Canadá/Inglaterra, 1999
O começo é didático, e as cartas bem marcadas: Allegra Geller, a mais renomada projetora de games no mundo, está fazendo os primeiros testes de eXistenZ, um novo sistemas de jogos, onde as regras utilizadas dependem dos humores dos personagens. Mas logo o problemas se instaura: antes de fazer o download para todos os jogadores, um fanático levanta da apresentação e, com uma arma gosmenta que em muito lembra o revólver de James Woods em Videodrome, atira em Geller e causa tumulto no local. Gritos, bagunça e assassinato: tudo resulta na fuga de Geller e Ted Pykul, estágiário de marketing que é tão virgem em jogos quanto assexuado na vida real. Cronenberg é mestre em comparar qualquer vício vício que é o propulsor de todos os seus filmes ao vício sexual. Geller (Jennifer Jason Leigh, perfeitamente sexy, misteriosa e afetada) introduz Pykul (Jude Law, promissor já em Gattaca, que aqui sabe ser afeminado, desagradável e ao mesmo tempo ter o rosto impassível dos heróis de Cronenberg) no jogo, no sexo: para jogar eXistenZ, é preciso ter uma bioporta instalada em seu corpo. O buraco da bioporta, saberemos logo, é feito nas costas, pouco acima das nádegas. A parábola sexual é evidente: o formato do buraco impede de fazer qualquer associação com algo que não seja um ânus. Cronenberg brinca com isso todo o tempo: pela bioporta passam línguas, dedos, vaselina...David Cronenberg é um mestre dos artifícios. Nele, jamais esperamos uma história original, uma narrativa diferente ou um quê de auteurismo. O autor de Videodrome e Crash é um cineasta do esquema: todos os seus filmes são esquemáticos, apresentam para depois experimentarem, tal qual num projeto masoquista. A realidade do corpo é explícita. Como fazer para si um corpo sem órgãos? A pergunta de Artaud e Deleuze, quem a responde é David Cronenberg. O corpo em eXistenZ é a fonte de experimentação, é todo o esforço montado pelo esquema para arregimentar um agenciamento, produzir um acontecimento. O corpo funciona de todas as formas, em intensidades: na gosma, na arma de ossos, no gamepad orgânico, na bioporta, na marca de tiro de JJLeigh, no prato "especial" que Jude Law é obrigado, pelas regras de eXistenZ, a comer.
O videogame, em eXistenZ, jamais é fonte de paranóia (perigos do mundo virtual, vício incontrolado, etc.). O videogame é pura possibilidade de experimentação, obviamente controlando seus limites (o limite da experimentação é o fim do corpo, a morte). Jamais realidade contra ficção em Cronenberg; antes, em eXistenZ é só ficção: um jogo de videogame que entra num outro que, por sua vez, entra em outro indefinidamente. Não é à toa que o mundo do jogo não difere em nada do mundo real. Não existe nenhum efeito para que saibamos o que é realidade e o que é ficção. Nesse sentido, eXistenZ é o anti-Matrix: não há nenhum fora do jogo, nenhum fora do falso, tudo estando imerso num universo de indeterminação ao qual temos apenas a função de dar forma. Não há crítica do simulacro em eXistenZ, a crítica do simulacro seria apenas um meio mais falso do que o falso. Ao contrário, não há negatividade qualquer no filme de David Cronenberg; o que há é o jogo e como jogá-lo. Para experimentar, primeiro temos que aceitar as regras do jogo. O que importa no jogo de eXistenZ é que você experimente, que jogue junto com o jogo, que jamais seja um joguete dele.
A visão conjunta do Ghost Dog de Jarmusch e de eXistenZ pode trazer oposições inteeressantes. No filme de Jarmusch trata-se sempre da surpresa, do inesperado; é a ciência do bricoleur, daquele que rasga as amarras do convencional e tira o óbvio da tela. Em Cronenberg é o oposto: conhecemos o jogo, nada é imprevisível, tudo é inesperável e inesperado. Não é a surpresa que nos invade quando vemos eXistenZ. É antes um sentimento de adesão, de que Cronenberg está guiando os personagens (e nos guiando ao mesmo tempo) através de um universo predeterminado. Somente porque o universo de Cronenberg é um universo do artifício, do falso, é que podemos nos guiar por ele. Cronenberg anda sempre junto com seus personagens, jamais distanciado. Se Eyes Wide Shut fosse um filme de Cronenberg, jamais poderíamos dizer que o personagem de Tom Cruise é um babacão. Por isso que Eyes Wide Shut é tão belo, mas tão pouco autêntico: há uma fissura entre o olhar do autor e o olhar do ator, de forma que os olhos dos dois nunca se fundem. Jamais poderíamos saber da vida de Kubrick vendo seus filmes, ao passo que em Cronenberg isso não é só possível, mas oferecido de primeira. James Spader, James Woods ou Jude Law podem cometer atos muito estúpidos, mas jamais dizemos que são babacões: são antes personagens que, como nós, estão jogados na experimentação e podem errar. O que impota é que erremos junto com eles. Daí o tema do jogo, do falso: estamos todos dentro de ficções em eXistenZ. Não importa voltar ao mundo real. A única pergunta que não se pode fazer é "Ainda estamos no jogo, né?" O jogo não acaba. O jogo não se opõe à realidade; opõe-se ao tédio. E Cronenberg gosta de jogar.
Ruy Gardnier