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As Leis do Desejo:
O Futuro É Mulher (Ferreri)
& Maus Hábitos (Almodóvar)

por Ruy Gardnier

Nos filmes de Pedro Almodóvar e de Marco Ferreri, o homem é submetido a uma força que ele não pode controlar. Essa força é o desejo. E esse desejo é sempre trazido pelo elemento da sociedade que o homem recalca. E por isso mesmo, quase sempre esse elemento é a mulher. Toda  maestria do homem para tentar dominar a natureza cai por terrra diante do desejo. Daí a necessidade do homem nos filmes desses dois cineastas: fazer o homem reaprender, através de uma educação dada pelas mulheres, a fazer conviver razão e desejo. Podemos ver isso claramente nas cenas de Xavier Bardem e Angela Molina no primoroso Carne Trêmula. Por mais que o homem tente parecer racional, sempre será um animal: vemos isso n'A Comilança, n'A Carne e em quase todos os filmes de Ferreri. Almodóvar e Ferreri: dois universos de desejo, bastante diferentes entre si, mas participando do mesmo projeto: fazer o homem retornar ao animal (não negar as tentações) para viver melhor.

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Marco Ferreri com Ornella Muti e
Hanna Schygulla em O Futuro É Mulher

Se o universo é do desejo, é necessário que para isso existam personagens. Não tipos, caracteres ou agrupados de psicologismos, mas verdadeiros personagens. Pessoas não que tenham psicologia, mas que sejam ultrapassadas a cada momento por relações de desejo que rompam um encadeamento lógico/psicológico prévio (o mundo racional, do desejo recalcado) e possam ser rasgados por uma força que os supera e modifica. Para que o universo do desejo possa existir, é preciso que o personagem seja composto como um animal-humano, sucumbindo mais aos instintos do que aos chamados da razão. Para que o personagem do desejo exista, é fundamental que ele seja, antes de tudo, pathos. O amor de uma freira por uma night star ou o desejo de maternidade, por exemplo.

Maus Hábitos, nesse sentido, apresenta-se como um filme de desejo. As freiras ultrapassam os dogmas religiosos e os comportamentos predeterminados para tentar viver de acordo com algo que mais respeite seus desejos. Os vícios, o desejo de imolação, humilhação participam dessa economia de desejos animais. Mas é o amor da madre superiora pela famosa cantora que rompe todos os estados prévios e faz com que tudo mude (uma imagem religiosa pode se tornar um pôster de Mick Jagger). A cantora, mais do que fato narrativo, é o que faz com que o desejo possa fluir em Maus Hábitos. E ela é a única que pode causar grandes estragos, realizar as grandes cisões de sentimento, como aliás acaba acontecendo.

Mas é necessário aqui ver que Maus Hábitos é um filme de aprendizagem de Pedro Almodóvar, e que um certo manejo dos personagens ainda sustenta uma relação primária com o tragicômico. Porque o desejo pede crença. Crença nos personagens. E a relação melodrama/modernidade em Almodóvar, que alcança sua perfeição com Carne Trêmula, em Maus Hábitos não consegue chegar a um termo só. Filme perto do pastiche em momentos, só percebemos que ele está muito além disso na última cena, que não por acaso é a mais bonita do filme.

O Futuro É Mulher, ao contrário, joga com o humano com a força e o primor de um cineasta que dedicou toda sua carreira – como David Cronenberg hoje – a especular sobre as possíveis relações do homem com o que está fora dele (todas as suas possibilidades de desejo). Em O Futuro..., Hanna Schygulla encontra uma Ornella Muti grávida – realmente – numa discoteca futurista gigante. Ornella está cercada por um bando de marmanjos. Como numa cena de fábula, a personagem de Hanna Schygulla retira a grávida da discoteca e passa a abrigá-la em casa, em companhia do marido. A partir daí, o desejo passa a articular-se em três, tendo como base o amor de uma mulher que não consegue ter filhos (Schygulla) pela barriga de uma mulher que mais quer a liberdade do que o bebê.

Ao contrário de Maus Hábitos, O Futuro É Mulher mostra os personagens acima de tudo como humanos. Logo, como animais-humanos. E o trio Schygulla/Muti/? se comporta assim, respeitando todos os movimentos do desejo, mesmo com suas alegrias e ciúmes podendo por um momento corroê-los. O homem, relegado a um segundo posto pelo fato de não poder parir,  dá a vida para que o bebê possa nascer. Claro, o futuro é mulher. E nisso Ferreri nos dá a ver um bocado de sua genialidade na cena do nascimento, quando, na beira de uma praia (e nisso o revivamento da antiga metáfora mar/mãe) e sem o menor sinal, começa o trabalho de parto. Mas o neném nasce homem, projeção do marido que deu a vida para salvar a criança. O ciclo se fecha, como na natureza, e o fluxo de desejo continua (precisa continuar). Filme amplo e livre, O Futuro É Mulher revela um feminismo muito mais interessante do que as americanas da mesma época. Sempre à frente de sua epoca, Ferreri nos mostra mais que feminismo (a "segregação" feminina): o desejo de humanidade.

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