Hiroshima Mon
Amour:
A Liturgia do Silêncio e da Memória
por Alfredo Rubinato
Em 1959 o cineasta francês Alain Resnais oferecia ao mundo a mais arrebatadora obra-prima da história da sétima arte: Hiroshima Mon Amour, uma epifania cuja força raras vezes foi igualada, não apenas no universo do cinema, mas na trajetória da arte como um todo. Entretanto, o que dizer hoje sobre uma fita que já foi exaustivamente analisada em suas inovações narrativas, em sua requintada sintaxe estilística, e mesmo em seus possíveis e múltiplos significados, contextos e subtextos? Talvez reste apenas a possibilidade de uma abordagem de cunho impressionista. E é exatamente o que pretendo fazer neste artigo: falar sobre as impressões devastadoras que Hiroshima provocou em mim. De certo modo, gostaria de poder esquecer inteiramente este filme, apenas para poder sentir de novo a intensidade da sensação memorável que é vê-lo pela primeira vez. As considerações que se seguem são, pois, uma tentativa de evocar, ainda que como mero vislumbre fugidio, algo do vigor assombroso daquela experiência inaugural.Emmanuelle Riva em Hiroshima Mon Amour Creio que Hiroshima Mon Amour talvez seja a única obra da história do cinema em que é possível escutar a diáfana voz do silêncio. Nos anos em que a Sétima Arte foi silenciosa, o que podíamos captar não era a presença do silêncio, mas apenas a ausência da palavra; e a partir do momento em que o cinema passou a estar sob a égide da prosa do mundo, o silêncio desapareceu sob a avalanche de um quase sempre infernal concerto de ruídos ( neste exato momento escuto Hallogallo, do Neu!, e minha cabeça é uma autobahn elétrica em direção ao Infinito... mas que diabos isso tem a ver com o tema de que estou tratando?!? "Quem pudesse sintetizar tudo isto!"...). Foi somente em Hiroshima Mon Amour que esse mistério da aurora dos tempos nos foi desvelado: a espectral voz do silêncio... E quando aqui falo em silêncio não penso, de modo algum, em negação da palavra, mas em algo que a transcende, numa dimensão que está além da capacidade de expressão do discurso. As palavras de Hiroshima , em sua beleza a um só tempo luminosa e cruel, sem dúvida expressam muito da essência do filme. Mas é certamente no ballet hipnótico do andar inquieto, do movimento tenso das mãos, dos gestos repentinos e crispados, e, sobretudo, do olhar incandescente de Emmanuelle Riva, que a grandeza da obra de Resnais nos é revelada em toda a sua magnitude. A deslumbrante atriz francesa, na mais perfeita interpretação que já vi, consegue transfigurar silêncio em verbo pleno de significados, em ausência que se faz presença. Tanto nas cenas que se passam em Hiroshima, com Eiji Okada funcionando como contraponto, quanto nos flashbacks que remetem aos eventos ocorridos em Nevers durante a II Guerra Mundial, pressentimos que o silêncio fala através da angustiada coreografia espiritual dos atores, verbalizando o incomunicável, dando corpo ao intangível. O desespero lancinante de Emmanuelle Riva, digno da dor severa e imponente de uma tragédia grega, somente pode ser consubstanciado em sua totalidade por meio do dizer do silêncio, num discurso que não pode ser articulado como produção racional de sentido, mas sim como visão intuitiva, e até mesmo profética, de uma verdade que se entrevê nas névoas do inefável.
Eiji Okada e Emmanuelle Riva no filme de Resnais Sinfonia rigorosa de silêncio, sensações, palavras agônicas, luz e sombras, Hiroshima Mon Amour é uma grave meditação sobre a questão da memória, sobretudo da lembrança como ponto de partida para o esquecimento. Talvez a conquista do presente, se realizando na possibilidade do esquecimento, esteja no afastamento definitivo do passado. Mas como se libertar do passado na pálida esperança de um presente evanescente, que já se esfuma em passado? Emmanuelle Riva vaga pelas ruas de Hiroshima através das brumas de Nevers, caminha no presente pelas etéreas veredas do passado ( "and the rain falls gently on the Town..." ). Ela tenta pateticamente amar um arquiteto japonês, mas o que consegue ver, no vácuo da memória, onde a luz dos séculos se desintegra em reflexos crepusculares, é o rosto morto de um soldado alemão; tenta suprimir Nevers da memória, mas a reencontra nas ruas de Hiroshima. Em uma passagem particularmente amarga, Riva divaga, diante de um espelho: "Elle a eu à Nevers un amour de jeunesse allemand... Nous irons en Bavière, mon amour, et nous nous marierons. Elle n’est jamais allée en Bavière. Que ceux qui ne sont jamais allés en Bavière osent lui parler de l’amour. Tu n’étais pas tout à fait mort. J’ai raconté notre histoire. Je t’ai trompé ce soir avec cet inconnu. J’ai raconté notre histoire. Elle était, vois-tu, racontable. Quatorze ans que je n’avais pas retrouvé... le gôut d’un amour impossible. Depuis Nevers. Regarde comme je t'oublie... Regarde comme je t’ai oublié. Regarde-moi". Riva pretende, dando vida, dando materialidade à lembrança, relega-la ao sono do esquecimento. Mas isto não é possível. O que aconteceu nas trevas de Nevers é indelével, e o presente em Hiroshima, que jamais se afirma como possibilidade real de vigência, é desde sempre passado em sua fugidia transitoriedade. A ilusão da lembrança como parteira do esquecimento se desvanece assim como a longa noite de Hiroshima se dissolve na aurora interminável de Nevers...
No ocaso de sua inquietante jornada, Riva e Okada reconhecem sua derrota na tentativa de reinventar o presente a partir do esquecimento. "Hi-ro-shi-ma... Hi-ro-shi-ma. C’est ton nom", ela diz; replica ele: "C’est mon nom. Oui. Tom nom à toi est Nevers. Ne-vers-en-Fran-ce". Ambos admitem, por fim, o desalento de sua posição na ordem do mundo, a impossibilidade do esquecimento como redenção e o peso intolerável de sua identidade e memória, e o universo reconstruiu-se "sem ideal nem esperança...".