Idiotorial 9
  (por Izesuq Kilistoq, pseudônimo)
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From: "Ricardo Scotta" <scotta@pro.via-rs.com.br>
To:<contracampo@yahoo.com>
Subject: Críticos_Amadores
Date: Fri, 13 Aug 1999 21:47:23 –0300

 

Olá amigos, sou um internauta cinéfilo. Dia desses lendo algumas matérias publicadas, pelos colunistas de cinema do ZAZ, descobri o endereço eletrônico de vocês e resolvi dar uma conferida. Concordo plenamente com o pessoal do Cinemascópio, que escreveu que seus textos são engajados, apesar de não saber bem o que isto significa (hehehe). Brincadeiras à parte, gostando de cinema como gosto, procuro ler tudo o que encontro na internet.

Suas páginas, agora fazem parte de meu bookmarks. Parabéns pelo trabalho.

Certo dia Carlos Reichenbach, que é colunista do ZAZ, escreveu perguntando aonde estão os novos críticos de cinema? Ele disse que está surgindo toda uma nova geração de cineastas brasileiros, e comentou que o mesmo não está ocorrendo com os profissionais que fazem críticas. Com este comentário em mente, convidei dois colegas meus, cinéfilos também, a me ajudar a montar um site, que escrevesse sobre cinema de forma geral - não apenas comentários sobre filmes. O problema é que não somos profissionais da área. Então resolvemos criar uma classe - que talvez não seja tão rara quanto a de críticos profissionais - "Críticos Amadores". Nosso site até que é bonitinho, mas os textos ...

Nós gostaríamos, que vocês da Contracampo, dessem uma visitada no nosso site, e dessem sua opinião à respeito de nossa iniciativa e do nosso trabalho. O endereço é http://pagina.de/criticos.

Sem mais para o momento, agradecemos

(Críticos Amadores)

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Antes da minha crítica a Contracampo começar (infelizmente eu tenho péssimas notícias, e o obituário me dá muito trabalho, a maioria das pessoas não vai gostar nem um pouco do que eu tenho a dizer disso, eu não aconselho a leitura desse texto), eu preciso falar desses jovens que estão se aventurando perigosamente pela crítica de cinema hoje. Tudo se resume a uma só frase – pois estou sintetizando, com o máximo de esforço, isto faz parte do meu trabalho, o que disseram. E o que eles disseram? Disseram que a realidade foi feita para ser salva pelo homem. O que os novos críticos estão querendo dizer com isso?

Há duas opções: em primeiro lugar, que necessitamos de crítica – o que nos dá a sensação de conforto inerente a uma categoria do poder e do patrimônio públicos, quero dizer, que os críticos estão à cata de informações que nos ajudem em alguma coisa porque muita vez essas coisas são tidas como necessárias. Ainda em primeiro lugar, esse desdobramento de tudo que é arte e é cultura, que faz parte de um decisivo jogo do que é bom e do que não é, mas que se desfaz desse mesmo jogo quando há um empate das forças que se querem com tal (como jogo, eu quero esclarecer), e a pretensão dos que não querem que o jogo seja evidente a todos. Neste primeiro lugar das questões, ainda há espaço para confirmar um pouco as velhas profecias dos que sustentaram (como Sócrates e São Paulo de Tarso, só para citar dois) haver uma mídia implícita no controle dos sentidos pelo homem, categoria da história; que seria a própria mídia (a atual) o seu controle, a sua continuação natural, o seu discernimento, a sua questão, a sua tragédia, mas que se disfarçou – para muitos outros se degradou – em terreno próspero da constituição do público e assim por diante. Este é o primeiro lugar a que se deve atingir.

Em segundo lugar, há um certo empate, quero dizer, uma certa vitória e uma certa derrota de ambas. Não quero dizer com isso que estas forças se anularam. Quero dizer apenas que essas forças existem num terreno indiferente. Não se trata mais de jogo e sim, porque não há vencedores, de um acomodamento na ação, e de uma sutileza imperceptível na sua base teórica. As gerações posteriores verão nisso um trocadilho. Por enquanto, é preciso falar de um envolvimento clássico, banalizado entretanto por fealdades vicissitudes, obstruído por veleidades parcimônias: o que pensarão essas gerações de sucessores, inaptos em distinguirem (ou recuperarem) como tal os efeitos presentes da realidade sobre os seus atores, e, de trás pra frente – a minha primeira proposição, como vocês bem perceberam, tinha ido de frente pra trás –, o que os homens têm a aprender com o mundo que não se revela senão no decorrer de suas ações futuras. Assumindo, para nós, que eles estão lá – o que é impossível mas válido –, há também os que, para eles, estão aqui – o que é ainda impossível, porém mais válido, porquanto nós existimos hoje diante deles sem que eles existam, hoje, diante de nós. Devemos, logicamente (mas eu não tenho nada com isso), construir a maquinaria de um sistema para resolver uma questão insolúvel: o sistema é falho, como vocês sabem, mas ninguém disse que não poderia ser eficiente até certo ponto. Newton havia preparado o cálculo diferencial para não ter de mexer com uma realidade impossível, mas apenas deixá-la entrar aos poucos na realidade real, na medida do possível (a expressão é banal e procuro revitalizá-la). Era uma espécie de administrador das chances e das possibilidades positivas do erro e do impossível. Ele é um moderno. Está empatado, como eu disse, entre as sutilezas do que existe e do que deve ser, mas isto não faz diferença se temos de agir no ponto de vista da crueldade. Não se trata de lógica. Nisso também estamos empatados: jovens que estão se aventurando perigosamente pela crítica de cinema hoje, falemos dos que estão atrás de nós, vamos aprender com eles, não o que disseram, mas a impossibilidade de aprendermos deles, com eles, para eles, o que quer que seja. E pensemos, como São João Batista e Nietzsche, nos que vêm depois de nós como nossos mestres verdadeiros, aqueles dos quais nós temos sua lembrança retrospectiva em relação a nós em nós mesmos, que habitamos neles agora, daqui a pouco e em nosso próprio passado, e continuaremos a habitar neles quando morrerem e daqui a cem, duzentos, trezentos, quatrocentos anos. Jovens que estão se aventurando perigosamente pela crítica de cinema hoje.

A solidariedade e o repasto são uma só urgência, o que não deixa de ser um paradoxo: Montaigne fala de seus canibais (Essais, Livre I, chapitre XXXI) com os olhos mornos - isto é, ao mesmo tempo curiosos e indiferentes -, porque seus olhos estão virgens para eles, porque procura reconhecer neles alguma coisa onde se segurar. Sua crônica do humanismo (os Essais não são outra coisa que crônicas quase jornalísticas do humanismo ritualmente atualizado - o termo é de história das religiões) entra em curto quando ele, pela primeira vez, precisa falar sobre o que já não sabe de antemão. Montaigne, entretanto, é estratégico. Não introduz diretamente o bárbaro. Prepara o terreno para o seu aparecimento. Começa citando - numa visível arqueologia do olhar - os olhos do civilizado. Primeiro do que lhe é mais próximo do espírito mas que, curiosamente, lhe antecede em pelo menos setecentos anos, aquele que habita as trevas da sua hereditariedade intelectual, aquele da sua estirpe, o Rei Pirro: "Não sei que espécie de bárbaros são estes (pois os gregos assim chamavam a todas as nações estrangeiras), mas a formação de combate, que os vejo realizar, não têm nada de bárbaro". Fala do espanto de Filipe diante do exército de Públio Sulpício Galba. Desconfia, preparado pelos grandes fiascos que cercaram as promessas do Novo Mundo, se o próprio Novo Mundo possa ser concretamente descoberto, mesmo depois das provas reais da sua existência: "Seja como for, receio que tenhamos os olhos maiores que a barriga, mais curiosidade do que meios de ação. Tudo abraçamos, mas não apertamos senão vento." Só então ele começa a falar da existência de alguém misterioso, que lhe fora próximo, que ele efetiva e concretamente conhecera, mas que não nomeia senão pelas suas propriedades – "Aquele que viveu dez anos no Novo Mundo me disse". Montaigne, estrategicamente, tenta reconhecer o Novo Mundo a partir de um mito antigo, o da Atlântida, ou fazendo as associações necessárias com relatos de Sólon e Aristóteles. Como não há certezas, Montaigne se volta finalmente para sua testemunha ocular, "o simples e grosseiro de espírito", mas cujas atribuições são justamente o critério de imparcialidade narrativa que Montaigne busca para garantir a verdade. Não é à toa que Montaigne se prepara para o desconhecido com a linguagem da guerra, falando dos generais poderosos de outrora, lembrando das falanges romanas e gregas, sobre toda essa história de que Pirro achara afinal as falanges romanas civilizadas demais para um povo tão bárbaro – o que a história posterior, a que Montaigne quer sempre pertencer, acabou por concordar. Ele quer se proteger deles. Mas por quê? Pela possibilidade de que talvez os novos bárbaros não produzam, como os bárbaros romanos que sucederam os gregos, uma civilização. Se alguém já tivesse inventado a psicanálise, esta seria a principal questão a ser posta:  o que serão os novos bárbaros em relação a nós daqui a pouco, quando decorrer o tempo que nos separa de Pirro até hoje - porque Pirro teria mesmo, inexoravelmente (é isso que faz seu comentário significante ao homem moderno), sub specie aeternitatis, de achar civilizados os "bárbaros" que fundaram a história do mundo -, esses outros que me causam a simpatia de um horror inédito, porque somente os reconheço a partir de mim, tanto terror alegre que eu me admito brincar de sua nudez, de seu corpo animal, com meu sotaque civilizado, polido e aristocrático?  É a língua bárbara, por oposição à arqueologia do olhar alheio, que presentifica o medo e o detona. O peso da sua novidade irrita Montaigne. Agora a ignorância do intérprete se transforma em obstáculo: "meu intérprete compreendia tão mal e se mostrava tão embaraçado com as perguntas que, graças a sua estupidez, não pude obter algo mais sério de meu interlocutor". Montaigne credita, como seria natural, o problema da comunicabilidade ao tradutor e não a si próprio. Por meio do tradutor, que outro não é senão um dos seus adoráveis "simples e grosseiros de espírito", Montaigne não chega a lugar algum. O tradutor não serve como instrumento, ele não pode ser a língua, nem a curiosidade, nem a perspicácia, nem a simpática urbanidade que deseja entender o  dehors - que em todo o texto do Essai é mantido sob controle por associações diretas aos mitos presentes na cultura que Montaigne domina. Montaigne está incomunicável, mas agora a sua solidão não quer se referir somente aos indígenas que ele já pensa conhecer, por causa dos mitos, como um fato real de dentro da sua cultura; ela vai mais longe, porque mais inoportunamente perto, até "Aquele que viveu dez anos no Novo Mundo me disse", aos marinheiros e aos topógrafos anônimos que, para sua irritação, não chegam ao fim desejado: o de provar como eles são (os canibais, os seres do Novo Mundo), afinal, tão próximos dele, já garantidos por uma série de informações profeticamente visíveis desde o começo da cultura. Seres visíveis, de todo o modo visíveis, simples e claros (moral, politica, sociologiamente). É devido a esta nova barbárie, esta que vem de dentro, que o mundo se torna perigosamente novo. De que há gente que pode saber um saber que o aristocrata não suspeita, que é pervasivo à simples hipótese de que não se possa conseguir uma pergunta que dê conta do que se quer, um saber que não se aprende na cultura autóctone e na erudição mas no aprendizado concreto da vida com o realmente outro e ali mesmo se esgota, não se subtrai, não vem se somar simplesmente ao que se sabe - eis o que é insuportável. O perigo está, pois, não no poder bélico do bárbaro, no número de seus homens, na violência de seus efetivos, mas apenas pela impossibilidade clássica (fora dos limites do clássico mas possível - o insuportável - em outros limites, menos elevados) de saber, de coordenar, de medir, de localizar, através do mesmo o que está fora - e que gera, finalmente, o riso, o mais autêntico limite do conhecimento: "Tudo isso é, em verdade, interessante, mas, que diabo, essa gente não usa calças!" Críticos da crítica de cinema de toda a parte escreveram a Contracampo e me perguntaram: "mas afinal de contas, Izesuq Kilistoq, qual é o seu lugar, o que você tem a dizer, o que você está fazendo aí, como é que você consegue ser tão rûim assim?" Isto porque estou sendo bastante complacente comigo mesmo, pois os termos utilizados não foram estes. Algumas mulheres – estou desesperado procurando uma, de preferência maiores de 35 anos e que sejam separadas, divorciadas, mas sem filhos, e que tenham carro – perguntaram a minha idade. Tenho 28 anos.

Era apenas isto o que eu queria dizer antes de passar para uma segunda etapa. Vejamos no obituário, quando morreu Michê Focô. Este texto é uma homenagem a Michê Focô pelo aniversário de sua morte, que se dará dia 18 de janeiro de 2000, justamente no ano do próximo milênio, segundo os supersticiosos.... Michê estaria completando hoje, 82 anos, seis meses, oitos dias e algumas horas – estou procurando seu horóscopo na internet, mas não tenho como saber nada dele sem essa informação. A data de seu aniversário é, para todos nós portanto, a coisa mais importante de hoje. Eis, como seria natural, a minha homenagem.

Críticos da crítica de cinema de toda a parte escreveram a Contracampo e me perguntaram: "mas afinal de contas, Izesuq Kilistoq, qual é o seu lugar, o que você tem a dizer, o que você está fazendo aí, como é que você consegue ser tão rûim assim?" Isto porque estou sendo bastante complacente comigo mesmo, pois os termos utilizados não foram estes. Algumas mulheres – estou desesperado procurando uma, de preferência maiores de 35 anos e que sejam separadas, divorciadas, mas sem filhos, e que tenham carro – perguntaram a minha idade. Tenho 28 anos. Como eu tenho a sensação de já ter dito isto antes, mas não quero parecer muito repetitivo, reforço apenas que estou desesperado procurando uma mulher, de preferência maior de 35 anos e que seja separada, divorciada, mas sem filhos, e que tenha carro. Também teria de responder que completei 28 anos, porque elas escreveram a Contracampo e quiseram saber isso. E que alguns críticos da crítica de cinema de toda a parte escreveram a Contracampo e me perguntaram: "mas afinal de contas, Izesuq Kilistoq, qual é o seu lugar, o que você tem a dizer, o que você está fazendo aí, como é que você consegue ser tão rûim assim?" E que os termos que eles usaram não foram estes e que somente os utilizo agora por ser complacente comigo mesmo.

O brasileiro, o bárbaro em geral, e o mineiro em particular – vocês adoram uma perguntinha dessas de quem diz que não está entendendo direito muito bem de uma certa forma uma coisa. Coincidência ou não, Michê Focô passou por um vexame desses em 1973(?), quando esteve em Belo Horizonte, aqui mesmo, no Brasil. O episódio foi comentado por Michel de Certeau – vocês, bons auditores, já ouviram falar dele na minha coluna, mês passado – em seu artigo sobre Focô para um colóquio em Berkeley (1985) e que foi republicado no livrinho Histoire et Psychanalyse entre Science et Fiction, 1987. Da mesma maneira que me perguntam agora, vocês mesmos estavam - amigos do passado - alvoroçados para saber o que o grande inclassificável defensor do outro teria a dizer. Michel de Certeau, o jesuíta (curiosamente, aquele que carrega o estigma da nossa educação), o designa segundo frases e metáforas. O repasto toma aqui sua forma também ritual. O poder da fama não é um alimento comum para o bárbaro. O corpo da fama precisa ser tomado e reconhecido também por nós, aqueles que também observam. Depois de quatrocentos anos, Montaigne finalmente aparece entre os bárbaros e vai falar. É somente quando percebe que ele é não é mais o sujeito que observa, mas o objeto curioso aos olhos atentos do bárbaro, que ele pode falar. Ohhh. Deixarei para depois o que ele diz. Preciso de um gancho para recomeçar tudo de novo.

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Ruy Gardnier está desesperado tentando conseguir gente que escreva críticas de cinema, em vez de horrorosos artigos impúberes e generalizantes. "Contracampo está se desfigurando", ele suspira em voz alta pelos corredores da Biblioteca da Maison de France. O desespero é tanto que ele próprio me convidou para integrar o espaço sacrossanto do arquivo de críticas de Contracampo – espaço que me havia sido vetado desde o primeiro número oficial da revista. Antes que eu me alegrasse (?!) com o convite, ele me preenchia o vazio intersticial da emoção com duras admoestações: "Olha, aqui tem de ser crítica mesmo, séria, tem de escrever coisas com seriedade e não esta m... [merda] que você costuma fazer. Eu nem sei porque eu deixo esta sua porcaria sair na minha revista!"

Em primeiro lugar, Ruy, esta revista não é sua, como a sua mãe pode ter dito a você inicialmente. Em segundo lugar, talvez você ainda não tenha desconfiado das minha reais pretensões em Contracampo: dinheiro. Somente por dinheiro eu poderia suportar a companhia desagradável de um Bernardo Bolinha, de um Marlos Salustiano, de um Eduardo Valente – sem falar no magnífico Alferes Rubinato. Em terceiro lugar, quando eu ando em Copacabana à noite, contando com vagar as falhas nos dentes de suas prostitutas, espantado no engodo físico de seus travecos, me recordo de um tempo adorável de ideologias e dinheiro comido por baixo dos panos, de gente que produzia cinema e apartamentos na zona sul com o fácil dinheiro do contribuinte, uniformemente, ideologicamente. É disso que tenho saudade, dos velhos tempos em que eu não precisava sentar o rabo aqui porque ele se ocupava de outra coisa. Homossexualismo, drogas, desvio de verbas. Eu era um homem feliz. Agora as coisas são diferentes. Há transferências de valores que são completamente a-históricas e que nem suspeitamos; velozes movimentações bancárias, tão rápidas que se torna impossível percebê-las ainda que as tenhamos sob os olhos todo o tempo; dinheiro que entra em produções ficcionais que envolvem nações inteiras. Nós, os pequenos ficcionistas, os pequenos estelionatários, os pequenos burladores, nós não estamos mais ocultos na margem, mas fomos finalmente reconhecidos e integrados por uma estóica equação da política mundial. O frio metabolismo dos contos de Borges enfim sai do papel – mas ninguém aprendeu nada deles, apenas os reproduzem com uma alienada moralidade, subprodutos de uma profecia distante que não se conhece a vitalidade nem a força de sua origem. E, portanto, à qual não se consegue mais escapar. No fim deste processo diabólico está a pasta de críticas de Contracampo, estão os olhos vigilantes de Ruy Gardnier e seus asseclas, os lutadores da virgindade. Quero dizer, Ruy Gardnier, que minha tarefa é a mais sublime de todas. Sou eu que poluo sua incongruência com aspartame, a consciência de um estado de óbvio que o seu cérebro de classe-média não pode mais absorver nem reconhecer. Você não quer o lixo na porta de sua casa, porque não era de lixo que se compunham os poemas e as classes impolutas vestidas de branco na Antiga Roma. E você ainda pensa, numa tarde como esta, em como se pode ficar a salvo do cristianismo. Que otário!

 
Abraços.
Izesuq Kilistoq já é psicanalisado
   
O POST SCRIPTUM DO LEITOR PERTINENTE:
 

From: "augusto ramos" <afr_22222@yahoo.com>
To: "Rafael Viegas" <rviegas@pobox.com>
Subject: Crítica ao Idiotorial 8
Date: Sat, 4 Sep 1999 18:44:58 -0300

      Navegava buscando informações sobre cinema e achei a sua página. Envio este e-mail porque achei vários aspectos interessantes no seu texto, embora eu não saiba exatamente qual é o real contexto pois não cheguei a ler todas as edições da revista. Acho que você deveria, por exemplo, haver se detido mais na questão de que você tem interesse e os demais da revista também têm e os cineastas também. O mais interessante de se usar a autobiografia (a questão do pseudônimo desembarca nela) é mostrar o quanto nossas limitações ou o quanto nossas modestas mas acertadas idéias são também as de muitos outros... Foi bom você se desdobrar no pseudônimo pois assim você mostra que o seu pseudônimo é inútil, mas que também o seu nome não valeria mais que um pseudônimo, o que chama atenção para a questão da identidade (o que mais uma vez poderia ser conduzido a uma discussão sobre o cinema). O maior problema dos diretores de cinema é que eles pecam pela auto-indulgência; a auto-indulgência é concedida pela mídia aos que são considerados celebridades (ou personalidades célebres), é também um modo de corrupção, e você num editorial como esse tem a posição paradoxal de quem pode ser auto-indulgente mas não tem celebridade nenhuma.
    O que parece que você não considerou é que você tem que prender a atenção de um leitor midiático, ou seja, você deve escrever de modo a que o leitor seja fisgado no início, depois você terá espaço para digressões. No modo com você escreveu dá impressão que você está escrevendo apenas para o pessoal da revista ou iniciados, talvez você devesse começar comentando um tema da revista e ir passando para o jogo meta-narrativo deixando a promessa de retornar aos temas da revista. Mas são só comentários de quem não conhece todo o contexto da revista. 

Abraços,
Augusto Ferreira Ramos

 
ð Resposta do Ombudsman

 

    Mon cher Auguste,

    Finalmente, alguma coisa que toca em pontos fundamentais e me dá a devida vontade de responder. Todo mundo que leu meu Idiotorial 8 (que é o texto em questão aqui) diz ou que eu sou um retardado completo ou me consideram um palhaço com um certo talento panfletário (estas são as boas críticas); ou então se viram para os outros articulistas e questionam o porquê da minha permanência em Contracampo ou passam adiante, sem imaginar mesmo do que se trata. Realmente o texto sai muito do contexto de Contracampo. Os articulistas de Contracampo são sérios (o que eu não acho ruim, é claro, e não estou sendo irônico quando digo isto), com uma ou outra coisa mais lúdica ou informal na sua produção textual – que afinal serve para garantir um certo ambitus contemporâneo à escrita, mas que não é outra coisa que adaptação a esse contexto e não realmente uma crítica à estrutura do saber e de escrita da crítica de cinema. Não digo isso para que se pense que, na minha posição, eu consiga fazer essa crítica da escritura da crítica de cinema com sucesso. De modo geral, os integrantes de Contracampo ainda gostam de mim porque dou um certo ar surreal à revista – mas isto somente porque contribuo bissextamente para as edições. Mas eles se pensam como sérios e reais, isto é indiscutível. O próprio Ruy Gardnier caiu numa de minhas brincadeiras, quando lhe informei que o texto com o qual estava fazendo propaganda de Contracampo versava mais ou menos assim: "Contracampo é uma revista virtual de cinema baseada do Rio de Janeiro, Brasil, que está agora na sua oitava ediç..." "Espera aí – ele disse – , troque o virtual por on-line! Contracampo não é virtual!" Quando visito sites de cinema (como o da revista Kinema), não consigo deixar de sorrir a respeito dessa seriedade e dessa realidade – o que não quer dizer, como serei acusado, que eu considere os integrantes de Contracampo uns estúpidos. Eu acho ruim o nosso nível, tecnicamente falando, comparado ao deles – diferença, claro, ôntica e não ontológica, que deve ser creditada a boas bibliotecas, videotecas, incentivos de várias ordens que nós aqui não temos, e pelo tempo de que dispomos para fazer tudo, sem receber nada, e sem a necessária especialização. Sobre o meu nível e minha especialização, então, nem se fala. Quanto a isto, especificamente, eu sempre me defendo do  vazio conteudístico dizendo que eu não sabia – e continuo não sabendo – nada de cinema. Uma defesa que, na verdade, não me defende, mas me gera críticas ainda mais pesadas – o que acho bom. Então, dentro da ignorância, a minha "proposta" (porque é bastante livre e não se estrutura, obviamente, como um método) é a de colocar as coisas indiretamente, colocar questões que não se esquadrinham nos limites do próprio texto, do conteúdo dele, do que ele deveria tratar objetivamente, em especial em relação ao papel do crítico. Fui chamado, por Marlos Salustiano (que é integrante de Contracampo), de "desconstrutor simplista e fácil". Como ele também sempre me acusa de ser católico, me faz pensar imediatamente em teologia negativa – muito a propósito, aliás, e por coincidência, das acusações feitas ao próprio sacerdote francês da desconstrução. Não quero descartar essas hipóteses, nem quero ser irônico a respeito de um dos poucos que me tomam a sério – sob a devida ótica, claro. Vou deixar para meditar sobre isso e depois me posicionar. Quando me aproximei novamente de Contracampo, desconfiava que o pessoal – já com um ano de existência – entrara, talvez, na sua fase difícil: a de acreditar que os seus textos seriam lidos sem contexto, quero dizer, que seriam textos puros sobre cinema, que seriam lidos por si, como textos que diriam o que dizem, cartesianamente, sem que nenhum de seus leitores aventasse a hipótese de fazer a genealogia da sua produção. Suponho que para alguém que está de fora essa genealogia não é muito difícil de fazer. E, pelo que vejo, eu devo ter razão. Contracampo aceita os sinais de seu sucesso (que a revista realmente obteve) como sintoma dessa imediatez entre texto e leitor (que são ou os auto-indulgentes aos quais você se refere ou seus fãs e talmudistas fiéis, críticos ou não). Não percebem aí, eu acho, aquilo que nós estamos (me refiro a você e a mim, se não se incomoda) justamente tentando criticar: o grande nome e a produção de contexto no qual ele sobrevive. Existe essa indústria tupiniquim do grande nome (é óbvio), que não ganha milhões de dólares, mas que necessita desse poder, que ama esse poder que a nossa babação, de certo modo, lhes confere. E o vedetismo é um elemento necessário à sobrevivência do cinema, muito "mais" do que na filosofia – que seria, a grosso modo, um de meus objetos particulares de análise, "alhures" – bem como, o que seria "natural", da crítica de cinema em todos os tempos, em todos os lugares. Contracampo, creio eu, entra de cabeça nessa. E não parece se aperceber disso.
    Existe, claro, uma pilhéria no fato de eu me autodenominar "crítico" dos críticos de Contracampo. Ombudsman?! Mas dou a mão aos meus críticos e reconheço que eu ainda não acertei a minha mão: não tive o sangue-frio e o controle para conduzir o texto, e talvez o tenha desperdiçado com flutuações pouco estratégicas. Mas, aquém de não ser crítico, eu também não sou escritor. Acho que este outro texto (o Idiotorial 9) trata de coisas mais diretamente ligadas ao cinema, e mais relativamente ligadas à crítica de cinema. Ou seja, me posicionando e compreendendo o nosso lugar no meio da auto-indulgência que você aponta – e que reconheço a existência, talvez da mesma maneira.
    Você acertou na mosca no caso do pseudônimo. Mas quanto ao hermetismo da linguagem (citações em grego, latim, inglês, francês, que são mais herméticas e difíceis de compreender que as auto-referências aos componentes de Contracampo, por exemplo), eu acho que ele reforça justamente o problema proposto pela existência desse pseudônimo: uma auto-indulgência sem estatura, sem peso, sem aura, sem celebridade e, sobretudo, sem autoridade. Nas sapientíssimas palavras de Eduardo Guerreiro, uma "pura erudição do nada". O problema da autoridade é, aliás, incontornável para mim – já que neste mesmo texto (neste que você está lendo) eu mesmo reafirmo (pela milésima vez) não saber coisa alguma de cinema. Quero analisar também em Contracampo, e isto eu digo somente a você, a produção hierárquica natural entre os elementos de um grupo: de como os valores – e os integrantes de Contracampo se baseiam numa tradição de cultura que de certo modo eles se dizem contrários – são organizados; como se comportam os corpos estranhos, de que modo eles são extirpados ou desvalorizados e reapropriados numa conjuntura dinâmica (o fato da revista ser virtual, quero dizer, on-line, e não ter um quadro muito fixo de articulistas torna tudo ainda mais interessante). Por enquanto, eles me toleram e ainda riem. Mas, com o tempo, tenho certeza de que a manutenção da minha posição vai depender de uma discussão que não aparece como evidente a todos os membros. Curiosamente, mesmo quem me critica, por exemplo, como um desconstrutivista fácil (me refiro a Marlos), reconhece meu esforço como relações-públicas e meu tino administrativo, talvez sem imaginar que uma coisa vá necessariamente contaminar outras menos visíveis. O problema deve surgir, suponho, quando os leitores de Contracampo me assumirem (com a seriedade que eu também mereço, afinal) como parte das posições ideológicas da revista, e os articulistas tiverem de responder pela responsabilidade implícita em meus textos. Mesmo que eles respondam que essa responsabilidade é totalmente minha, isto soaria como um método empregado por um certo jornalismo barato, o que não acredito estar dentro do critério moral da maioria dos membros da revista. Mas é apenas a suposição de quem, graças a Deus, não domina a dinâmica da vida.

Bom, parece que me adianto demais. Espero ansiosamente sua resposta.

Abraços,
Izesuq Kilistoq
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F Por uma falha imperdoável, o nome de Michel Foucault aparece totalmente equivocado aqui. Michel Foucault se grafa desta maneira, Mi-chel Fou-cault, e não da maneira com a qual eu insisti ao longo de todo o texto. Acionei a equipe de revisão e prometo resolver o problema no próximo número. Este texto também foi escrito para homenagear Carl Theodor Dreyer e Fritz Lang. Basta trocar os nomes e as datas de aniversário, de morte e, para parecer mais lícito com o meu erro inicial, também escrever os nomes errados – ainda que, desta vez, de propósito. Proponho "Cow, tche, Adora Dreyer" (porque ainda existe um conhaque com esta marca no mercado) e "Dr. Flite" (que é uma marca de inseticida comum nos subúrbios do Rio, na década de 70).
 

 

  FIM
 
 
 
 
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