FESTIVAL DO RIO 99
críticas dos filmes em exibição
KIKUJIRO / VERÃO FELIZ, de Takeshi Kitano
Japão, 1999
Como sempre em Kitano, as cartas estão à mesa desde o princípio do jogo. É um filme infantil, no sentido que é observado pelos olhos de uma criança essa criança não é nenhum personagem do filme, mas o próprio diretor que se posta a observar o mundo como uma criança. Vemos um grupinho de moleques fumando cigarros de nicotina. Vem um discurso moralizante por parte da mulher, que diz que eles não vão chegar a lugar nenhum dessa forma. Seu marido, interpretado por Takeshi Kitano, tal clown, faz um rosto engraçado e com os dedos faz um "V" para eles. Kikujiro primeiro parece fazer parte do discurso da criação (lição de moral, etc.), mas logo percebemos que o real interesse do filme é pedagógico, no sentido rico da palavra: conduzir as crianças. Aparece o menino Masao, que vive com uma tia. O personagem de Kitano revela: "Que criança triste!". E realmente, com o começo das férias Masao fica completamente isolado (poucas coisas poderão ser mais dolorosas que a imagem de uma criança sozinha com uma bola num campo de futebol vazio). Daí o trajeto do filme-projeto: Kikujiro (o filme e o personagem de Kitano) será o guia da tristeza até a felicidade, conduzirá Masao, por uma série de peripécias, não por um objetivo prefixado, mas pelo que ele realmente desejava.A história de um sujeito desajeitado e grosseiro que vai conduzir um menino à procura de suas raízes familiares encontra paralelos no cinema recente do mundo inteiro (Grécia, Itália e sobretudo o Brasil, com o filme de Walter Salles). Mas, nesses, o jogo estava feito antes, o que se queria encontrar já estava dado de antemão. Ora, o trajeto de Kikujiro é completamente diferente, talvez a real antípoda desses outros filmes. O menino quer encontrar a sua mãe de nascença, e todo o trajeto inicial do filme vai nessa direção. Kikujiro assume o papel de guia geográfico (um pouco no sentido turístico do termo), com a função única de não tirar o menino do caminho. Nesse caminho Masao terá que passar por uma rapina, que no filme se torna a figura mais repugnante possível o abusador ; e terá que fazer dupla, com o "senhor" para conseguir realizar seu caminho: pedir caronas, conseguir comida... Mas é na segunda metade do filme que Kikujiro mostra sua real dimensão, toda a sua verdadeira beleza. Parece, inclusive, que Kitano só filma a primeira metade por necessidade, e a segunda com verdadeiro prazer. A virada do filme acontece na chegada à casa da mãe. O endereço anotado por Masao pertence a outra família, provavelmente a mesma mãe que mudou de família. Somente a partir daí o filme passa a ganhar uma verdadeira vida. Passamos então à praia, onde Kikujiro deixa o menino para de lá ir buscar uma recordação, um chaveirinho de anjo. Esse chaveiro é o sinal, é o elo que liga o menino à mãe. A fissura dele, esta já não pode mais existir. A partir de então, trata-se de jogar, de participar da bela vida e aproveitar as férias de verão. Não é à toa que o filme nos é mostrado através da agenda do menino. O filme poderia se chamar "Minhas Férias", como se intitulam as redações escolares que as nossas tias de escola insistem em nos fazer redigir no primeiro dia de aula. Só que esse "Minhas Férias", que tinha tudo para ser uma tragédia, se transforma em comédia infantil. Kitano, para realizá-la, precisará de ajudantes: o cantor itinerante que leva a vida em sua camionete, dois motoqueiros metaleiros deajeitados e o próprio Kikujiro que, saberemos mais tarde, tem com sua mãe uma relação tão complicada quanto a do menino.
Kitano faz a inversão do verdadeiro artista. Se o menino vai em busca do que ele acha que quer (a mãe), a função de Kikujiro é conduzi-lo ao que ele realmente quer (não a mãe, mas a maternidade, o sentimento alegre de pertencer). Daí o filme, em sua segunda parte, ser todo constituído de jogos, de brincadeiras, numa sucessão de artifícios e disfarces para, como num megaespetáculo, trazer ao garoto um verão feliz. Se todos os outros filmes de Kitano tinham a infância como lugar privilegiado da existência (como esquecer das lindas imagens na praia de Sonatine?) como contraponto à violência dos yakuzas, em Kikujiro é tanto o contrário que acontece: a violência é o contraponto necessário à infância, no sentido em que ela implica responsabilidade devemos brincar, mas saber nossos limites , e um campo pleno de experimentações não exclui o sofrimento, pois vemos um Kikujiro melancólico quando vai à clínica em que sua mãe está internada. Depois da obra-prima absoluta que é Hana-Bi, a solução de Kitano foi partir para um formato deliberadamente menor, o filme infantil, para alcançar um resultado maior, uma evolução coerente e uma moral cinematográfica maravilhosa, radiante como o olhar de uma criança finalmente feliz para um mundo todo novo.
Ruy Gardnier