Mojica Marins Primitivo: por uma revisão potente

por Bernardo Oliveira
(Dedicado a Ivan Cardoso)

Por uma terminologia adequada: o sentido deste primitivo não possui somente uma perspectiva histórica, esta sendo acessória. Não denota "antigo", embora exemplos mais contundentes circunscrevam um período exato. Não acusará o precário, que não dispõe de equipamentos ou recursos quaisquer. Muito menos, sob perspectiva "evolucionista", trata-se de uma fase do cinema (visão que legitima a idéia de um cinema "acabado", tomando o termo em questão, identificação com um momento transitório, em direção a um suposto "cinema total"). Por que? Porque o primitivo é caracterizado menos por uma circunstância do que por uma vontade eum ímpeto desbravador. Alguns dirão "tal vontade é uma contingência do tempo inicial do cinema ou das condições de produção de qualquer tempo". Equívoco, se se pensa nas parcas condições da Hammer e seu terror estilizado; na Boca do Lixo e suas pornochanchadas; na Factory e suas experiências temporais; no "teatro filmado" de um Zecca ou mesmo de Griffith; nos filmes de Russ Meyer e nos fetiches bem direcionados do Black Explotation. Pois os supracitados reagiram a uma determinada condição e estão meritoriamente inscritos num movimento de recusa ou busca dos moldes fixos. Mas não possuem a força eficaz e assistemática de "O Despertar da Besta". Nem o sentido da montagem "seca" de "À meia noite levarei sua alma" e tantos outros. E o que se propõe aqui como revisão potente, açambarca estes limites: Mojica Marins primitivo, sim. Mas qual o valor deste primitivo? É um questão de circunstância ou de gênio? Se aqui colocamos a pergunta, ao menos reconhecemos que a) devemos inscrever José Mojica fora daquilo que se convencionou chamar "filmes thrash" (termo que se confunde com "filmes B", estes sim, intrinsecamente ligados às condições de produção); b) afirmar que, em seu patamar criativo, coabitam Stroheim, Mário Peixoto e os irmãos Lumière e Segretto. O termo primitivo e, em certa medida, a obre de José Mojica Marins, lidam com dois conceitos gerais esquecidos pelo público: mise en scéne e montagem. Em célebre artigo no Cahiers du Cinema, Jean -Luc Godard afirma categoricamente: "a montagem é a palavra final da mise en scéne". Sendo a mise en scéne, a escolha de uma proporção para o espaço fílmico, uma matéria-prima, um limite dado a ser redimensionalizado; e a montagem o fator que atribui novas proporções, desta vez para o olhar, o meio de expressão máxima do cineasta, aonde ele mostra quem é e a que veio. Sobre estes dois conceitos, Godard reitera em seu texto que "não podemos separar mise en scéne e montagem sem perigo"; e adiante, "é como separar o ritmo da melodia". Nesse ponto Mojica é o metteur en scéne que não separa, mas suprime e desafia aspectos da mise en scéne, propondo novas formas de encenação. Ou montando sua "absolvição", tão somente a partir de programas de TV e frases desconexas. Para quê? Para além do intuito de assustar, causar distúrbios na cabeça do expectador, que estrahará as (des)conexões e verá na tela um terror estranho, portador de uma dialética sobrenatural: o monstro / o mito. Ora, como encaixar esta e tantas outras execuções, numa história da precariedade antes de situá-las num contexto de inventividade? E que fique bem claro: nosso intuito não é negar que as condições de produção são determinantes, mas minimizar no processo de avaliação crítica, a má influência desta noção. Para precisar com exatidão a importância destes dois elementos, basta lembrar o querer mítico de Carl Dreyer ao filmar close ups radicalmente fechados, câmeras-pêndulo, cortes abruptos e passagens ritimicamente velozes, num movimento alucinadamente evocativo. Para indicar o quê? O medo, a raiva e a loucura... eis a força da montagem, processo criativo por definição! Cabe observar quão complicada é a reprodução dos clichês cinematográficos (por exemplo, a noção de campo/contracampo ou o plano americano, que são amplamente utilizados, tanto nas grandes produções como nos filmes para a tv e até mesmo novelas). A criação destes clichês requer o entendimento da montagem como irremediável manipulação artística. Neste ponto Mojica é mestre: elabora a todo momento novos clichês. Ou melhor, na maioria das vezes, recria-os. Desobediente cinéfilo, numa cena da parte final de "Trilogia do terror", fecha os planos claustrofobicamente e executa uma montagem paralela inacreditável, que faz a alma mais intransigente ranger na cadeira. Nesta montagem, Mojica trabalha por um terror físico, agressivo e pouco místico, característico de outro gênio. Reza a lenda que George Romero indicou a gesta dos zumbis como um acontecimento biológico.Ou seja, tirou-lhes a velha casaca mágica e assustadora e os cobriu com uma capa agnóstica. E assim, Mojica mostra, antes mesmo que Romero, seu anti-herói que tem casa, mulher e almoça em casa como em "À meia-noite...". E não o faz pela boca de seus personagens, mas pelo seu gênio criativo, manipulador de realidades e de sugestivas intuições sobre o bizarro e o estranho. Cabe ressaltar que, se podemos dizer que o primitivo não está relacionado, pelo menos diretamente, com as condições de produção, devemos arranjar-lhe outro nome. Algo que indique a pretensão de Feulliade e Flaherty; a labuta de Griffith e Stroheim; a elevação espiritual de Dreyer e Chaplin; a força crítica de Godard; o cinema como arma de Santiago Alvarez e Eisenstein e outros tantos esquecidos. Alguns poucos lembrados, melancolicamente celebrados como Mojica, deveriam ser alvo de estudos mais sérios que os coloquem, não como peças de museu ou bichos exóticos, mas como pilares vivos e atuantes deste organismo em extinção que é o cinema.

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