Notas sobre Andrei Tarkovski
— sacrifício e tempo —

por Paulo Sérgio Costa     

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Natacha Abramova em Stalker

Em uma época de cinema de ação, onde o tempo é acelerado e os efeitos especiais são a regra, pode parecer anacrônico para alguns a preocupação com um cineasta russo polêmico. Ainda assim, é bom lembrar que quando Dostoievski escrevia seus romances, uma grande moda literária francesa dominava a Europa. A marginalidade do empreendimento, portanto, não é por si só sinal de ausência de sentido. Comparo Tarkovski ao escritor de Os Irmãos Karamázovi, pois tudo indica que o papel de sua obra cinematográfica neste final de século, sob muitos aspectos, é semelhante à obra do grande escritor seu patrício1. A relevância filosófica é a mesma inclusive.

Assim como uma plêiade de filósofos foi formada pela obra de Dostoievski, é natural que os filósofos hoje se ocupem com o cinema de Tarkovski. No lugar da frívola literatura francesa do século dezenove, enfrentamos hoje a assim chamada pós-modernidade. Refiro-me especificamente a uma suposta radicalização das posições de Nietzsche e Heidegger, sem naturalmente a densidade filosófica de ambos. A destruição prática da idéia de verdade, levada a cabo pelos movimentos "pós" do planeta, conduziu a uma espécie anônima de tolerância mercadológica em relação a produção cultural, própria da sociedade global de consumo.

No contexto de uma industria cultural crescente, o locus da obra de Tarkovski é ambíguo. Afinal, é inegável que seus filmes estão presentes em todos os grandes centros internacionais de cultura. Por outro lado, a possibilidade de interagir com essa obra parece estar limitada aos raros momentos de lucidez ainda possíveis, antes do embarque frenético na luta pela "existência". Aliás, a própria noção de lucidez não responde mais aos emancipados, doravante, das ilusões da consciência. Tudo sugere apenas uma questão de gestão empresarial competente.

Os hábitos e o estilo de vida contemporâneos não parecem reunir as condições hermenêuticas elementares para a apreciação de uma obra de arte. A menos que se considere plausível as defesas da cultura de massa mais recentes2. Não pretendo discutir aqui o mérito desses esforços. Pretendo apenas elucidar alguns aspectos da obra de Tarkovski que me parecem absolutamente fundamentais para a atividade filosófica. Trata-se, em outras palavras, de uma investigação relacionada com uma certa inquietação ética.

Três momentos parecem ser significativos na última obra de Tarkovski :

1) Tempo e sacrifício.

O último filme de Tarkovski, Sacrifício (1986), introduz a idéia do sacrifício como temporalidade. O protagonista (Alexander) percorre uma trajetória que irá culminar no "sacrifício". Há um tempo inicial entre a errância do simulacro e a decisão do sacrifício. A partir de certo ponto, a primazia passa ao sacrifício. Uma inversão significativa ocorre : o tempo passa a ser o desenvolvimento do sacrifício. Antes o tempo veio amadurecendo até certo ponto. Então, o sacrifício passa a guardar o tempo, anuncia e rege as temporalidades. Leonardo da Vinci encerra a visão renascentista do mundo que inaugurou a modernidade, a autonomia do homem plasmando o seu mundo. Em oposição, a nostalgia de Alexander da pintura icônica contrasta com a secularização tecnológica da iminência da destruição do sentido. A falsidade de sua vida de ator, a temporalidade da dor, luta com a nostalgia do infinito.

2) Sacrifício e tempo.

Tarkovski afirma que "deseja resgatar o sacrifício cristão"3. Logo no início do filme há um diálogo decisivo entre Alexander e o carteiro Otto. Alexander recusa a idéia nietzscheana do eterno-retorno. A redenção se desencadeia simbolicamente no ato de amor incondicional pela humilde empregada Maria. A capacidade de perder a si mesmo no amor de Maria, "a feiticeira", regenera a secura do tempo. Uma idéia de realização através do acolhimento do outro, na sua fragilidade máxima, aponta uma dialética tênue onde do fundo da fraqueza nasce a força. A coragem de Alexander brota do seu medo, da sua solidão.

3) Redenção e tempo.

A criança e a árvore no final do filme prenunciam a plenitude, até o momento que os lábios inocentes do filho de Alexander soam : por quê? A ambigüidade do gesto revela uma tensão no centro de uma aparente reconciliação. O tempo não pode realizar a infinitude. Eis a grande lição da doença do silêncio. Alexander jurara que nunca mais iria falar em sua vida. O menino estava doente e não falava, quando é capaz de dizer algo afirma : "No princípio era o Verbo". Em seguida pergunta o porquê e cala.

A interpretação desses três momentos ganha relevo, quando percebemos que a liberdade e a possibilidade do "mal radical", no mundo esvaziado completamente de todo o sentido, rondam as alternativas da vida. Uma visão trágica num sentido não nietzscheano4 enseja o paradoxo da liberdade já anunciado por Dostoievski. A "Lenda do Grande Inquisidor", nos "Irmãos Karamázovi" suprime a liberdade, para evitar o mal, gerando mais mal ainda. O "Homem do Subterrâneo" afirma a liberdade absoluta, deseja ser desagradável, não compactua com a "felicidade de formigueiro". O resultado também é a disseminação do mal.

Tarkovski parece estar propondo uma terceira vereda para o paradoxo. O sacrifício, aparentemente a negação absoluta da liberdade e também a afirmação absoluta da liberdade, é o momento possível da redenção. O caráter não social desse ato lembra Kierkegaard. Um estranho amor, não erótico, mas próprio do ágape cristão está na origem, no limite não discursivo da existência. A reconciliação é Ética, no sentido que implica uma superação da esfera teórica pelo reino da praxis na gratuidade. Lembrando um pouco Angelus Silesius : "A Rosa não tem porquê, ela brota porque (weil) brota, não se importa consigo, nem se alguém a vê". A não-discursividade da ética é pré-reflexiva, no sentido de que é anterior à capacidade demostrativa da filosofia.

A liberdade se abisma na experiência do amor cristão, muito pouco prático. Aliás, a alma russa em geral é sempre muito pouco prática. Tarkovski vem desafiar a conformidade da nossa industria cultural, muito prática por sinal. Quem sabe a experiência da gratuidade não seja tão rara assim. O abismo da liberdade humana, tão condicionado hoje pela eficiência, certamente é sensível a um desafio maior. Tarkovski permanece, apesar de tudo, um profeta da liberdade.

1. Cf. ELTCHANINOFF, Dostoïevski, Roman et philosophie, Paris, PUF, 1998. Para a questão da relevância filosófica da obra de Dostoievski.
2. Cf. CARROLL, A philosophy of mass art. Para uma das mais competentes defesas da arte de massa. Oxford University Press, 1998.
3. Cf. TARKOVSKI, A propos du Sacrifice, Positif 303, Mai 1986.
4. Não se trata em Nietzsche de uma tragédia cristã, mas sim grega.

 

 

 


 

 

 


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