O Filme de Nick e a transcendência
do cinema-verdade

por Eduardo Valente

 

Existem filmes e filmes, que dão panos para manga, e horas de discussão em mesas de bar. Existem as discussões estéticas, as discussões ideológicas, as discussões éticas. Por outro lado, existe "O Filme de Nick", que não se deve discutir.

O crítico brasileiro Francisco Luiz de Almeida Salles, um dos poetas da crítica cinematográfica, escreveu em 1965 que o cinema-verdade, diferente do cinema verité de Jean Rouch, era uma categoria que ultrapassava questões relacionadas ao estilo, a forma de filmar, a dogmas. Para Salles, o cinema realista ingênuo de Lumiere era como a filosofia de Parmênides, segundo a qual o mundo é uma realidade fora de nós, física. Já a mágica de Meliés indicaria a apreensão da realidade pelo espírito, como Heráclito, sem a necessidade do físico. Salles escreveu que "o cinema não é nem parmenídico nem heracliteano, é a inclusão do instante na duração, a valorização do estático pelo dinâmico, a recuperação, pela fusão, do mundo e da consciência". Ou seja, ele era por um cinema que, ao mesmo tempo que respeitasse o mundo como espetáculo e o mundo como consciência, oferecesse um campo novo em que o espetáculo fosse consciencializado e a consciência fosse um elemento do próprio espetáculo. Assim, o cinema seria um espelho da existência, entendendo-se esta não só como o mundo visto pelo espírito nem só o espírito refletindo o mundo, mas sim o mundo mais o espírito. O bom cinema seria então aquele que aliasse isso tudo, o cinema seria a vida ( não custa lembrar que a analogia data das origens do cinema, já que junto com o cinematographo e o kinetoscópio, surgiu o vitascópio, o bioscópio e também a Biograph ).

Pois bem, de quanto em quanto tempo nós podemos dizer que passamos por uma experiência da magnitude e beleza que Salles almejava? Segundo ele, isso estava em Rouch, em Reichenbach, em Fellini, em Godard, em Antonioni, em Chris Marker, em Leacock e Rosi, entre outros. Pois eu o afirmo, isso está no Wim Wenders de "O Filme de Nick", talvez a mais visceral experiência cinematográfica de todos os tempos.

Para quem não sabe, O Filme de Nick é o resultado da ida de Wenders com uma equipe de filmagem para conviver com o mestre do cinema Nicholas Ray, quando este se encontrava extremamente debilitado por um câncer. A idéia surgiu naturalmente numa conversa entre Ray e Wenders enquanto este estava na pré-produção de Hammett. Nenhum dos dois sabia bem o que queria com isso, ou o que aconteceria. Ainda bem, pois o que sai dessa experiência não se explica. O filme ultrapassa e acaba com todas as fronteiras e definições do que são gêneros de cinema, do que é documentário, do que é ficção, do que é narrativa cinematográfica. Pega as polêmicas ancestrais de Kracauer e Arnheim, de Deren e Bazin, amassa-as bem, e joga no lixo com a brutal força que emana do fenômeno da filmagem-montagem, este tal de cinema.

Desde o Nanook de Flaherty que o documentário já não era um gênero puro, e que ninguém mais entendia o que era realismo em cinema. Ainda assim, o antipático Kracauer, em plena entrada na década de 60, postulava que o cinema só é cinema quando capta a realidade. Reproduzir o real era a missão sagrada do cinema para ele, e não havia outra forma de se ser "cinemático". Mas, o antipático alemão, quando lido nas entrelinhas, nada mais era que uma criança fascinada impondo, irascível, a força da sua fascinação sobre os outros. Sim, porque se Kracauer tentava argumentar que o Expressionismo levou ao nazismo pelo seu incentivo à fuga da realidade, não era por maldade ou ingenuidade pura e simples. Era porque para Kracauer a realidade era fascinante demais. E ele construiu uma teoria para poder viver ao máximo seu fascínio com o movimento das folhas, o vento nos cabelos, o inesperado e incontrolável do ambiente natural. E dentro desta sua visão, algo que ousasse desprezar toda esta beleza era impuro. Há no fundo uma grande beleza e poesia no estoicismo de Kracauer. Só que, é claro, como teoria suas idéias iam pouco longe dentro da complexidade do que é ou não é o real no cinema. Ele mesmo chega a admitir que, muitas vezes, uma encenação bem feita do real era mais crível que o próprio fato. Então, a encenação não era o problema, desde que fosse para "encenar o real". Não é fabuloso o poder desta expressão??

A visionária americana Maya Deren tinha uma visão mais bela ainda. Ela também acreditava no realismo da imagem fotográfica/cinematográfica, mas não nas encenações do real como o cinema narrativo faz ou no próprio documentário. Deren argumenta que a força do cinema está na câmera poder captar a realidade, mas na montagem esta realidade poder ser completamente subvertida em algo etéreo, num sonho, num pesadelo, numa viagem. Sua vanguarda tinha a base sempre na imagem realista, pois só esta fora de contexto real poderia causar estranheza. Assim, ela dizia que o slow motion, a projeção de trás para frente, entre outros efeitos, só podem ser inovadores porque pegam a realidade e subvertem a noção do real, do tempo.

É claro que em plenos anos 90 nossos olhos cinematográficos já se encontram em outro grau de apreensão, com os limites do abstrato e do onírico, do documentário e da ficção sendo rompidos nas mais hollywodianas produções. É uma época que já viu tudo, já absorveu tudo, já usou tudo, e por isso mesmo parece insensível a tudo. Como chocar esta nova subjetividade, como fazê-la balançar?? Somente voltando ao mais básico instinto humano: o medo da morte. Mas a morte já não faz parte do banal?

Pois Wenders e Ray chacoalham isso tudo, e sem precisar teorizar tanto. Se esperaria que o filme fosse acusado de oportunista e aproveitador por mostrar o espetáculo de uma morte. Mas ele não se nega a discutir esta questão seguidamente. Ray era quem mais queria ser filmado. Isso porque sua vida era o cinema. Estar cercado por aquela equipe, estar filmando era de fato uma terapia. Mas, ao mesmo tempo, como se filma alguém morrendo? No início vemos Ray acordando com fortes dores. Wenders dorme no sofá. A reação natural é: mas isso é claramente encenado!! Como a câmera poderia estar lá ao lado de Ray, com a luz perfeita, o movimento exato, se Wenders estava dormindo. E como filmaria ele nessa montagem pararela se só havia uma câmera?? Não há problema, no plano seguinte fica claro que, sim, aquilo era encenado, não há porque esconder isso ( como tantos documentários "inocentes" o fazem ). Sacrilégio?? Pegar um homem à beira da morte e fazê-lo encenar a sua dor para nós?? Pois daí para diante é assim que o filme segue: na fronteira do que é encenado, e do que é verdade. Mas afinal, O QUE É A VERDADE??

Não importa. O que importa mesmo é que há algo de maior, de fora de controle acontecendo em cada take: o câncer de Nick. E este não se encena. O filme vive sob este dilema, como diz Wenders. O filme é confuso, irregular, sem ritmo. O filme não se decide por um caminho, é caótico. Ou seja, o filme está de frente com a morte. Mas não a morte morta, a morte viva, a morte que dá sentido à vida. E o caos e a confusão não podem ser escondidos pois não é assim que somos perante a morte? Wim Wenders encena cenas oníricas, filma cenas reais, lê o diário de Nick. "É um filme sobre morrer. Não é um filme sobre morrer" reafirmam os envolvidos. É a grandeza do cinema-verdade, a junção do espetáculo da vida com a consciência, espírito+corpo, a lente orgânica que joga o espectador na grande aventura sem nexo que é viver e morrer. Deliciosa e aterradora.

Acima de tudo O Filme de Nick é também um filme impregnado pelo amor ao cinema, e por isso mesmo ele ama a vida. O cinema deve SER a vida, mas não pelo realismo. Almeida Salles diferenciava seu cinema-verdade do "cinema verossímil" que era a encenação romanesca do real; e do cinema real que busca mostrar a verdade, seja em ficção ou documentários ( neo-realismo incluído ). O cinema-verdade era maior do que estes por ser uma expressão completa do que a passagem dos seres humanos pela terra: não só carne, nem só espírito, mas uma luta constante pelo equilíbrio entre ambos.

"Quanto mais chegamos ao fim, mais perto estamos de reescrever o começo" diz Ray, referindo-se ao seu processo de filmar sem roteiro pronto. Que metáfora melhor para a vida dele, para qualquer vida? A realidade é fantasia, segundo ele, e por isso não há o que temer. Ainda assim ele teme morrer. "Morrer e não mais respirar". Sim, porque segundo ele todos nós desejamos experimentar a morte, desde que possamos continuar respirando e vivendo. Só frente a frente com ela passamos a temer não a morte, mas o fim da respiração.

Quanto mais se pensa então, mais o cinema transcende explicações. Mais Maya Deren está certa. O realismo da imagem é o que conta, mesmo que para subvertê-lo sempre. Quando em Romance um rame-rame psicologizante e feminista tenta compreender a grandeza transcendental do sexo a partir de racionalismos, nada disso importa, pois há um pau duro em cena que desafia o discurso. Há uma penetração e o sublime que não consegue ser expresso. Qualquer filme pornô é rasteiro e falso até certo ponto, mas por um milésimo de segundo aqueles rostos serão tomados pelo verdadeiro sublime-patético do gozo. A vida é maior. Da mesma forma, o discurso autoritário e pretensamente inteligente, a forma "ousada", a música catártica (quase Faustão) e a limpeza ideológica de um Nós que Aqui Estamos por Vós Esperamos não consegue apagar a força de um homem que se joga da Torre Eiffel para voar, nem de um rosto insano na guerra. O filme conta a história do século somente "através de imagens" nos informa a divulgação. Então para que tantas letrinhas na tela?? Para que a música catártica?? Nada contra a apreensão pessoal do real, pois só existe o real pelos olhos de alguém. Mas, para que manipular o espectador?? Jafar Panahi consegue juntar a complexidade do real e do encenado em O Espelho, usando dos meios mais desconcertantes para cruzar fronteiras, seja pela combinação de som e imagem, ou pela sua metalinguagem que se finge de ingênua. Ao tematizar, acima de tudo, a situação da mulher no islamismo, ele o faz com artifícios e a junção necessária de humildade (não comando a verdade, só finjo) e arrogância (eu manipulo o que você vê, mas quem sente é você...).

Realidade ou encenação? Arte ou reprodução técnica? Cinema ou vida? Pois tudo isso vai por água abaixo quando surge na tela o rosto de Ray no seu último plano, filmado pouco antes de sua crise final. Dor, desespero, ironia, medo, confusão, compreensão, tranquilidade. Tudo em um rosto. O cinema vira vida. E por um segundo tudo isso que os Lumieres começaram se justifica. Com a fugacidade do acender e apagar de um fósforo, com a beleza de um navio chinês pelo Rio Hudson, com a complexidade de uma vida inteira em um olhar. E viva o cinema-verdade, ainda hoje a única e melhor expressão artística de uma vida humana.

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