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O Mecanismo das Maçãs Podres

por Christian Caselli

Stanley Kubrick morreu deixando uma marca diferente na história do cinema. Mesmo considerado eclético na escolha dos gêneros (terror com O Iluminado, drama em Lolita, guerra em Glória Feita de Sangue e Nascido para Matar), seu estilo tornou-se inconfundível devido a duas características: seu perfeccionismo técnico e sua visão, digamos assim, na falta de um termo melhor, "pessimista" da vida. Explicando as aspas: sendo uma pessoa pessimista, qual sua motivação em expressar críticas através de obras de arte? Talvez porque Kubrick visse alguma esperança de melhora na Humanidade, ou, quem sabe, queria passar pela vida tendo certeza que "tinha feito sua parte". Ou nenhuma-destas-alternativas, todas tão óbvias.

Para expressar melhor este "pessimismo", Kubrick recorreu muitas vezes à ficção científica. Foi um dos primeiros autores cinematográficos a levar o gênero a sério, dando-lhe status de metáfora. Sua visão crítica não está tanto em 2001, sua obra-prima inegável, porém é presente em Dr. Fantástico e, sobretudo, em Laranja Mecânica, o mais violento de seus filmes.

Baseado no livro homônimo de Anthony Burgess, trata-se das desventuras do anti-herói Alex, jovem líder de um grupo de delinqüentes que veneram a hiperviolência. Kubrick optou por narrar a história não em um "futuro próximo", mas numa ação atemporal em um local não definido. Vendo hoje, o filme conserva um charme interessante: nota-se perfeitamente toques típicos do final dos anos 60 e começo dos 70 (o cabelo das pessoas, o colorido dos objetos) e o que há de futurístico, deixando tudo ainda mais perdido dentro da imaginação do espectador. Alex não escuta a música da moda, e sim Bethoveen (às vezes com um arranjo mais eletrônico, é verdade) e Singing in the Rain, numa destruição completa a memorável cena de Gene Kelly. Quanto ao "país" onde tudo se passa, sabe-se apenas que seus habitantes falam inglês, porém as gírias dos hiperviolentos tem todo um sotaque russo. Estaria esse futuro, ou melhor, esse elo perdido já dentro da dominação do comunismo? Confesso até hoje desconhecer as posições políticas de Kubrick, porém noto facilmente que, pelo menos, ele não era um direitista ortodoxo nem comunista inveterado (uma dádiva, já que na época quase todos os "malditos" eram).

Porém, o tema básico abordado no filme é a violência. Quando ela começa? Quem é o culpado por ela? Até onde ela vai? Como terminá-la? O homem quer terminá-la? Não se sabe porque aqueles jovens idolatravam a hiperviolência (talvez por sadismo, talvez por moda), mas sabia-se que eles são um fruto degenerado do sistema e que, mesmo não tendo uma postura crítica em seus atos, eles eram um incômodo para a sociedade. Como estirpá-los, então, do convívio social? Sendo mais violento do que eles, diriam alguns (para não dizer "vários"). Alex acaba preso e é submetido a um tratamento de vanguarda no presídio: injetam-lhe uma droga novíssima e logo depois é obrigado a ser cenas ultraviolentas num cinema. No início, nosso herói até gosta do que vê, porém a aversão às imagens vai lhe dominando. O tratamento "dá certo": Alex sai da prisão como um cordeirinho capaz de lamber a sola do sapato de quem lhe agride. Aqui começa então uma grande sacada de Laranja Mecânica: logo quando ele sai do presídio é que sofre as conseqüências típicas de uma sociedade opressora: abandono dos pais, abuso da violência policial, etc. Ou seja, provavelmente os "rebeldes sem causa", grupo onde se enquadrava Alex, também fazem parte deste inevitável quadro social. Repetindo: eles são um fruto degenerado, mas, de qualquer forma, ainda um fruto.

A vingança de uma das vítimas de Alex é a gota d’água da nova vida social do herói. A tortura é tanta que Alex acaba se jogando de uma janela e vai parar no hospital. Depois disso, o que se presume é que todo o tratamento penitenciário foi por água abaixo, já que no pensamento de Alex só figuram imagens violentas. Sua tentativa de suicídio é noticiada por toda a imprensa. O representante da situação vai ao encontro de Alex para que mostre a mídia que está bem. De fruto degenerado, Alex passa a fruto subsidiado.

A vingança da vítima, por mais "entendível" que seja, é também a gota d’água do filme. Por que a vítima não reagiu contra o que fez Alex se tornar hiperviolento e sim no próprio Alex? Talvez porque, além de estar sendo regido por seu estado emocional, este homem nem desconfie de quem seja a verdadeira culpa. Se é que há culpa. A questão é que na sociedade onde vivem os personagens do filme, assim como a nossa, o primeiro ato que descambou na "obrigação" de uma vingança se perdeu. Quando tudo começou a dar errado? A resposta talvez esteja nos macacos do filme anterior de Kubrick, 2001. Fora isto, várias questões são levantadas, como a "vulgarização" do sexo (outro termo não tão adequado), representada pela direção de arte e pela cena de sexo em câmera rápida (uma antecipação à cultura fast-foward dos pornôs em vídeo), a violência (literal) do falo, o homossexualismo no presídio, e muitas outras, neste filme tão complexo quanto polêmico. E quanto perfeito também.

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