Os fluxos do amor

por Ruy Gardnier     

"O que faz parte do filme é se interessar mais nas pessoas do que no filme, nos 'problemas humanos' mais que nos 'problemas de mise-en-scène', para que as pessoas não passem ao lado da câmara sem que a câmara deixe de passar do lado das pessoas."
Gilles Deleuze, sobre o cinema de Cassavetes

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John Cassavetes e Gena Rowlands em Amantes (Love Streams)

1. O que é atuar? Sim, pois é isso a primeira coisa que vem à cabeça quando vemos um filme de John Cassavetes. Podemos voltar ao jovem ator Guillaume Meister: "Um  ator, hmm, é difícil dizer... sim, sim, sou um ator, hmm... vou mostrar uma coisa a vocês, para lhes dar uma idéia do que é o teatro; os jovens estudantes chineses tinham feito uma manifestação diante do túmulo de Stalin em Moscou, e naturalmente os policiais russos bateram na cara deles, espancaram-nos; no dia seguinte, em sinal de protesto, os estudantes chineses reuniram-se na embaixada da China e convocaram todos, todos os jornalistas da imprensa ocidental, gente como Life ou France-Soir ou assim como eles e um jovem chinês chegou com o rosto inteiramente coberto de ataduras e curativos e começou a berrar: olhem o que eles fizeram comigo, esses porcos revisionistas. Então, todos esses mosquitos da imprensa ocidental precipitaram-se em torno dele e começaram a metralhar-lhe com seus flashes enquanto ele retirava suas ataduras, e esperavam ver seu rosto completamente dilacerado, ou coberto de sangue ou cheiro de... ou cheio de coisas assim, e ele retirava suas ataduras assim, bem devagar, enquanto os outros fotografavam-no... e retirou-as... e nesse momento, perceberam que ele não tinha absolutamente nada. Não, não tinham compreendido que era teatro, um verdadeiro teatro, uma reflexão sobre a realidade, ou seja, algo como Brecht ou Shakespeare."1 Atuar é instaurar um happening, uma realidade que só se torna possível graças a uma atitude deliberada do ator em inventar uma persona e perseguir todos os seus limites. E realmente os filmes de Cassavetes apresentam sempre esses tipos de happenings: Gena Rowlands em Opening Night e A Woman Under The Influence, Seymour Cassel em Assim Falou o Amor, o próprio Cassavetes em Opening Night, todos em Shadows, filme feito estritamente a partir das experiências dos atores. A loucura, ou de qualquer forma o comportamento anti-social, pode ser o ponto de partida para o happening, aliás desenvolvido de forma até esquemática: existe um momento zero de normalidade, onde o personagem opera tranqüilamente; de uma hora para outra, ele começa a praticar um certo tipo de delírio, um ato contínuo, uma performance que segue até os seus limites até que algo a faça parar. Esse algo às vezes é a realidade, às vezes é a polícia da razão. Nesse sentido, Cassavetes estabelece uma antinomia essencial entra arte e poder instituído: a arte pára no momento em que um outro valor da sociedade, o valor dos mecanismos de controle, passam a fazê-la parar. A cultura contra a arte. A partir do lugar da arte, Cassavetes estabelece uma relação interessante com a loucura2: o lugar da arte é o lugar do louco, é o lugar daquele que não fala a fala da sociedade. A linguagem passa a representar na arte um papel puramente experimental, uma quase-fala; de qualquer forma, uma fala desligada dos moldes de comunicação da linguagem social.

2. O que Cassavetes experimenta é o corpo. Os atores não são tomados subjetivamente, como essências interiorizadas; antes eles são tomados como corpos inteiros, puras intensidades. Daí a função incrível desempenhada pelos primeiros planos focados nos corpos dos personagens. Não é uma função expressionista, como as imagens de Bergman ou Tarkovski. É antes uma função da indiferenciação, como quando colocamos um livro tão perto de nossa vista que somos incapazes de reconhecer qualquer palavra por estar perto demais. A câmara não desenvolve um jogo virtuoso com aquilo que ela filma; ela registra os atores no ato da representação, no ato da improvisação. A câmara de Cassavetes não cria — ela capta, refigurando. A esse respeito, seria interessante observar como a câmara de Cassavetes cria sempre um espaço contínuo para que o ator evolua, como um palco por onde o ator possa tranqüilamente deslizar sem que a câmara deixe de enquadrá-lo. E realmente os intérpretes se movimentam o tempo todo, a liberdade é plena para eles. Mas, para irmos além da noção comum de ator, seria preciso falar um pouco da interpretação tanto do ator Cassavetes quanto de sua direção de atores. Segundo Thierry Jousse3, sua formação com Lee Strasberg não foi simplesmente uma assimilação de suas técnicas, a saber, de interiorização do personagem. Ao contrário, para Cassavetes, a interpretação tem um sentido musical, como um cantor que interpreta uma música. Não é como numa sessão mediúnica, onde o médium deixa o espírito entrar. O ator para Cassavetes não é um medium; ele é o começo e o fim, a atuação começa e termina nele. O medium é justamente o meio, o personagem. Não é vendo o que o ator tem a ver com o personagem que o ator cassaveteano vai conseguir realizar seu trabalho; é antes o personagem que tem que perceber o que aquele  corpo de ator pode realizar nele. Daí conseqüências óbvias: (a) o personagem não é jamais aquilo que está num roteiro prévio; (b) o filme, antes de terminar, não pode ter um desfecho muito determinado para o realizador; e (c) não são os personagens que dão o tom do filme, e sim o casting.

3. Fica claro notar que, nos filmes de John Cassavetes, os filmes não acabam nem no roteiro nem na filmagem. Hitchcock dizia que nem precisava estar presente nas filmagens, tamanhas indicações dava a toda a equipe; Hawks dizia que não precisava montar seus filmes, uma vez que fazia só uma tomada de cada cena e o montador só tinha que colar os pedacinhos. Mas com Cassavetes a coisa é diferente: o filme não se realiza no roteiro, muito menos na filmagem. O filme muda a cada etapa, mas ele só toma a sua feição definitiva na montagem. Daí seus filmes serem tão atribulados devido a problemas desse tipo: Shadows teve duas montagens diferentes, uma virtuose, subjetiva (que não agradou Cassavetes) e outra de ator (a definitiva); para Faces, rodou 125 horas de película e o filme teve duas versões, uma de mais de 200 minutos (dada como perdida) e uma definitiva, que dura apenas 130 minutos. Não é muito difícil entender por que Cassavetes trabalha assim. Mesmo fazendo ficção, Cassavetes faz cinema direto. Através dos atores, o que importa é capturar a realidade, não pelo tempo extensivo, da duração cronométrica, mas pelo tempo intensivo, o tempo do acontecimento. O casamento em Assim Falou o Amor é exemplar: a cena começa com cada mãe sentando de um lado da capela. Vemos o padre entrando junto com o noivo. De branco, aparecem a amiga, dama de honra, e logo depois Minnie, num vestido branco de noiva, que vai até o altar. A duração é quase em tempo real, apesar da montagem não estar interdita (o tempo intensivo não se preocupa com a montagem interdita). O padre começa a fazer o casório, e pergunta a Seymour se aceita Minnie. Vemos milimetricamente Seymour dizer que sim mas não o famoso "I do". O padre, então, corrige-o, para que diga a promessa de maneira correta. Depois do "I do" de Seymour, é a vez de Minnie aceitar. Mas o padre não lembra o nome de Minnie. Ele cava por baixo da batina um papel, mas o papel que ele tira não revela o nome da noiva. Minnie precisa dizer seu nome, ao riso completo da capela, à exceção do padre. Quando o padre fala "Minnie", Cassavetes acha por bem que a cena acabou e que não há mais nenhum interesse em ver o padre falar o nome correto para os dois se beijarem. A cena seguinte mostra várias crianças brincando no jardim junto com Seymour, Minnie e as duas vovós. Não é nem a ordem da extensão que interessa, muito menos a falsa ordem do acontecimento. Os apaixonados sabem que seu primeiro dia juntos é muito mais importante que qualquer outro dia, incluindo o do casamento. Existe o acontecimento da instituição, mas este está longe de interessar a Cassavetes. Sua ordem intensiva, a do acontecimento, se revela em cada momento, quase nietzscheanamente, como o eterno retorno do intensivo.

4. Em seus filmes mais maduros e independentes, onde Cassavetes já pôde desenvolver todo seu trabalho de direção sem qualquer constrangimento de produção (Gloria e Big Trouble tiveram problemas por serem produção de Hollywood — Columbia, mais especificamente), surge uma proposital disposição dos atores que rasga absolutamente a representação. Em Opening Night e Love Streams, tudo em cena como que fecha o espactador, ele pára de ser um espectador privilegiado para ser antes uma testemunha de algo que acontece sempre sem ele. Na peça que é encenada em Opening Night, a câmara é colocada entre os espectadores do espetáculo. Como qualquer um, a câmara encontra obstáculos à visão da peça: aparecem sombras que ocultam partes da cena, uma cabeça do sujeito na cadeira em frente que se levanta para se postar mais agradavelmente. Mas é nos momentos mais dramáticos que esse efeito mais atinge seus objetivos. O fechamento do espaço em si mesmo causa um enorme sentimento de vazio que respeita o eixo dramático da cena. As imagens de Love Streams em que mais da metade da tela é tomada por uma parede ecoam e continuarão a ecoar por muito tempo, porque elas se encaixam perfeitamente no vazio profundo que se estabelece entre os irmãos Sarah e Robert. Love Streams é um dos maiores filmes feitos nos últimos vinte anos. A tradução em português é perfeita: Amantes. O filme poderia também chamar-se O Amor Louco, não tivesse esse nome sido título de um filme de Jacques Rivette. Pois é exatamente o excesso de amor que faz com que o amor não possa encontrar um receptáculo onde se encaixar. Daí a relação que Sarah estabelece com os animais, único meio para poder purgar todo o amor. Nesses dois filmes, a experiência do espectador é algo como um excesso, uma coisa desnecessária ao transcurso da ação. Existe identificação com o personagem, mas não através da forma hollywoodiana, a do luxo e do belo gesto. A identificação opera no nível do sentimento, do amor. Nos identificamos com eles porque amamos assim também.

5. A loucura desempenha um papel interessante nos filmes de Cassavetes. A loucura é o pathos. E o amor é o pathos. Eles podem não ser os mesmos, mas fazem parte de um mesmo fundo. Do pathos sai a quebra da linguagem. Não que ele não produza linguagem; o que o pathos opera é a destruição da linguagem representativa, da linguagem da instituição para uma linguagem intensiva do acontecimento. A linguagem deixa de ser comunicação para ser acontecimento. O louco e o apaixonado (e Moskowitz, em Assim Falou o Amor, mesmo que não seja nem um nem outro, é intensivo também, mas por ser sua antissocialidade também um pathos) falam de uma outra forma. Não que com isso eles não criem instituição; mas a questão não é essa: a questão para Cassavetes é como constituir uma instituição que seja intensiva. A Mabel de A Woman Under The Influence enlouquece porque não pode demonstrar o amor que sente; mesmo o casamento não permite que ela tenha uma imagem social que possa coincidir com sua vontade de amar. A instituição, aliás, é mais que desejada: Minnie e Moskowitz terminam o filme casando na igreja. A oposição instituição X amor não funciona em Cassavetes. Ao contrário, o amor quer instituição, mas é o mundo sem amor que não quer que o amor exista. Daí a noção de marginalidade na qual o autor se inscreve. Pois o louco, o apaixonado e o artista produzem linguagem fora das amarras. Essa linguagem é forte demais para ser aceita pelo mundo institucional. À medida que o louco ama e o apaixonado é louco, a artista é louco e apaixonado, porque produz uma linguagem que não mais representa, só apresenta. Uma linguagem viva, longe da falsa imagem da sociedade. A sociedade finge; é preciso que o ator não finja, é preciso que ele atue. Só atuando ele vai poder estar criando linguagem; só atuando ele vai poder ser artista.

1. Guillaume Meister é interpretado por Jean-Pierre Léaud em A Chinesa, de Jean-Luc Godard, 1967.
2. Thierry Jousse, em John Cassavetes, estabelece uma relação entre o diretor de Shadows e Antonin Artaud. Ed. Nova Fronteira, 1992.
3. Op. cit., cap. I.

 

 

 
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