No cinema de Lars Von Trier, nada
é simplório. Tudo adquire múltiplos significados, alguns até inesperados. É o que
igualmente ocorre com o Dogma 95, manifesto que não é nem profissão-de-fé nem
publicidade descarada, mas alguma coisa que está no meio, com diversos sentidos a
atribuir. O mesmo se pode dizer a respeito do gênero nos filmes de Lars Von
Trier: as regras aparecem para ser quebradas os sinos em Breaking The Waves,
o burlesco em The Kingdom... Há em seu trabalho uma estudada iconoclastia, uma
provocação por vezes conjugada com o humor, mas que fique bem claro: nada está nos seus
filmes "de brincadeira".
Os Idiotas é a história
de um grupo de conhecidos que habitam a mesma casa para praticar o que eles chamam de pirar,
ou seja, se fazer de deficientes mentais diantes dos outros e de si mesmos. Qual é o
sentido disso. No filme, as opiniões entre os próprios membros oscilam: "Vocês
fazem isso para debochar das pessoas", "Encontrar o idiota interior",
etc. Mais que as explicações exteriorizadas pelos personagens, o que deve nos mostrar a
razão da idiotia deles é o filme.
Tipo de filme-terapia, Os
Idiotas é uma experiência coletiva de autodescoberta no plano individual. Desse
ponto de vista, ele é assemelhado a A Chinesa, de Godard: um período de sonho
niilista, um período de falso "mundo perdido", de fim de achado que resulta ser
apenas o primeiro passo para uma caminhada maior. Sabemos desde o início que a
experiência acabou: vemos as entrevistas dos participantes depois do período. Mas o fato
de ter acabado não quer dizer meramente que tenha dado errado. Muito ao
contrário, é o próprio filme que vai mostrar isso em outro plano.
No plano coletivo, Os Idiotas é
um manifesto. Um manifesto do homem como demasiado humano. Há um fator-Salò, um
fator-Freaks no filme de Lars Von Trier: é preciso mostrar os limites da
humanidade para que os seres humanos posam se reconhecer melhor. Daí em alguns momentos
também ser o mais belo filme a falar da exclusão: a marca física dos idiotas é notada
sempre com um misto de condolência e nojo por quem está fora do grupo e acha que eles
realmente são deficientes; um dos momentos mais fortes do filme (e também o que revela
tamanha fonte de ódio e niilismo do personagem Stoffer, interpretado por Jens Albinus) é
quando o oficial da prefeitura tenta fazer com que eles se mudem de município. Stoffer pira
no meio da discussão, tira toda a roupa e corre atrás do carro da prefeitura
chamando o oficial de fascista.
Mas se a expressão mais raivosa do
filme é dada por Stoffer, a expressão mais apaixonante e apaixonada é dada pela
personagem de Karen (interpretada por Bodil Jørgensen), espécie de reencarnação da
Bess de Breakng The Waves. Ela é o membro mais novo do grupo, e o filme começa
quando num restaurante ela é como que raptada por Stoffer em uma de suas pirações.
Karen conhece o grupo a partir daí. Ela de imediato se apega a eles, mas só consegue
pirar pela primeira vez depois da primeira hora de filme. Ela é a figura mais
enigmática, mais instigadora do filme. Tipo de freio moral e ao mesmo tempo a idiota mais
veemente, é ela que nos dá a dimensão do filme: o grupo já acabado, ela retorna para
sua casa com a intenção de pirar, coisa que metade dos membros não conseguiu
fazer. Lá observamos as reações de sua família, primeiramente à sua presença e
depois à sua idiotia: um tapa no outro, um banho de água fria em tudo que não
é compreensível pelos valores instituídos.
Mas se Karen é o manifesto externo
dos idiotas, aquilo que dá a eles a grandeza dos excluídos (e nisso é preciso notar que
não se trata de forma alguma de um filme reacionário, e sim de obra da mais bela
esquerda), o manifesto interno é a cena de amor que resulta de uma grande suruba
promovida por Stoffer. Como uma metonímia do filme, partindo do feio para alcançar a
beleza, os apaixonados Josefine e Jeppe saem do momento de entrega ao grupo para, num
momento de candura, fazer amor pirados. A câmara de Lars Von Trier deixa de se
movimentar para vê-los melhor. Eles são filmados em close, apenas do tronco para cima, o
suficiente para que vejamos em seus rostos um amor de idiotia, um amor da
ingenuidade. Contraponto a todo o filme, junto com a volta à casa de Karen, essa cena
mostra toda a grandeza do cinema de Lars Von Trier: trazer o sublime a partir do feio, do
mexido demais; a beleza do perto demais, da indiferenciação extrema (a indiferenciação
de um foco errado, do grão grande demais); a crença dogmática nos sentimentos humanos.
Ruy Gardnier
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Sabe-se que Dogma
95 é o nome de um manifesto (um grupo? um produto?) que determina regras para os filmes
produzidos pelos criadores e signatários. Acertei? Não sei. Sem referências, procurei o
nobre amigo Ruy Gardnier, que teceu poucas palavras sobre o assunto: informações
referentes a movimentos de câmera, iluminação e fotografia despojadas, enredos
cotidianos e outras xurumelas, prontas a simbolizar certa "simplicidade". Mal
informado, levei o assunto à baila com outros amigos e, desiludido, constatei um imenso
ponto de interrogação nas gentes: uns gostam do tom "informal", tipo festa no play
em VHS; outros não perdoam pelos mesmos motivos.
Achei a proposta de
um manifesto, com palavras de ordem e tal, um tanto anacrônica. Imaginem: a era decreta o
fim dos modos e um sujeito, ou melhor, quatro, determinam um destino estético via
"movimento", "manifesto", "ruptura", etc. Para lá de
interessado, fui conferir Os idiotas e confesso que saí decepcionado. Ao longo da
imensa projeção quase duas horas! aportaram nas idéias a palavra
"desperdício" e "ingênuo" como a muito tempo não me ocorria sobre
um filme (pensei muito em Woody Allen, por exemplo).
A história da
turma que pretende chocar a burguesia fingindo-se debilóide, confesso, me pareceu, no
máximo, um Forrest Gump intelectualizado e entediante. O invólucro estético
determinado pelo manifesto dá o tom. Como se pudéssemos opor aos caprichos burgueses, a
apologia da debilidade mental. Como se pudéssemos opor à pasmaceira tecnológica, o
despojamento do VHS e o naturalismo da representação. Me engana que eu gosto. Não, não
gosto e não para por aí.
Tem um personagem
no filme, se não me engano, dono da casa onde os meninos maluquinhos passam as férias,
que é uma graça. Vejam só: lá pelas tantas o sujeito toma ares nietzscheanos, tipo super
homem que tudo pode. Não tem dó nem piedade por viva alma, nem aspira um bom
convívio. Parece a Letícia Spiller na novela das oito. E na hora da transgressão,
quando o filme toma ares Danny Boyle (Cova Rasa e Trainsppoting), ele clama:
suruba!; e quando pira, ele pira mesmo: tira a roupa na rua! Ora, faça-me o favor!!
Não me parece
suportável prosseguir nessa busca pelo "novo", a menos que se aprenda a
achá-lo. As grandes novidades deste fin-de-siécle, com exceção do drum'n bass e
do Nirvana, são esses filmecos que, em sua grande maioria, assinalam um niilismo de
boteco, travestido de vanguarda e vazio como um cofre público. Por trás da situação
armada movimento, manifesto, ruptura,... o sentimentalismo barato que comove
como guloseima americana. E esquematizado para servir daqui a 50 anos nas enciclopédias
como "movimento surgido nos meados, blábláblá..."
Falar de idiotas não me
parecia tão fácil: muitas vezes temos que provar sua culpa. Se você gostou, ótimo,
não perdeu dinheiro: não é sem alegria que te saúdo, ó compreensivo. Se não, por
favor, ajude-me a roubar a cópia, para queimar no Largo da Carioca, às três da tarde,
como idiotas que não perdem a chance de conferir (e adorar) novidades.
Bernardo Oliveira
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