Política e cinema em Alfred Hitchcock

por Bernardo Oliveira

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Farley Granger e Robert Walker em
Pacto Sinistro, de Alfred Hitchcock

O cinema recria o mundo. O universo se enquadra nos limites da tela e o cineasta pretende que o espectador creia nesta realidade a ponto de não percebê-la. O que faz do mundo criado por Alfred Hitchcock em 53 filmes, algo tão paradoxal? Onírico e realista em Vertigo e Notorius. Banal e atroz em Strangers on a train e North by northwest. Sua obra é permeada destas contradições que explicitam o tremendo cuidado que o cineasta tomava para não excluir o espectador, não obstante, desafiá-lo com novas propostas dramáticas e novas experiências imagéticas. Não nos ateremos a este "paradoxo", mas na dialética que o sustenta, uma dialética do espaço.

A câmara capta o homem em limites possíveis de sua realidade. Uma psicologia dos filmes de Hitchcock cuidaria expor os mecanismos intermediários que conduzem a esta sensação de limite, da qual o medo é o denominador comum. Neste sentido, 39 steps é exemplar: o acaso trata de absorver Richard Hannay (Robert Donat) num quiproquó sem-fim que, por fim, nos absorve, pois sofremos com ele. O acaso também se manifesta através do pé de Bruno Anthony, em Strangers on a train, (É um pé fenomenológico). Esta relação de sentido , que faz com que a visão do espectador "entre" na história – sabemos do perigo, compartilhamos o mal – é suportada pela dialética do espaço. Entramos na estória e não estamos na estória: quem é o responsável por esta "confusão"? Podemos constatar tanto uma realidade do espaço, quanto uma realidade fílmica e esta relação é o suporte.

Mas a relação entre a realidade do espaço e a realidade fílmica não é complementar. A realidade do espaço, que confere ao filme sua verossimilhança, acontece na medida em que reconhecemos sua materialidade. Sabemos que se trata, por exemplo, do cotidiano de um personagem quando há uma indicação explícita do espaço. Como exemplos bastante razoáveis Dial M for murder, Rope e The trouble with Harry carregam esta unidade do espaço com uma força que nos atinge paradoxalmente; pois graças a esta representação, as tramas são convincentes. De outro modo, em North by Northwest não há esta unidade, mas múltiplas informações, que beiram o grosseiro para nos convencer do perigo. Isto é, mesmo não contando com espaços fechados e verossímeis (pois ação não o é), nos mostra um cenário de fácil recognição e alta precisão, absolutamente diverso dos cenários de John Ford ou de Otto Preminger. De que modo seriamos convencidos e absorvidos por uma trama tola como Rope, senão após ter delimitado um espaço convincente para o acontecimento? Outros cineasta poderiam fazer o mesmo e também convenceriam, embora em grau menor. Hitchcock faz com que coabitemos a sala cujo baú à esquerda contém um cadáver. É aí que se manifesta a realidade fílmica: através da construção de um espaço fílmico que é suportado por um espaço real, pois "presente", "conferível". Sem esta convenção acordada – e é preciso que o cineasta saiba escolher – nada do vigor dramático que se encontra no cerne da obra de Hitchcock. Deste modo, não sendo complementar a relação entre espaço real e espaço fílmico, sugerimos que ela possa ser representada na equação: espaço fílmico sobre espaço real. Traduz bem como Hitchcock delimita seu campo de atuação.

Acontece habitar no seio desta dialética uma outra relação. Suportado pelo espaço real – a que devemos o aspecto real da trama e sua verossimilhança – o espaço fílmico acaba por suplantá-lo. Deste modo, há duas condições, e ambas estão valendo: o espaço fílmico suportado pelo espaço real; o espaço fílmico inaugurando um universo paralelo autônomo, independente do espaço real. Não há uma dependência e há uma dependência. Ambos os fatores são reais e dignos de nota, mas a realidade fílmica é o objeto principal. Quem considera o cinema a arte da montagem não pode negligenciar sua realidade espacial, puramente fotográfica. Ela também confere ao cinema o estatuto de linguagem. Alfred Hitchcock soube se utilizar desta materialidade do espaço para construir seus filmes. A montagem é parte preciosa do projeto, embora acessória.

O universo do cinema está na tela e Hitchcock construiu seu universo valendo-se dos recursos citados. Deste modo compreendemos por que filmes como Torn curtain e Topaz são tão discutidos. É que, ao contrário de Griffith e John Ford, Hitchcock não se manifestava a favor de nenhuma política em particular, senão a política do filme. Esta política, longe de ser uma manifestação partidária, conserva dois fatores intrínsecos ao que se diz do político: um fator optativo, porque a política é uma escolha; um fator social, porque se pretende que essa escolha seja coextensiva ao entendimento do público. Alfred Hitchcok pensou uma política do filme ao desencavar o espectador da cadeira e pedir sua atenção. E aí está a diferença que os sociólogos não souberam entender: as idéias de Hitchcock não se manifestavam de modo algum contra ou a favor de nenhuma política particular, que não exprimisse a relação do autor com o público. A objeção mais razoável a esta idéia seria: ora, trabalhando em Hollywood, por mais alienado que fosse, Alfred Hitchcock fazia parte de um mecanismo macartista, anti-comunista, ou o que quer que seja. Talvez, mas se podemos perdoar John Ford por suas declarações fascistas é porque seus filmes são extremamente humanos e se manifestam como tal, para todos. Não há porque fazer justiça – mandá-lo para o parédon – pois sua obra fala por si mesma. Sua vida e opinião, já não digo. E daí? Neste sentido, os filmes de Alfred Hitchcock não merecem os comentários de Leif Furhammar e Folke Isaksson em Cinema e Política, nem a pecha de anti-comunistas ou macartistas, posto que trata do cinema e sua relação com o público. É uma política do filme e condená-lo por ela seria fazê-lo por motivos extra-cinematográficos. Seria dizer "por obséquio, sr. Hitchcock, não faça seus filmes desse modo, pois eles não suscitarão no povo a vontade de ‘verdade’ ". Nada contra um projeto que trate de avaliar certo cinema em busca de questões políticas extra-cinematográficas: descobrir propaganda macartista nos filmes americanos é válido desde que não respingue nos grandes autores que são Ford e Hitchcock, obscurecendo o valor de seus filmes.

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