São Jerônimo: Um Cinema Renascido

por Ruy Gardnier

Não é toda hora que um cineasta com 30 anos de trabalho consistente busca caminhos longe de suas estradas usuais. Mas é o que vemos em São Jerônimo. Com esse filme, Júlio Bressane renova seu vocabulário, instaura uma nova gramática longe das antigas figuras (tornadas clichês) que habitavam seus últimos filmes. São Jerônimo é um salto: caminho da santidade e humildade de Jerônimo, o santo, que restaura o vigor de um cinema, o de Bressane, que já estava deixando de ter seu interesse. É a humildade uma lição para o enfant gaté do cinema brasileiro: das imagens desnecessárias e um tanto infantis de Miramar, nada vemos. São Jerônimo é composto de grandes blocos de planos fixos, de uma simplicidade que faz brilhar os olhos, de um mínimo representacional (nada além de vestes, paisagens e certas figuras mentais do santo) que é adequadamente escolhido para representar um homem simples e de hábitos poucos.

Júlio Bressane sempre foi reconhecido (embora um tanto erroneamente por seus detratores) como o cineasta do Cinema, das citações aos grandes mestres e ao passado do cinema brasileiro. E da ode à luz. Se em seus primeiros filmes isso emocionava, nos últimos transtornava. Era a tautologia sobre a tautologia, e a sala de cinema transformava-se rapidamente em espaço mais para um sarau (no que a expressão guarda o sentido de placidez) do que para colocar um ponto de interrogação. Disso em São Jerônimo só vemos o início, travelling infeliz que é colocado, imagina-se, mais para ratificar a posição do espectador que para significar. Ponto a menos. Mas depois disso o jogo de esteta some. O autor faz vibrar seu ídolo, na pele de Everaldo Pontes, ator indicado para realizar a indicação minimalista do filme.

Resta que a interpretação em São Jerônimo surge estranha, trabalho elaborado: nada de naturalismo, mas ao mesmo tempo nada de realismo — uma interpretação espírita, se esse é o caso, em que os atores são os guias que apenas dão voz aos personagens. Os movimentos são poucos, muito estudados. As vozes são cautelosas, em nada excessivas, comunicando o suficiente apenas para que tudo o que é dito tenha real peso — monumento contra a verborragia. São Jerônimo faz de São Jerônimo um cinema da sutileza, um cinema que Júlio Bressane já tinha procurado (Brás Cubas, por exemplo), mas até o momento nunca havia encontrado.

"Cinema é a música da luz", Bressane costuma citar. E essa música é transparente em São Jerônimo. A luz não é objeto para jogo. Ela trabalha para uma nova beleza na obra de Júlio Bressane: nem a beleza que vem da feiúra de suas obras-primas A Família do Barulho, Matou a Família e Foi ao Cinema e O Anjo Nasceu, mas também bastante distanciadas da beleza-estranhamento de filmes como Tabu e O Mandarim. Uma beleza que vem diretamente da iluminação, onde a duração dos planos deixa tanto melhor nós observarmos e compreendermos o tamanho de tanta fascinação diante da luz. Beleza simples, que se encontra com a simplicidade da direção.

Jerônimo como signo. Jerônimo torna-se Haroldo de Campos reescrevendo a Bíblia direto do original. É a homenagem à letra, tão cara a quem já homenageou Lamartine Babo, Oswald de Andrade, Padre Antônio Vieira, Machado de Assis e Caetano Veloso, entre outros. Mas o amor por Jerônimo é um amor não-literário: é um amor exemplar. É um amor que Bressane nos apresenta com dois signos: o leão e a caveira. Num, o vigor da empreitada (traduzir a Bíblia do hebraico e do grego para escrever a Bíblia Latina, ou Vulgata), noutro, a efemeridade da existência. Os signos são menos orginais do que significativos: o espectador pode não saber disso, mas são personagens reais da vida do santo.

O leão que acompanha Jerônimo faz espelho com ele. E, nesse espelho, o reflexo cai em Bressane. Pois se São Jerônimo renova em demasiado com seu universo, a linha geral continua a mesma: a câmara como pedra. E é essa pedra que, na melhor cena do filme, fustiga o peito de Jerônimo até o sangue, de modo a purificá-lo. A câmara como pedra — metáfora de um cinema de rigor estético, signo geral dos filmes de Júlio Bressane: a beleza não-óbvia.

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