Terra de Paixões (The Hi-lo Country),
de Stephen Frears (EUA/Inglaterra, 1999)
"Durante o trajeto, um vento áspero e fresco começou a soprar, trazendo uma neve fina, espessa e seca. Caía ela sem aderir ao solo, o vento fazia-a turbilhonar e dentro em breve desencadeou-se uma verdadeira tormenta... Ivã saiu. A tormenta continuava. Marchou a princípio a passos seguros, mas se pôs dentro em pouco a cambalear. "É algo físico", pensava, sorrindo. Uma espécie de alegria invadia-o. Sentia em si uma firmeza inabalável; as hesitações dolorosas daqueles últimos tempos tinham desaparecido. Sua decisão já estava tomada e "já não voltaria atrás"; dizia a si mesmo, cheio de felicidade. Naquele momento, tropeçou, esteve a ponto de cair."
( Dostoiévski, Os irmãos Karamázovi)Sinopse do JB: A sólida amizade de dois amigos numa cidadezinha rural do oeste americano é desafiada pelo desejo por uma mesma mulher.
OBS: Qualquer estranhamento, leia no final do artigo o ESCLARECIMENTO. * * *"Dá uma mão aqui, meu irmão"
Esse é o achado poético que saiu na legenda do apaixonante filme Terra das Paixões, feito pelo grande garoto Stephen Frears. Uma épica releitura dos filmes western, uma calculada mas não menos arriscada reconstituição histórica do selvagem interior dos EUA. depois da Segunda Grande Guerra, os lindos e ledos horizontes desérticos da América do Norte, pano de fundo para uma estória cheia de ação, emoção, guerras, intrigas, tragédias, e ainda outras dimensões da bio-filosofia humana sem palavras suficientemente opulentas.
Narrado na primeira pessoa, protagonizada por Pete, cowboy de segunda que já começa o filme caindo do cavalo, o enredo começa com a amizade que trava com o playboy, opa!, perdoem-me, o cowboy mais macho, durão, valentão, corajoso, esperto, audaz, mui inteligente e sempre vitorioso do velho oeste, que peca por ser inconseqüente, bêbado, amante voluntário da mulher do próximo. Mas nem por isso deixa de ser bonzinho, gente fina, sangue bom, amigo de pessoas simples, defensor dos desfavorecidos, e ainda corneado pelo amigão Pete sem reclamar (com a mulher que se torna duplamente adúltera): ele é o Big Boy.
Sem dúvida, um personagem extremamente complexo, figura que condensa toneladas de sentido, ente fílmico que satura toda uma rede de relações, implicações, e que me deixam, confesso, enjoado. Mas regurgitarei toda essa riqueza apoteótica para o leitor, com o ímpeto que o filme merece. Seu irmão fraco, bobão, preguiçoso, derrotado, é o Litle Boy. Como vêem, os nomes são muito inventivos e pertinentes.
Procuraremos explicar a urdidura da trama no ato de sua própria explanação, destacando os componentes supra-psíquicos de uma leitura a um só tempo política, psicanalista e estruturalista. Marx, Freud & Levi-Strauss de mãos dadas, três vaqueiros inseparáveis se aventurando, como flaneurs interioranos, nos desertos do velho oeste.
Big Boy é o detentor do Falo, seu nome é o nome do Pai, mas um Pai garoto, embora seja grande. Foi um Grande homem, de qualquer modo, pois cumpriu com o dever de cidadão machão americano como fuzileiro na Segunda Guerra. Antes de voltar para o lar doce lar, foi atingido em combate, o que mostra como se arriscava por sua pátria amada, e teve de se hospitalizar. Essa incubação hospitalar prévia é muitíssimo importante para a compreensão panorâmico-galática de seu destino posterior.
Adianta-se já, agora, nesse momento, para o interessado leitor, tão atento, que tanto respeito, prezo e babo ovo (faço assim para um dia poder ganhar dinheiro, fama, mulheres e a pedra filosofal, como o ator desse filme, o perspicaz diretor e seu empresário, esse sim, o grande garoto da história), que é nessa relação de poder/saber/querer/fender já adiantada na ferida de guerra que o garotão vai se fu..., ou, para ser mais impreciso, sua posição de posse ideal tornar-se-á insustentável, infactível, inexeqüível, pois ele não possui o controle de sua potência simbólica.
Ou, para ser mais preciso, ele bebe demais, sai com a garota do capataz de um capitalista que é o instaurador das tecnologias mais recentes e lucrativas do ramo, enfim, desafia o capataz do Falo sócio-político-econônico que sabe controlar, dominar, explorar todo o povoado local. O Big Boy, coitadinho, trabalha para um Velhinho sem tecnologia, sem Falo, sem fala. Ele é um bom senhor de terra, amigo dos seus empregados, amante da natureza etc: o verdadeiro Papai Noel do capitalismo pecuarista americano. Frente ao capitalista malvado, ele não passa de um vaqueiro socialista ultrapassado, que ignora a nova conjuntura global, astrológica, universal, que as vacas estão passando na contemporaneidade. Portanto, além de um mero reflexo do neo-liberalismo, o grande Capitalista é um homem bem informado, atualizado, sabe interagir em tempo real com seu rebanho e arrebanhar empregados cornos ou perversos, que, por conseqüência, merecem ser explorados.
No início da inviolável amizade entre Pete e Big Boy, dois vaqueiros ignorantes, empregados do Capitalista tecnocrata, pretendem tirar satisfação com nossos dois mosqueteiros à toa. Como a razão ética é um tonificante muscular indispensável, quem ganha a briga são os heróis, pois possuem o mana fálico. Mas o que importa nessa cena tão movimentada não é o vencedor (para o verdadeiro atleta só importa competir), e sim os valores antropo-políticos na filmagem da violência a quatro. Como que a porrada (sem querer violar a sensibilidade preciosa do leitor, esse é o melhor termo técnico) se converte em ritual dionisíaco da moralidade puritana? Como que seus agentes reagem aos desejos mais primitivos da tatilidade?
A porrada americana, que nos alegra, diverte e promove a purificação catártica de nossa raiva recalcada, também nos educa. Só contemplar a coreografia tão equilibrada e comovente dos mocinhos, a verdadeira dança da violação de todo o campo biológico da interioridade, o entrechoque do corpo com a razão moral, do soco ontológico com o sangue ontogenético. É pela porrada comendo solta no barzinho do velho oeste que a arena ético-estética se instaura num jogo de forças políticas e afetivas, arquitetando, na sua dinâmica própria, uma ordem de poder/saber.
(Silêncio)
(concentração)
(Espaço para o leitor refletir com calma. Sente-se na poltrona mais confortável que possuir, tome um uísque. Quando estiver bem descansado, imagine a porrada mais relaxante que um filme pode lhe proporcionar. Agora [o momento mais esperado, tchan, tchan, tchan, tchan!] una a imaginação com o reflexão sobre esse último parágrafo. Explore todos os seus conceitos, toda sua imensa profundidade antropológica, filosófica, teológica , e entre no "jogo de forças políticas e afetivas" como se fosse seu video game preferido. Depois de ter vencido o jogo, inspirando [com o nariz] o próprio poder espiritual do Big Boy, você tem dois caminhos: ou voltar à realidade, ou voltar ao texto. A revista não se responsabiliza sobre os danos morais que possam ser adquiridos na segunda opção.)
(abra os olhos aos poucos)
(espreguice-se)
(prepare-se, não será fácil passar por esse portal iniciático)
(depois não diga que eu não avisei)
Podemos então estruturar a complexa ordem falocêntrica das figuras dramáticas:
Voltando um pouco na narrativa, quanto ao Pete, sua caída do cavalo é um índice muito profundo de sua personalidade instável e seus impressionantes conflitos interiores, que possuem uma função (e uma fissão) nuclear para a narrativa. Na verdade da verdade, essa caída mostra a perda do Falo. Nessa situação de desamparo, encontra um cavalo fidedigno quando conhece o Big Boy, que o vende a preço de BANANA (significante sintomático), logo ele recupera o Falo pelo amigo, e sua condição de masculinidade, seu cavalo interior (segundo nossa psicanálise de nova era, atualizada, globalizada) só se mantém em pé devido a presença do companheiro. Não escrevi companheiro ao acaso. Etimologicamente, (<cum + panis) significa comer pão junto com o outro. Foi isso que a dupla invencível (vale apontar a semelhança com Batman e Robin) fez com a adúltera, o pão doce mais gostoso da região. Concluindo, convido o leitor à grande questão: ó leitor, companheiro das veredas infinitas dos sentidos inúteis, amigo fiel das excursões mais perigosas rumo à lixeira da hermenêutica, acha mesmo que vale a pena ver o filme, depois de comer do pão e ler o texto que o diabo amassou ? Nada mais coerente com a posição de um escritor mal pago, bem oposto à situação do ator de Big Boy e do empresário do filme, responder com um pedido: me dá um pão aí "ouvinte meu, MEU IRMÃO" (Arrigo Barnabé, final do disco Clara Crocodilo). "Lá, e por estes meios de caminho, tem nenhum ninguém ciente, nem tem o legítimo - o livro que se aprende com palavras... É gente pra informação torta, por se fingirem de menos ignorâncias... Agora, se me faz mercê, vosmecê me fale, no pau da peroba, no aperfeiçoado: o que é que é, o que já lhe preguntei? Se simples. Se digo. Transfoi-se-me."
Vaqueiros ecológicos
Vaqueiros tecnológicos
Big Boy - o Falo bonzinho e concreto, devido a sua força corporal e audácia inexpugnável. Sua masculinidade moral é movida de energia divina amorosa pela mulher do capataz. É um alcoólatra, grosso, machista, inconseqüente, e acaba sendo corneado pelo melhor amigo ao apagar de tanto beber e deixar a mulher livre para uso, em uma das cenas mais super-impactantes, impressionantes e inesperadas deste roteiro sensacional (a música dá um susto óbvio nesse momento, mais do que a cena). Mas, apesar de tudo, ele não só não mata o melhor amigo, como salva a vida dele, defende os mais desfavorecidos, teme a Deus, ama a pátria amada, luta pelas técnicas arcaicas e pela tradição dos vaqueiros que não exploram ninguém, goza da vida, trata bem seu rebanho, mata os bichinhos sem que eles sintam dor, e só não é vegetariano porque mamãe, a sábia que prevê seu futuro, faz uns bolinhos de bacalhau que nenhum mocinho resistiria, nem um pretenso crítico de cinema. Falo positivo
Capataz - seu farto bigode e cara abobalhada são signos de um homem careta, otário, que não sabe fazer sua mulher gozar, só a deixa entediada e doida por um Big playboy. Isso quer dizer que ele não aprendeu a lidar com a própria castração. Portanto, é um personagem mau, corrompido e impotente. Perde no jogo de cartas para o Big Boy, perde a mulher e perde o respeito. É um zé mané, corno chato e até imaginamos ser um ator coadjuvante mal pago. Uma leitura politicamente correta faria dele o verdadeiro herói. Mas o escritor aqui em questão também é mau, e por isso está do lado dos bonzinhos (he, he, he). Esse personagem é duplamente corneado porque merece: não passa de um saco de pancadas imaginário para o crítico e o espectador. Sugestão de auto-ajuda: quando você estiver irritado com alguém, pense nele, e se sentirá melhor. Grau zero negativo Velhinho - financia os homens íntegros, de moral elevada, apesar de beberem (beber faz mal à saúde), travarem relações sexuais ilícitas e paixões perversas. Mas, que ninguém jogue a primeira pedra, pois são pecados aos quais todo bom cristão está fadado a cometer. De qualquer forma, o velhinho é totalmente homem de bem, e por causa disso não possui o falo e morre à toa para dar sua herança ao Big Boy. O Big Boy tentou salvar sua vida, mas o rico ancião não aguentou o frio do deserto em plena geada. Também, todo homem muito bonzinho é fresco, talvez até meio viadinho! Sejamos mais técnicos: seu falo é falacioso. Grau zero positivo O Capitalista - Esse é o único personagem sensato. Milionário, não está nem aí para seu capataz, aparece de vez em quando no barzinho, ouve um desaforo aqui a ali, mas ri da cara de todos com o típico sorriso de malvado. Nem todo homem malvado parece malvado, isso é uma virtude de poucos, e esse é uma dessas raridades. Geralmente nossos políticos brasileiros tem cara de bonzinhos. Mas ele é sincero: faz questão de mostrar aquilo que é (um diabo divino: "eu sou o que sou"), ou seja, seu Falo, seu gozo sádico, é manifesto pelo sorriso atemorizante. Falo negativo
(Guimarães Rosa, Primeiras estórias)(artigo dedicado ao queridíssimo ombudsman da Contracampo, Izesuq Kilistoq)
FIMESCLARECIMENTO
Falta de seriedade, competência, profissionalismo, para analisar um filme tão inocente? Para que tanto carnaval? Não quero me alongar muito nesses perguntas, embora elas exijam um exame mais cuidadoso. Segundo a crítica sobre o filme no Jornal do Brasil (revista Programa, 17 de setembro de 1999) o "cineasta tipicamente inglês" recebeu duas estrelas, pois ele "revela-se respeitoso no gênero". "Algumas seqüências parecem homenagens a John Ford, ao espírito viril e indomado do vaqueiro, e também a outros ícones daquele que é o mais genuíno cinema americano". Ótimo. Ele fez como manda o figurino. E daí? Todo produto da indústria cultural é profissional, moderado, equilibrado, divertido e bem composto. Portanto, não é arte, já que não desafia os modelos de realidade, mas apenas os reproduz segundo valores dominantes. Isso também sabemos. Então, por que deveríamos implicar com o diretor inglês por estar se americanizando para um dia receber o Oscar? Resposta: porque diversão não implica em alienação, porque o filme carrega uma pretensão artística nos momentos trágicos, na reavaliação chocante do momento histórico, ou até na "metaficção historiográfica" (Linda Hucheon) na qual ele poderia se enquadrar. Mas o resultado é pobre e reificado, como na grande maioria das vezes. Agora chegamos à questão mais interessante: vale a pena o crítico apontar essas conclusões, já que todo espectador atento chega a elas por si mesmo (mesmo que as avaliações sejam muito diferentes)? A resposta afirmativa seria o critério jornalístico. É produtivo fazer uma análise minuciosa do texto cinematográfico, expondo suas estruturas profundas, insuspeitados "ideologemas", relações de poder, implicações psicanalíticas? A resposta afirmativa seria o critério universitário. Não seguimos nenhum dos dois caminhos. Como o filme é desinteressante, não adianta usar um instrumental teórico interessante. Mas achamos uma saída fácil dizer que, então, não é pertinente escrever nada sobre ele. Por causa dessa posição, os textos jornalísticos reproduzem a objetificação da mercadoria industrial, e o debate universitário passa ao largo do que a população mais consome e experimenta. Esse texto sustenta uma outra posição. Ela é provisória e não quer ser a única. Incentivamos qualquer outra saída que não reproduza a imobilidade corrente das instituições universitárias e midiáticas. Procuramos usar o aparelho teórico mais ultrapassado, enganoso, inconseqüente, caricatural, inadequado e grotesco de que temos conhecimento. A partir dessa maquinaria podre, articulando um estilo cômico, ridículo, forçado, parodiando o que há de pior na seriedade acadêmica e no reducionismo jornalístico, procuramos fazer uma má análise do filme, além de nos servimos de recursos coloquiais e outros que não vou explicitar aqui, para não perder o tempero. Se usássemos um instrumental elegante, o resultado analítico seria decepcionante, e duvidaríamos do tempo perdido pelo escritor e por nós, que poderíamos estar lendo algo sobre Godard, Kubrick, ou qualquer outro. Algo me faz pensar que um instrumental péssimo não só faz justiça ao filme, mas consegue passar as memoráveis "mensagens" do diretor e da expectativa de recepção com outros olhos, sem cair na crítica rancorosa nem na adulação hipócrita ou ingênua, como nos mostra o típico exemplo do crítico do JB. Conseguimos, enfim, divertir-nos com o produto de entretenimento, já que essa é sua função, mas não segundo suas regras. Usamos de forma irônica (crítica), um aparato e um método analítico ineficiente não para chegar a qualquer verdade, a qualquer produtividade, mas a proposta é fazer valer a anti-análise pela sua capacidade de distorção, contra a forma esterilizada e descartável da mercadoria de massa. Quanto às epígrafes e à meditação proposta, creio que não precisam de explicação. Obrigado pela atenção, Eduardo Guerreiro