Traição,
de Arthur Fontes, Cláudio Torres
e José Henrique Fonseca
(Brasil, 1998)

 

Não é à toa que se reclama do cinema contemporâneo por ser muito mais maquiagem do que cinema. Traição é o melhor exemplar brasileiro do gênero. Seria inútil tratar do filme a partir de alguma vontade de dizer alguma coisa ou então de tentar reverenciar a obra de um dos maiores autores de nossa língua, Nelson Rodrigues. Ao contrário de Nelson, que forçava os seus textos para serem o mais pobres possível, o que vemos é um arremedo de homenagem a um autor que os diretores não conhecem. O tão falado "universo" de Nelson Rodrigues – que é designado pelos maus críticos para eclipsar seu lado mais interessante, e também mais insustentável, o de escritor metafísico –, os funcionários públicos, os suburbanos, a pureza e a impureza femininas são na tela sofrivelmente retratados, pura imagem falsa – no sentido da estereotipia, como o filósofo pensador, o artista louco, etc.

Mas o que mais incomoda, muito mais que a imagem falsa que eles fazem de Nelson Rodrigues, é a imagem falsa que eles fazem do cinema. Daí vermos um plano seqüência absolutamente vazio que abre o filme, alienações temporais e flashbacks copiados do cinema americano "moderninho", um close-up de Fernanda Montenegro ensangüantada que parece demorar horas (cinema "de arte" contemporâneo) e, de modo geral, uma iluminação e direção de arte saídas direto dos comerciais de televisão e de videoclips. Assim como esses dois últimos nos reservam uma falta de profundidade à toda prova (que é a obrigação deles, afinal são produto publicitário), Traição segue esse mesmo caminho tentando trazer algum sentimento, algo em que os autores supostamente acreditam, em função de que eles vão passar alguma coisa ao espectador. Aqui, no entanto, o território é outro e não se pode fazer com os mesmos pincéis quadros com intenções tão diferentes assim. É por isso que Traição já nasce inofensivo, a despeito de tanto sangue e fantasmas familiares / conservadores.

O "sistema" Nelson Rodrigues pede um tanto de realidade. Realidade necessária para que os atores tomem corpo e assumam os personagem em toda uma radicalidade que é própria da escrita rodrigueana. Ora, é exatamente essa realidade que – apesar de todo esforço dos atores – é a todo tempo negada, jogada às moscas, colocada para fora do plano (no sentido cinematográfico). Estamos, pois, no meio de uma fábula. E o lugar da escritura de Nelson Rodrigues é exatamente o oposto à fábula: é o lugar das impurezas do real, que é humano demais para poder atingir uma inocência procurada. Nessa fábula que é Traição, a ferida fundamental vira motivo de riso, a natureza humana é esvaziada e não temos Nelson Rodrigues nenhum. Talvez Traição seja exatamente isso: não uma traição dos personagens, mas antes de tudo uma traição do texto que baseia a história. Seria, então, um abandono do pai para que se pudesse procurar um caminho próprio. Nesse caso, é melhor que os bons filhos à casa tornem, pois eles não têm a menor capacidade de andar sozinhos.

Ruy Gardnier

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