Tudo é Sganzerla

por Bernardo Oliveira

Rogério Sganzerla realizou uma obra-prima, cujo primeiro aspecto que gostaríamos de abordar é sua estrutura narrativa. Mas, tendo em vista que Tudo é Brasil é resultado de intensa pesquisa acerca da passagem de Orson Welles no Brasil, é de boa fé lembrar que não é um filme para assistir sem certo preparo. Nada de hermetismos ou "artismos" pseudo-intelectuais. É que para apreciar o caleidoscópio ideogrâmico proposto por Rogério, carecemos de informações preliminares. Não há como omitir, por exemplo, que Orson já enfrentava problemas com a RKO, "sua" produtora, antes mesmo de chegar ao Brasil. Enquanto o carnaval carioca o deslumbrava, Orson assistia, de bem longe, seu segundo longa, The Magnificent Ambersons, ser montado à revelia de suas vontades. Outra questão que não se deve calar é como Orson foi cuspido do país, por pressão, não somente do governo americano, mas também da própria RKO, a quem nada interessava bancar o registro de um bando de pretos pulando. Orson gastou alguns quilômetros de filme com o Brasil, atitude que intensificou a inveja que sua figura evocava. Estes e outros detalhes são sutilmente introduzidos no filme. Caso o incauto entre na sala de cinema sem saber o que se passa, estranhará as livres associações (não tão livres) espalhadas pelo filme.

A sutileza com que Rogério Sganzerla conduz este filme-música, reflete os dados novos, por ele descobertos em sua extensa pesquisa. A estrutura narrativa do filme é calcada em alguns processos interessantes. Muitas vezes assemelha-se a um ideograma. Outras, o contraponto entre som e imagem revelam um terceiro significado, nada complexo, mas direto e intenso. Este mesmo contraponto também se realiza dentro da montagem onde a música dá o tom e as imagens passeiam, formando diversos significados possíveis. Um exemplo deste último caso está no primeiro corte abrupto do filme, quando João Gilberto irrompe das caixas de som, cantando (diria, esculpindo...) "O samba mandou me chamar", enquanto desfilam, como um balé, panorâmicas do Rio. Orson interrompe a cena para citar Shakespeare, como um prenúncio de seu porvir: "Há mais coisas entre o céu e a terra...". Retornam a música e as imagens do Rio, sugerindo um choque entre a chegada do jovem americano e sua "expulsão". A beleza que Orson soube apreciar, não como "o exótico", e uma citação de um de seus favoritos, tão condizente com sua situação até então, sugerem a intensidade de seu deslumbramento e calvário. A pesquisa elaborada por Sganzerla poderia ser exibida sob forma panfletária e analítica. No entanto direcionou-a para a criação de um universo interpretativo, onde, mesmo sem informações, podemos intuir-lhe o fio da meada.

Outras idéias são utilizadas por RS para exibir as conclusões de sua pesquisa. Um exemplo grotesco e engraçado é a chegada do representante da RKO ao Rio. Rogério montou paralelamente às imagens do sujeito, tubarões nadando ao léu. Para indicar o quê? Até uma criança entenderia... Outra situação engraçada são os desenhos de soldadinhos da época marchando e naufragando, buscando uma lembrança paradoxal: a intervenção brasileira na segunda guerra. RS passeia sua câmera por esses soldadinhos de chumbo grosso, filhotes do GV, mera brincadeira de criança. Mas a riqueza narrativa do filme não se esgota nessas brincadeiras geniais.

Num momento há uma conversa entre Carmem Miranda e Orson. Este tem a estranha idéia: decupar o samba carioca, desvelar-lhe a estrutura. Assim, ele pergunta "o que é isso?" e Carmem, "é um pandeiro", e alguém tocava o pandeiro solo. Foi assim com o surdo, com o tamborim ("não confundir com o nosso tambourine") até formar o ensemble. Enquanto transcorre, o diálogo é emoldurado por fotos sorridentes, ora Orson, ora Carmem. Ocorre então a completa interação som-imagem, onde, ao contrário que se possa pensar, a imagem recebe a instruções claras do som para significar, digo, para dar novos sentidos além do que a pesquisa fez chegar até nossas mãos.

Claro está que Rogério não brincou em serviço. Num recente debate sobre o filme ele disse que "nunca foi preguiçoso" e chegou até dizer que a preguiça é horrível. Pois bem, Tudo é Brasil foi montado na moviola, na mão mesmo, sem hi-tech (com exceção do som, feito no computador). "Como um chinês", se propôs a retirar das latas obtidas com a pesquisa, uma nova compreensão da tumultuada passagem de quem, na época, era (des)considerado o mais jovem gênio do cinema. E o fez com simplicidade e maestria, num filme ágil, veloz, comovente... Embora, na opinião da maioria dos nossos críticos de cinema, Sganzerla traduza uma visão arcaica do cinema (vide as listas de "melhores do ano"), nada tira o mérito e a coragem de RS. Numa época onde o que está valendo é a mentira e o eufemismo que, através dos meios de comunicação, delineam uma realidade cultural escrava, mas com cara de "democrática" (afinal, Godzilla e novela são para todos, né?!), um filme como Tudo é Brasil é mais que bem vindo. É vital.

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