Tudo na Tela: Tela/Estudo
A propósito de Alfred Hitchcock e Fritz Lang

por Ruy Gardnier

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James Stewart e Kim Novak em
Um Corpo Que Cai, de Alfred Hitchcock

1. A mestria cinematográfica que aparece na primeira vez que vemos um dos filmes de Hitchcock ou Fritz Lang nos espanta. De fato, a cada plano percebe-se que eles trabalham profundamente a forma cinematográfica, que cada plano é não só pensado como também extremamente experimental, sem entretanto fazer qualquer concessão à narratividada ou à simples fruição do espetáculo. Isso por vezes fez crer que esse tipo de cinema se tratava apenas de uma brincadeira virtuosa ou de picaretagem intelectual, e que o termo final desses filmes era o simples entretenimento supercifial por parte do espectador. A grandeza do método aqui se contradiz com a pequenez dos fins. Seria a única intenção desses autores realizar as vaidades de autor? Apenas para isso, se seria suficiente com tão pouco, eles trabalhariam tanto, à exaustão, o plano cinematográfico? Se é tão difícil assim para nós apoderar onde entra exatamente a autoralidade de Hitchcock e Lang (mesmo que se pressinta), é justamente porque ela é a mais patente, a que está mais na cara. Por um princípio simples, claro, imediato. Para Hitchcock e Lang, só existe o plano: o plano é construído sempre como o todo da realidade, nunca como uma parte. A representação no cinema, que sabemos constituída de um dentro (o que está no plano) e de um fora (aquilo que a câmara não mostra), nesses cineastas realiza o máximo do classicismo, que consiste em acabar definitivamente com o fora de campo, de transformar o campo  numa totalidade, jamais num segmento do visível. O que olhamos é a realidade.

2. Se o plano enquadra, ao mesmo tempo ele esconde. Essa é a dialética do que se convencionou chamar de cinema moderno, a partir de Orson Welles e principalmente de Roberto Rossellini, e que chegou a sua maturidade teórica com as obras de Jean-Luc Godard, Jean-Marie Straub, Jacques Rivette, entre outros. O fora de campo desempenha aí um papel fundamental: no momento dessas experiências cinematográficas, o que está sendo colocado em questão pela imagem do cinema é exatamente o conceito de representação e a mistificação do plano, que nesse momento da história atinge pela primeira vez o mundo "por contaminação" através do advento da televisão. A questão desse cinema é diretamente com o real, com os dados do real, a duração. Rivette nos diz que, para filmar como se fazia antes, você precisaria ter um filme cuja duração fosse duas vezes maior que o original1. Godard não mais procura imagens justas, e sim justo uma imagem: isso testemunha o fim de uma busca de cinema que tocaria melhor a realidade por estar mais aproximada dela (o neo-realismo, mais especificamente). O cinema, a partir de agora, terá que se relacionar com o seu fora, tanto com aquilo que ele mostra quanto com aquilo que ele não mostra: função política que pretende demostrar a claridade do método, a não manipulação do espectador.

3. A questão do fora de campo, obviamente, teria que transbordar para o terreno do cinema documentário. Afinal, reside principalmente nela a questão entre realidade e verdade da imagem. O documentário desse tempo responde com dois cinemas muito semelhantes na realização, mas muito diferentes na proposta: o cinema direto e o cinema-verdade. Esses cinemas rompem definitivamente com o cinema documentário ficcional, o de Nanook, mas também com o  documentário realista, de Louisiana Story. O direto e o cine-verité incorporam a câmara como elemento transformador da realidade, e passam a considerar o plano simplesmente como um aspecto do filme, ele se fazendo também (e principalmente) pela relação que constitui com o seu fora. Não é à toa que todos os cineastas de ficção que utilizam o fora de campo almejam a outro tipo de disposição ficcional da realidade, uma disposição quase documental, outras noções de representação, duração, etc. O fora de campo age aí como um elemento agigantador do plano: se fazemos menção ao que está fora do plano, a concepção de realidade no filme aumenta e passa a designar não só aquilo que está no plano, mas também aquilo que o rodeia. O fora de campo alarga a dimensão da ficção, incorporando a ela o documentário, mas à condição de reduzi-la, de fazê-la confundir no plano o filmado com o não-filmado.

4. A relação do plano com a realidade erige uma questão: o que é de fato o documentário? Podemos tentar responder pela questão numérica, ou da correlação: a cada 1 da realidade deve responder um 1 no filme. Se filmamos no documentário uma mãe chorando, não podemos fazer dela uma metonímia ou uma metáfora; essa mãe chorando deve ser exatamente o que ela corresponde na realidade. Transformar essa mãe documentada numa simples evocação dos sofrimentos do mundo já seria uma visão "ideológica" da realidade, uma visão que já carregaria o pressuposto de uma "humanidade" onde haveria o gênero "mãe que sofre" antes de interpretar uma verdadeira singularidade do sofrimento dessa mãe. Daí a necessidade do documentário, para fugir a uma visão romantizada ou "ideológica" da realidade, de fazer 1:1 com a realidade. Critica-se a ficção por não ser uma correlação com a realidade, pelos personagens não remeterem a nada de real no mundo — é a crítica platônica da arte como simulacro, como ilusória. Sob esse aspecto, o do 1:nada, a crítica platônica é irreprimível, está absolutamente certa. A única objeção que se pode fazer a ela é que não explica o fato desse "nada" afetar realmente as pessoas, ao fato de que, de um "nada", possa vir alguma coisa (o que seria o oposto do dito shakespeareano...). Mas é sempre possível que olhemos por outro aspecto que explique essa relação do filme com o espectador. Jamais dizendo que o filme de ficção constitua uma relação 1:1. Ou mesmo 1:2, 1:15, 1:1000. Um filme sempre estabelece uma relação, é fato. Mas essa relação jamais é determinada ou determinável. Se alguém filma uma sensação, digamos, o medo, num filme de ficção, o medo da atriz realmente faz 1:nada, porque na verdade ela não sente medo, é apenas uma representação. Mas o medo, aquilo que é filmado e transmitido, remete verdadeiramente para algo não só representável, mas tangível. E o medo estabelece uma relação que não é 1:nada, mas 1:X, sendo X o número de vezes que, na realidade, o medo pode ser evocado. É só a partir dessa correlação que podemos entender porque a arte, e mais especificamente o cinema, existem e afetam. Porque a ficção é um documentário de muitos. A ficção não se limita ao estudo da realidade para fazê-la 1:1. Sua função é fabular, especular, fazer sempre 1:X. Um filme que é 100% ficção não é um filme falso, e sim um filme que remete a um 1:X.

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Os Nibelungos, de Fritz Lang

5. A ficção não se preocupa com o verdadeiro, se compreendemos no verdadeiro apenas como aquilo que se adequa à realidade. A ficção cria um mundo, ela apresenta um mundo muito parecido com o nosso, só que extremamente modificado, demiurgicamente modificado. Trabalhar a ficção é tanger as cordas de um outro mundo, de um mundo do artifício. Johan van der Keuken é brilhante quando afirma que Hitchcock é o autor-maior do artifício2. O próprio da ficção é mostrar a realidade pelos olhos do artifício. A ficção fecha primeiramente as suas portas ao real para depois abri-las com mais propriedade, na comparação. O artifício no cinema é exatamente o plano. Ao fechar a realidade dos quatro lados, o cinema pode verdadeiramente se realizar como ficção. O cinema 100% ficção deve, por conseguinte, ser o cinema "todo plano". O cinema "todo plano" não é simples: ele afirma profundamente a realidade do filmado como tudo aquilo que existe no mundo e nada mais. A respeito de Fritz Lang, o diretor Claude Chabrol afirma3 que, quando Lang filma três pessoas numa mesa e uma delas sai, o diretor vai reenquadrar a conversa para que a cadeira da pessoa que saiu desapareça. É o princípio do "todo plano". Em Lang e Hitchcock não há ausência, não há falta. Jamais tempos mortos, jamais fora de campo, jamais uma descrença no filmado: todas essas características desses estilos não devem ser encaradas como uma fase primária da narração onde ela não estaria autoconsciente do seu poder de falso, e sobre o qual o cinema moderno prevaleceria por abrir terreno a novas figuras de linguagem como o fora de campo e os tempos mortos. Ao contrário, o falso no "todo plano" é o artifício, que jamais remete a uma falsidade, a uma mentira, mas a um todo de sentido que é, esse sim, extremamente real. Sua verdade, seu "todo plano" não é nunca uma ingenuidade; é a verdadeira expressão de um desejo de cinema que não abre espaço ao falso do filmado. Tudo que é filmado é verdadeiro.

6. O plano narra. Não é à toa que os dois se exercitaram bastante no gênero. Hitchcock fez de sua casa o suspense, e Lang, além do suspense, se exercitou também pelo policial e pelo western. O gênero é o cinema da crença por excelência: devemos acreditar em seus clichês, em toda uma mitologia da narrativa para que possamos compreender o filme. A filiação ao gênero vai de encontro à verdade do plano, à estética do "todo plano". O cinema 100% ficção, realizado unicamente por Alfred Hitchcock e Fritz Lang, realiza uma verdadeira ontologia do cinema através do plano. A câmara é a expressão absoluta da verdade, da verdade do relato. Em vão se procurará os famosos clins d'œil em seus filmes. Até quando a potência do falso mais se realiza, quando Kim Novak é reencontrada na rua em Um Corpo Que Cai ou quando Siegfried se disfarça para poder ganhar as provas para seu futuro cunhado em Os Nibelungos, nunca haverá nenhum plano enganador (embora o assunto que esteja sendo filmado trate de enganações). A ontologia do plano mostra o cinema como completa positividade do mostrar, realiza a façanha de criar a igualdade mostrado = mundo. Seus artistas são os maiores criadores, pois admitir o plano como princípio de realidade é criar um universo exclusivo para o cinema, considerar radicalmente o visto como prova de verdade. A ontologia do plano, ao renegar o falso, pode finalmente postular a ficção como verdade. "A arte não restitui o visível; ela torna visível." (Paul Klee)

1. No filme de Claire Denis, Jacques Rivette — O Vigia.
2. Na entrevista a CONTRACAMPO, edição de maio de 1999, jvdkentrevista.html
3. Cahiers du Cinéma, edição especial sobre Claude Chabrol, Outubro de 1997, p.16.

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