Johan van der Keuken, uma Arte do Retrato

por Ruy Gardnier

O cineasta Johan van der Keuken considera Face Value/Valor de Face e Amsterdam Global Village como dois de seus filmes mais importantes. E realmente os dois se parecem, só que de maneira estranha. Enquanto FAce Value é um filme composto 80% de planos fechados, ou closes, Amsterdam Global Village é seu oposto: filme sobre a cidade de Amsterdam e todas as relações humanas que ela mantém com o mundo, AGV opta pelos planos abertos até o momento em que, do meio circundante, ele extrai uma personagem daquele contexto. Mesmo aqueles que já viram o filme há muito tempo do jovem com a sua motocicleta ou da mãe chechena que chora tendo o filho morto nos braços.

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O bebê checheno morto em Amsterdam Global Village

Quanto a esta última imagem, podemos identificar duas coisas que o cinema de JvdK não é: 1) a câmara abandona o ponto-de-vista clássico do documentário; sua câmara na mão (JvdK é seu próprio cameraman) tentando se aproximar da mulher chechena é uma metáfora que exprime sua profissão de fé: jamais emitir a verdade abstrata e única, jamais tomar o ponto de vista onisciente e pseudodidático do documentário clássico1, mas sim fazer aproximações — emitir saberes, sim, mas sempre parciais, nunca completos. São os "fragmentos da vida" de que ele fala2; 2) JvdK ignora uma característica própria a certos filmes de cinema direto e cinema-verdade, e fortemente fincada na cultura cinematográfica de nosso cinema, de fazer metonímia enter tragédia-individual e tragédia-de-um-povo. Sua mulher chechena não é um índice de que há uma guerra na Chechênia e de que as pessoas sofrem. Ela aparece na tela como uma individualidade, uma mãe (qualquer) registrada pelo cinema em momento de sofrimento. Hecceidade, se quisermos, Mas o que resta dizer é que é pela câmara que sabemos ser a senhora chechena uma individualidade, pelo próprio trabalho de aproximação que é o cinema de Johan van der Keuken.

Seu cinema é construtivo. Ele não trabalha a partir de um todo que deve ser expressado (p.ex., o todo Leni Riefenstahl). Se em seus filmes por vezes temos um todo (Amsterdam), JvdK inverte a estratégia e nos dá somente partes. Não se trata aqui de achar uma alma da capital da Holanda, mas simplesmente de filmar fragmentos da cidade. Pois, problema filosófico, só a partir das partes podemos constituir um todo, não enquanto essência, mas apenas como uma soma. Trabalho matemático, então: filmar a Holanda é filmar 1+1+1+... retratos das pessoas e dos costumes daquele espaço geográfico (que também nunca é uma essência, mas uma soma). Há, entretanto, uma humildade assombrosa no trabalho de Johan van der Keuken. Ele jamais nos diz 1+1+1+...= Holanda. Para ele, a fórmula é sempre 1+1+1+...= meu retrato. Não que seu retrato queira dizer "isso não é a Holanda", mas simplesmente que o retrato jamais pode ser confundido com a Holanda. Aula contra o idealismo.

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O retrato da família tailandesa em Amsterdam Global Village

Mas é em Face Value que o trabalho de retratista fica mais evidente. Filme feito exclusivamente a partir de personagens, é a deixa para que nos demos conta de seu método de trabalho. Num primeiro momento ha uma idéia; no momento da filmagem ele tem essa idéia em mente, mas filma de forma mais livre; no terceiro momento, o da montagem, é a hora de reunir tudo e ver o que fica. para isso, JvdK utiliza de tudo — cortes, depoimentos, retornos, música e diversos ruídos. Seu tratamento é diferenciado: numa festa de velhinhos, temos somente o som da música para falar por eles; em certos retratos de pessoas ele usa o mesmo procedimento. Mas quando se trata de fazer o retrato do encontro de um monumental piquenique neofascista francês, a coisa muda. É importante que se ouça tudo, o ambiente e sobretudo as vozes. Ouvimos os discursos, principalmente o discurso do líder. Ele fala coisas assombrosas, mas aí JvdK é isento para filmá-lo como filmaria Bill Clinton ou Farrakhan: trata-se de dar o retrato de antropólogo, daquele que tenta ver o que há de impressionante em um acontecimento como aquele. Que ele filme os rostinhos rosados da classe média francesa emitindo horrores racistas, já é o suficiente, não precisamos da mais nenhuma informação. Seu cinema da multiplicidade — filma diversos costumes, diversas práticas e as monta conjuntas — já nos dá toda dimensão de sua democracia radical.

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JvdK em seu filme sobre Bert Schriebeek

Chegamos a um ponto importante. Johan van der Keuken afirma que tudo num filme é forma. Se levarmos essa afirmação a suas últimas conseqüências, pensaremos que seus filmes são de ficção. Não estaríamos longe da verdade, mas sempre é preciso pensar que em seus filmes temos também o referente, aquilo sobre o que o filme repousa. Temos a forma, mas temos também as pessoas reais, de carne e osso. Quando JvdK revela que tudo num filme é a forma3, ele apenas quer dizer que tudo num filme é sua construção, que o filme não é igual ao seu referente, mas que esse referente é também real, existente. Nada de fenômenos ou aparência, mas apenas os acontecimentos. Daí sua arte, a de fazer retratos.

Em To Sang Fotostudio, média-metragem de 1998, vemos o fotógrafo To Sang pintando uma foto em preto-e-branco. Seu ato é meticuloso, e a filmagem respeita a duração do ato o máximo que pode. É uma metáfora do trabalho de Johan van der Keuken: tomar a imagem e pintá-la, a sua forma, fazer o seu retrato. O sr. To Sang é um fotógrafo, mas seu sonho de aposentadoria é pintar. Johan van der Keuken é um pintor: ele pega a sua imagem e pinta com os artifícios de sua linguagem, a montagem dos sons e das seqüências. No caminho, dá a sua visão do mundo e da arte.

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