Vampiros (John
Carpenter's Vampires),
de John Carpenter (EUA, 1998)
Poucos são os diretores que carregam consigo um vigor alucinado de destruir todas as instituições por dentro, de colocar a medianização da sociedade em seu devido lugar, de dar conta real de uma situação fabulosa e, mesmo no filme mais "fantástico" possível, com duendes e fadas, fazer dele uma crônica de costumes. John Carpenter certamente é um deles, e provavelmente o maior de todos se levarmos em conta especialmente a época em que ele filma (1973 até agora). Espírito de anarquista, seu cinema realiza um trabalho que poderíamos chamar de efeito-Carpenter: você está rodeado de lixo à sua volta, a única chance de escapatória é pelas suas próprias mãos. A realização maior dessa máxima acontece em seu filme anterior a Vampiros, Fuga de Los Angeles, em que o personagem Snake Plissken tira o controle do mundo das mãos do presidente americano e faz retornar a Terra a um grande paraíso redescoberto, pontapé inicial para uma nova experiência de vida, sem instâncias dominadoras.
Jack Crow, o personagem que James Woods vive em Vampiros, parece vir do fim de Fuga de Los Angeles. Ele trabalha para a Igreja Católica e tem como função o extermínio de vampiros, mas na verdade ele não tem dono algum: seu único guia é seu próprio senso moral, senso "degenerado" que esmurra padres mas que é incapaz de descumprir um trato. Vampiros começa na estrada, onde o grupo de caçadores de vampiros identifica uma casa abandonada, provavelmente um "ninho" (lugar onde os vampiros dormem protegidos por um vampiro-mestre). Carpenter dá grande importância à preparação para a luta. Ela é filmada de todas as formas, em todos os ângulos, talvez com mais gosto do que a própria chacina, que resulta atabalhoada porque a maioria dos caçadores é de baixo calão. Sobram, entretanto, o líder Crow e seu fiel escudeiro, interpretado por Daniel Baldwin, que juntos fazem um trabalho primoroso de destruição. Na cena seguinte, o revide: numa festa regada a álcool e prostitutas, patrocinada pela prefeitura da cidade e pela Igreja (estão lá o delegado e o padre), o vampiro-mestre em poucos minutos dilacera quase todos os participantes da festa, entre eles os caçadores, as prostitutas, o padre bebum e os outros convidados. A cena é brutal, de uma mise-en-scène elaborada, talvez a mais importante do filme, porque é lá que percebemos que o vampiro em questão não tem nada a ver com os relatos romantizados dos filmes de Coppola ou Neil Jordan: trata-se antes da sobrevivência cega de uma raça do que de uma estilização um tanto infantil do demônio sensual.
A partir dessa cena, vemos realmente o que é Vampiros: nada de filme de terror, nada de filme de suspense: Vampiros é de gênero sim, mas de um gênero semelhante ao perfil de Carpenter, o western. De um primeiro momento populado por uma infinidade de personagens, depois de meia-hora só nos resta Crow, seu amigo, uma prostituta que foi mordida pelo vampiro (Sheryl Lee) e o próprio vampiro, que vai ser revelado como sendo um antigo padre excomungado que se transformou no primeiro vampiro de todos os tempos. Daí o western vai poder evoluir ao gosto de John Carpenter: o personagem principal com uma ética, seu parceiro que se deixa cair na tentação, a mulher que é como que o radar de vampiros (existe uma ligação telepática entre mordedor e mordido) e o malvadão de 600 anos.
Surpreende em Vampiros o ritmo: músico que é, Carpenter sabe tratar seu filme para transformá-lo em história em quadrinhos, à maneira de outro belo ritmista pop, Tsui Hark, mas com a mesma originalidade de músicos mais eruditos, Kitano ou Resnais. Se o ritmo desses últimos funciona para singularizar os personagens, a tentativa de Carpenter é completamente diferente: fazer dos personagens meros símbolos, receptáculos de características. Estamos no gênero, vale lembrar, e tudo que o símbolo já foi para mestres do gênero (Howard Hawks, Budd Boetticher, Jacques Tourneur) é retomado no nível da narrativa para culminar na máxima simplista, mas que no filme se torna deliciosa: sempre associada ao Grande Mal está a indústria do Grande Bem, que é aliás ela própria que se chama de Bem e chama ao Mal de Mal. Nada se parece tanto quanto dois inimigos, e é por isso que Carpenter se defende de um certo estigma do cinema de autor: a raiva contra o cinema narrativo não seria mero suporte para jogar o cinema nos mesmos moldes, só que agora sob o ângulo do consumo de arte (pensar aqui nos filmes Tempestade de Gelo, Wintersleepers ou O Doce Amanhã...)? John Carpenter sabe diferenciar estilo de estiloso, e aquilo que enche essa 'trilogia do gelo' está ausente em Vampiros. Mesmo que não seja um dos melhores filmes de seu autor, tem o primordial: uma revolta revolucionária contra o status quo, ao passo que os estilosos preferem apenas uma reforminha.
Ruy Gardnier