Tragédia nos Andes: O canibalismo como salvação


Um acidente aéreo ocorrido nos Andes em 1972 provocou um debate mundial em torno de um dos maiores tabus da Humanidade: o canibalismo. Foi comendo carne humana, como se soube depois, que os sobreviventes da queda de um Fairchild da Força Aérea do Uruguai conseguiram manter-se vivos durante 69 dias nas montanhas geladas entre Montevidéu e Santiago, até serem resgatados por helicópteros chilenos. O fato, chocante, foi explorado à exaustão pela mídia, que ouviu religiosos, psiquiatras, juristas e médicos. Após a polêmica, fez-se um silêncio tácito até que, três anos depois, o lançamento do livro "Os Sobreviventes", escrito pelo inglês Piers Paul Reed a partir de relatos dos protagonistas da tragédia, esquentou novamente o debate: dessa vez, discutia-se se era lícito aos sobreviventes ganhar dinheiro com um incidente do qual eles só haviam saído vivos por terem recorrido aos companheiros de vôo para se alimentar. O caso ainda rendeu mais um livro e dois filmes: o ruim "Sobreviventes dos Andes", de 1976, e "Vivos", de 1993.

A tragédia dos Andes começou no dia 13 de outubro. Uma falha no motor provocou a queda do Fairchild quando o avião sobrevoava a cordilheira, com 45 pessoas a bordo: cinco tripulantes e 40 passageiros - jovens jogadores de um time uruguaio de rugby, o Old Christians, que faria uma partida em Santiago, acompanhados de parentes e amigos. Vinte e uma pessoas morreram na queda ou em conseqüência dela. Dos outros 24, oito seriam soterrados alguns dias depois, vítimas de uma avalanche. Os restantes, duas vezes sobreviventes, ainda tiveram que superar uma notícia desastrosa, ouvida do rádio ligado à bateria do avião: as buscas, depois de oito dias, estavam sendo suspensas.

Abandonados, os jovens, quase todos filhos de famílias ricas e de classe média alta de Montevidéu, se organizaram: a água era obtida derretendo-se a neve. Em relação à comida, diante do desespero, optou-se por uma medida extrema: alimentar-se da carne dos mortos, mantida congelada sob a neve. "Não havia tempo para pensar no que ao mundo pudesse parecer correto ou não", disse anos depois Roberto Canessa, na época estudante de medicina. Ele e Fernando Parrado foram figuras fundamentais no desfecho do episódio - depois de 59 dias nas montanhas, saíram andando, dispostos a chegar a algum lugar. Dez dias depois, avistaram um camponês. Fracos para gritar, lançaram uma pedra com um bilhete, que terminava com um desesperado "por favor, venham nos apanhar".

Foram, e o mundo conheceu os momentos de horror por que haviam passado. Por trás do "milagre de Natal", como inicialmente se tratou do caso, veio à tona a terrível realidade da antropofagia.


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Fonte: O Globo 2000 - fascículo 26






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