"O Verão de Sam"
(Summer of Sam, 1999)


O filme de Spike Lee que retrata o caótico verão de 1977 em Nova York



No verão de 1977, Nova York perdeu a cabeça. Um alpinista do Queens chamado George Willing escalou o World Trade Center. Terroristas nacionalistas porto-riquenhos explodiram em Manhattan prédios de escritórios e lojas de departamento. A temperatura atingiu 40 graus, perto de bater o recorde de calor da cidade. Um blecaute de dimensões inéditas gerou uma onda de furtos e quebra-quebras que resultou em três mil presos. Elvis Presley morreu. O legendário Studio 54 abriu. Há 23 anos não havia AIDS, o sexo rolava solto em clubes de swing, a cena punk começava a tomar conta da cidade e John Travolta virou estrela com a febre das discotecas em "Os Embalos de Sábado à Noite". A mais disfuncional família do Bronx, os Yankees, reviveu seus melhores tempos no campeonato de Cena do filme beisebol contra o seu rival Dodgers. Mas isso não foi tudo. Um serial killer armado com um revólver calibre 44, apelidado Son of Sam ("filho de Sam"), deixou Nova York refém como nenhum criminoso fazia há décadas. O psicopata atacava preferencialmente morenas de cabelos compridos ou casais namorando em carros. Fez vítimas no Bronx, Brooklyn e Queen. Aterrorizadas, muitas mulheres decidiram cortar o cabelo e pintá-lo de louro (!).

O novo filme de Spike Lee ("Summer of Sam"), que estreou em julho de 99 nos EUA, sob polêmica da crítica, não é um documentário. Mas capta perfeitamente a depravação de uma cidade que perdeu a compostura junto com a cabeça. Milhares de filmes foram feitos em e sobre Nova York, mas relativamente poucos conseguiram captar de forma tão hiper-realista um flagrante da cidade que não pára de mudar e num período tão particular.

O metafórico verão de 77 durou de março a outubro e se fez sentir por pelo menos cinco anos, nos quais os nova-iorquinos se debateram entre duas visões distintas sobre a cidade: uma que o real "bons e velhos tempos" foi os anos 50 e que com o crescimento nas duas décadas posteriores a cidade tornou-se ingovernável; a outra definia Nova York como a meca dos imigrantes. Estes dois pontos de vista estão encapsulados em "Summer of Sam". Spike Lee realmente recria aquele anárquico e estranho verão.

Naquele ano, o Daily News, então o jornal mais prestigiado de Nova York, estampou manchete histórica: "Caia Morta". Era o conselho do presidente dos Estados Unidos, Gerald Ford, para a cidade que não tinha dinheiro para pagar horas-extras para os bombeiros, demitiu funcionários públicos pela primeira vez desde a depressão dos anos 30 e impôs o pagamento de mensalidades na universidade municipal.

A trama do filme reflete os efeitos da paranóia dos crimes cometidos pelo psicopata Son of Sam, na verdade David Berkowitz (Michael Badalucco) sobre uma comunidade ítalo-americana do Bronx. Mas esse não é o tema central do filme. "O filme não é sobre David Berkovitz", diz Spike Lee, rechaçando as críticas de familiares das vítimas, insatisfeitos por reviver memórias dolorosas. "É sobre esta energia ruim e seus efeitos em milhões de nova-iorquinos", afirma o diretor. "Sinto profundamente pelas vítimas, mas, ao mesmo tempo, sou um artista e esta é a história que queria contar", explicou ele no Festival de Cannes.

Na galeria dos personagens, há ainda Vinny (John Leguizamo), uma espécie de rei das pistas de dança do subúrbio (como o personagem de John Travolta em "Os Embalos de Sábado à Noite", filme lançado naquele ano) que vê nos crimes uma mensagem divina para parar de trair a sua bela mulher (Mira Sorvino). Ao mesmo tempo, Ritchie (Andrien Brody) volta de uma temporada na Inglaterra transformado pela onda punk. Enquanto isso, o mafioso do lugar oferece um prêmio pela cabeça do criminoso, incentivando uma gangue do bairro a promover uma verdadeira caça às bruxas na região. Como se vê, em "Summer of Sam" os assassinatos do psicopata são mesmo pano de fundo para uma história ficcional que envolve amor, ódio e alienação. Um espelho de uma época especial.

Naquele verão, Spike Lee estava no segundo ano do Morehouse College, no Brooklyn, e a única coisa que fazia era experimentar sua nova câmera de Super-8. Ele acabara de fazer um filme caseiro, "Last hustle in Brooklyn", e voltava para a faculdade para se graduar em comunicação de massa. Ele se lembra bem desse verão mas consegue transmitir mais do que suas lembranças no filme.







©1999 Daniel Couri
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